Anarquismos e Sociedade de Controle 
Edson Passetti 
Professor no Depto. Política, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais 
e coordenador do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) PUC-SP. 
Os investimentos na produtividade do corpo se aperfeiçoam e acumulam: na sociedade 
de soberania castiga-se, na disciplinar busca-se utilidade econômica e docilidade política, 
na de controle exige-se participação e fluxo inteligente. Efeitos inibidores de resistências 
também não cessam de trafegar entre o direito de morte, o de deixar viver e o de fazer 
viver. 
O século XIX colocou as possibilidades para a democracia e o socialismo; o seguinte se 
encerrou confirmando a arrogância capitalista, seus valores universais e o imperativo 
dever do planeta globalizado em vir a ser  democrático. O socialismo de Estado, ou 
autoritário, tornou-se realidade no século XX, confirmando a crítica anarquista que o via 
como forma ditatorial de existência, solução inviável para a superação das desigualdades 
e, por conseguinte, com vida breve. Os  anarquismos, nos últimos anos do século 
passado, viram-se novamente atuais e  algumas partes começaram a reparar 
instintivamente numa filosofia procedente de autores como Deleuze e Foucault. 
Suas contundências e generosidades foram sendo notadas pelos anarquistas
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. Contudo, 
deve ser feita uma ressalva elementar. Foucault fez questão de afirmar que não se 
comprometia com um estado civil. Se sua obra pode ser compreendida como inventora 
de liberdades, Foucault não quis e não fez por ser apreciado como um anarquista, muito 
menos como um liberal
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. Deleuze, por sua vez, caracterizou o fim do devir revolucionário 
coletivo, enfrentando o equívoco socialista. Não se afastou das análises econômicas de 
Marx, mas como um Bakunin contemporâneo
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, não abriu mão da liberdade em busca da 
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Em especial o pequeno dossiê composto pelos segiuintes artigos: Passetti, Edson, "Foucault libertário", 
Schmid, Wilhelm, "Da ética como estética da existência", Vaccaro, Salvo " Foucault e o anarquismo" e May, 
Todd "Pós-estruturalismo e anarquismo", in Revista Margem, Faculdade de Ciências Sociais PUC-SP/Educ, no. 
5, 1996 pp. 125-185; e, Rago, Margareth  Emtre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo 
contemporâneo, São Paulo, Unesp, 2000. 
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"Foucault como um anarquista libertário?" Resposta: "É o que o senhor desejaria. Não, não me identifico com 
os anarquistas libertários, porque existe uma certa filosofia libertária que crê nas necessidades fundamentais do 
homem. Eu não tenho vontade, eu,  sobretudo, recuso-me a ser identificado, ser localizado pelo poder..." in Ditos 
e escritos, (org. Manoel Barros da Motta), São Paulo, Forense Universitária, 1999, vol. 1. pp. 311-312 [1984, 
Intervew met Michel Foucault", Krisis] 
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Segundo Frank Harrison, em The modern State, Bakunin deve ser entendido como um autor no anarquismo 
que sempre manteve-se coerente com a crítica radical de Proudhon, mas que no âmbito econômico esteve mais Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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afirmação da igualdade. As autorias de Foucault e Deleuze remetem-nos, diante da 
encruzilhada, a não nos acomodarmos pelos  percursos utópicos direcionados a um 
sujeito autônomo. Pelo contrário, a luta contra o assujeitamento faz com que os 
anarquistas deles se aproximem, restituindo coexistências e diversidades analíticas que 
afirmem subjetividades libertárias. Ao assim procederem, os anarquistas não somente se 
atualizam, mas libertam-se de  necessidades fundamentais. Pelo desmedido ato de 
pensar e atuar, estes autores legam aos anarquistas similitudes, proximidades, 
desassossegos, para um saber que de tempos em tempos foi declarado morto. 
Nada mais desesperador para o regime da  verdade verdadeira do que após declarar a 
morte e certificá-la por meio de tratados filosóficos, econômicos e humanitários, ver-se 
obrigado a reconhecer não ter havido morte no que permanecia vivo. A clínica da 
verdade, então, afirma sua  pertinência com base no erro eventual do diagnóstico e 
propicia aos seus elaboradores e defensores outras prerrogativas pautadas na incerteza 
perante o despertar do coma. Todo o dito e escrito é, então, redimensionado como algo 
derivado da apatia, estado de semi-vida e sinecura transitória. 
A vida dos anarquismos não se pronuncia por continuidades. Eles reaparecem 
surpreendendo pela atualidade da análise diante das eloqüentes formulações teóricas, os 
projetos políticos, o definitivo conceito, movimentando pessoas, afirmando seu 
nomadismo. 
Os anarquismos não ficaram desatentos à clínica. Nômades e avessos ao heroísmo, suas 
autorias sistematizam acontecimentos, revolvem suas noções, instabilizam suas próprias 
certezas transitórias. É certo que nos anarquismos há um projeto humanista. Do XIX até 
a metade do XX, eles muito poucos se distanciavam desta meta para atingir a maioridade
buscando a emancipação humana. Max Stirner e Friedrich Nietzsche já tinham levado ao 
limite a crítica ao projeto humanista descrevendo sua falta de limiares. Mas, diante da 
história da certeza, da utopia e da crítica aos efeitos da era dos direitos, as quimeras da 
igualdade, da liberdade e da fraternidade requeriam nudez. Para os anarquistas, 
verdadeiramente maior é o presente, vida como uma existência pautada na crítica à 
autoridade centralizada do poder pastoral ao poder de Estado. Alheios ao mito da fênix, 
os anarquismos estão presentes nos escombros dos regimes tanto quanto nas liberdades 
inventadas no cotidiano; eles não renascem de tempos em tempos, apenas existem. 
próximo do que se poderia imaginar das conclusões da crítica da economia política levadas a cabo por Karl 
Marx. É neste sentido que aproximo Deleuze de Bakunin, a partir do vigor da reflexão heterodoxa na busca pela 
liberdade. Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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Os anarquismos não saem das profundezas para atingirem a superfície em determinadas 
épocas. São constituídos do mesmo magma gelatinoso e febril que alimenta a Terra, que 
constrói sua crosta e vida. São rizomas na vegetação, formando a parte da superfície que 
se dilata por meio das lavas sobrepostas à crosta ou a novas superfícies que emergem 
das erupções oceânicas. Aprenderam certas  leis da natureza relativas a alimentação e 
abrigo, discernem a igualdade de todos fundada na ignorância e superada pela linguagem 
entendida como tradução, invenção de povos. Preferem ser nômades sobre a Terra, 
encarando os céus. 
Max Nettlau, seu mais cuidadoso arquivista, remete os anarquismos às experiências em 
longínquas fases da nossa existência para atualizar suas virtualidades em invenções de 
liberdade diante da autoridade centralizada. Jamais haverá liberdade absoluta ou 
dissociação completa da autoridade. Não há ciência universal porque não há o homem 
universal, explicitaram Proudhon e Bakunin, seus dois mais importantes sistematizadores 
no XIX. Contra a Idéia ou o Espírito, interpõem por meio da análise o fato repleto de 
forças, as quais mediante situações estratégicas que o Estado pretende controlar e 
dirigir, lado a lado com a religião e o capital, afirmam práticas libertárias de vida. Não há 
espírito absoluto ou consciência superior da verdade capazes de comandar libertários. O 
desejo de uma sociedade livre e igualitária é também a certeza que nunca haverá uma 
sociedade anarquista, imaginação que anularia a própria existência dos anarquismos. 
Seu projeto humanista repousa e se agita  no interior de um discurso que tem por 
finalidade realizar a emanciapação humana diante da emancipação política que situa os 
indivíduos num sono hipnótico de igualdade política e democracia que fazem progredir o 
regime da propriedade. 
A vida somente pode ser estudada por meio de séries que dêem conta dos sofrimentos. É 
por meio do método serial, como propunha  Proudhon, que nos afastamos de teorias, 
para abordar os elementos na série em  seus desconfortos, conflitos e tensões, 
pacificados em políticas por meio dos conceitos de povo, nação  e Estado. Um Estado, 
lembra Errico Malatesta, é sempre cobrança de impostos, polícia, exército, prisões e 
também religiões. Uma força que atua sobre as relações sociais, econômicas, culturais e 
intelectuais. Força que também está presente no que chamamos por políticas 
governamentais de saúde, educação, transportes, comunicações e, principalmente 
enquanto defesa de direitos de empresários diante dos direitos de trabalhadores. Onde 
houver Estado haverá um poder de autoridade centralizada disseminado pela sociedade. 
Forma-se, assim, uma rede de poderes, deveres e assujeitamentos. Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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É impossível definir o que é anarquismo. Ele é um fluxo de singularidades que coexistem. 
Por vezes, pretende-se afirmar que ele se ordena com base em relações de afinidades, 
forma de caracterizá-lo com base no  revolucionarismo emergente do discurso 
emancipatório, levado a cabo desde Bakunin. Se as singularidades são redesenhadas por 
meio das semelhanças fazendo aparecer o perigo iminente da força hegemônica, diante 
de tal situação justificada pelas contingências da história, antes que qualquer  condutor
apareça, o próprio movimento se pulveriza, negando a pretensa unificação por meio das 
afinidades. Não há como negar que uma perspectiva reformadora ou pacificista de 
Godwin e Proudhon, afirmando as revoluções como forma de restauração da autoridade 
central, exige mais micropolíticas que rupturas calcadas em movimentos sociais como 
afirmam suas partes revolucionaárias. Contudo, esta possível demarcação distintiva em 
duas séries, anula a pretensão à afinidade como conceito capaz de dar conta das relações 
entre estas duas séries por onde caminham os anarquismos. Tal limite constrange 
limiares, opõe vetores e instaura efeitos de hegemonia. Há de se concordar que tal 
disposição fez do bakunismo o grande motivador dos anarquismos, da revolução russa à 
guerra civil espanhola e ao maio de 68. Em especial, no Brasil, por meio das influências 
de Bakunin, Malatesta e Kropotkin, organizaram-se as mobilizações contundentes do 
início do século passado e persistem até hoje no seu inteiror, mas reduzir os 
anarquismos a um efeito de hegemonia, no caso o bakunismo, é perder de vista a 
coexistência nas singularidades. É entender suas existências a partir de critérios de 
política de Estado, de soberania, estudá-los, demarcá-los e julgá-los por meio de teorias. 
Há na coexistência um fato recorrente que interpõe ao sonho humanista, o confronto, o 
debate, a exigência de libertar-se da tolerância, a atitude voltaireana e religiosa. Não há 
sossego nos anarquismos, esteja ele convulsionado pelo acontecimento histórico ou pela 
vivência. Coexistem diferenças na associação de pessoas livres exercitando 
subjetividades libertárias. Não há Bakunin, por exemplo, que não esteja atravessado por 
Proudhon; não há cientificismo em Kropotkin que não esteja abalado por Proudhon; não 
há revolucionarismo livre de pacifismo; não há esperança na massa que não esteja 
desfeita pelo seu autoritarismo. Não há, enfim, coletivismo que não esteja interceptado 
por individualismo. Portanto, uma nova contraposição, agora, entre coletivismo e 
individualismo, seria inócua. Os anarquismos não pretendem dissociá-los e ao mesmo 
tempo preservarem suas liberdades diante  da condução burocrática pelo Estado, 
distinguindo o socialismo libertário do autoritário de Marx e Engels. O que era um sonho, 
uma utopia, para Marx, após a extinção do Estado é imprescindível no imediato para os Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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anarquistas para que ocorra a abolição do Estado
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, ou seja, a abolição da autoridade 
centralizada ocorre por meio de relações horizontalizadas estabelecidas entre os 
envolvidos. 
O principal problema reside na autonomia do indivíduo. Os anarquismos individualistas 
e/ou coletivistas afirmam miríades de associações federadas perante a iminência de uma 
possível sociedade totalizadora. Fundam-se  num direito de secessão, com base num 
contrato sinalagmático e comutativo, como formulou Proudhon, em um dos seus 
derradeiros escritos, Do princípio federativo. Nem regime de deveres para uma entidade, 
nem direitos para quem se governa; apenas afirmação de um  sujeito soberano. Eis o 
problema! Uma resolução simples e imediata teria como resposta apontar para a 
contradição entre os termos. Se no século  XVI, Etienne de la Boétie foi sagaz ao 
caracterizar a antinomia servidão voluntária,  o efeito no discurso anarquista do século 
XIX respondendo à sujeição e à servidão com soberania do sujeito apenas pretende 
afirmar, ainda que involuntariamente, a pertinência da soberania do sujeito emancipado. 
Mas qual o sentido em ser soberano sob condições de igualdade? Não há por que pensar 
em soberania, na medida em que deixa de haver súditos. Se os anarquismos não 
esperam pelo futuro, mas operam pelo presente, fazendo existir vida livre e igualitária no 
presente diante de uma política da qual  não se aparta, a vida somente pode ter 
existência libertária mediante a abolição do súdito
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. Abolir a condição de súdito é por si a 
abolição da soberania, seja ela centralizada no Estado ou no indivíduo autônomo. Não se 
trata de inverter sinais, do Estado para o sujeito autônomo, o que seria algo semelhante 
ao que faz acontecer a continuidade da  democracia no capitalismo por meio da 
representação renovada por eleições e exercício do sufrágio universal. 
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Não tenho a intenção aqui de investir na problematização acerca das diferenças entre anarquistas e marxistas no 
interior do discurso socialista. Muito menos tornar relevante a afirmação de Lenin, em O Estado e a revolução, 
que a distinção entre Proudhon e Marx resumia-se à escolha de meios diferentes para o mesmo fim. Convêm 
apenas sublinhar que tal distinção tem em Lenin o papel de afirmar a importância da hegemonia da consciência 
do partido diante do espontaneísmo libertário. 
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É Bakunin, em  Deus e o Estado, quem chama a atenção para a importância da ciência, das descobertas e 
vulgarização das leis da natureza, livres da academia científica, lugar análago à Igreja, Assembléia e Partido da 
revolução. Para ele, a autoridade se funda no conhecimento por meio da horizontalidade de saberes múltiplos. 
Diante do poder dos cientistas modernos, sacerdotes, políticos e vanguardistas, afirma a necessidade de se ouvir 
mais de uma opinião, comparar e decidir pelo que for mais justo. Este é o materialismo capaz de superar os 
demais idealismos da religião e da ciência. Não havendo a solução justa, mas a escolha pela mais justa, segundo 
o direito de secessão, não há sujeição que possa ser superada pelo sujeito autônomo, que por si só, não passa de 
outro idealismo. Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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Max Stirner, um anarquista nos anarquismos passa a ser uma referência heterotópica 
para os libertários, tanto quanto as  reflexões sobre Foucault e Deleuze. O  devir 
revolucionário de cada UM, proprietário de si, vibra e existe pelo outro, numa igualdade 
entre diferentes únicos e que independe de um convencimento íntimo para o fazer 
acontecer pela razão do outro. Dois, que são sempre cada UM, únicos proprietários de si 
existindo e associados pela razão outro, em conflito, tensão e debates. Os anarquismos 
atuam, vivem e afirmam não tanto pelo princípio da afinidade, mas pelo da coexistência. 
É no seu interior que a pretensa autonomia do sujeito se encontra sob tensão diante de 
cada luta contra o assujeitamento. 
Numa sociedade de controle que exige participação como forma de inibir resistências
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os 
anarquismos precisam da razão do outro libertário. Se quiserem responder ao que estão 
fazendo de si, terão que enfrentar os efeitos da crítica à autonomia do sujeito. 
Misérias da democracia 
No século XIX, Proudhon e Max Stirner, antecipando-se a Nietzsche anunciavam a 
democracia como religião moderna do rebanho. Desde a década de 1840, afirmava-se a 
contestação aos direitos que nos quer  direitos, ordeiros, ordenados, devedores e 
acalmados, por meio, inicialmente, da crítica ao contratualismo e à emancipação política 
para anunciar o ciclo socialista, no qual Proudhon e Marx, afirmaram dupla sinalização. 
De início um Marx libertário, em A questão judaica e em Crítica à filosofia do direito de 
Hegel, não admitia o socialismo por meio da ocupação do Estado  posição que passará 
a defender no final da década, em  O manifesto comunista e assumia a crítica de 
maneira análoga à de Proudhon. Ambos consideravam o mundo dos direitos como sendo 
o dos deveres para com a propriedade e seus dispositivos de segurança que caracterizam 
o homem genérico. A igualdade política cujo apogeu se cristalizava com democracia, 
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"Se as máquinas motrizes constituíram a Segunda idade da máquina técnica, as máquinas da cibernética e da 
informática formam uma terceira idade que recompõe um regime de servidão generalizado: ' sistemas homensmáquinas' , reversíveis e recorrentes, substituem as antigas relações de sujeição não reversíveis e não recorrentes 
entre dois elementos; a relação homem-máquina se faz em termos de comunicação mútua interior e não mais de 
uso ou ação. (...) Sublinhou-se recentemente a que ponto o exercício do poder moderno não se reduzia à 
alternativa clássica 'repressão ou ideologia' , mas  implicava processos de normalização, de modulação, de 
modelização, de informação, que se apóiam na linguagem, na percepção, no desejo, no movimento, etc., e que 
passam por micro-agenciamentos. É esse conjunto que  comporta ao mesmo tempo a sujeição e a servidão, 
levadas aos extremos, como duas partes simultâneas que não param de se reforçar e de se nutrir uma à outra." 
(Deleuze/Guattari, Mil platôs, São Paulo, Editora 34 Letras, vol. 5, pp: 157-158). Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
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constituição e sufrágio universal, perpetuava a desigualdade econômica fomentada pelo 
Estado, o capital e a religião. Tratava-se apenas de um novo instrumento de dominação. 
O cidadão encontrava-se sob o comando do homem burguês. O verdadeiro Homem, 
somente apareceria mediante a abolição do Estado. 
O que estávamos fazendo de nós mesmos?  O Estado investia numa política moderna 
organizada por meio de leis e do direito como veiculador de relações entre os súditos. 
Segundo Foucault, estava em jogo regular a população por meio da biopolítica em busca 
de investimento produtivo e dócil do corpo. Os liberais se orientavam pelo princípio que 
se governa sempre demais e encontravam no utilitarismo uma forma de 
governamentalidade propícia à redução da atuação do governo, pretendendo uma 
tecnologia de governo pautada na regulamentação jurídico-política como resposta quer à 
sabedoria ou à moderação dos governantes. O liberalismo, segundo Foucault, no século 
XIX, não seria mais do que uma reflexão  a respeito da prática governamental. Os 
socialistas, por sua vez, divididos em libertários e autoritários, exigiam abolição ou 
extinção do Estado. Para os marxistas o Estado seria o meio para afirmar o direito da 
verdadeira maioria, o agente para investimento verdadeiro em biopolítica e utilidade do 
corpo em nome do coletivo. A conquista do Estado seria a realização de uma consciência 
superior como meio para superar a desigualdade e o socialismo autoritário a plena 
realização da prática governamental. Contudo, para os anarquistas, o problema não 
residia nem no governar demais, nem no governo total. Diante da redutora 
regulamentação jurídico-política liberal ou do governo total, dos dispositivos 
individualizantes ou totalitários indissociáveis do Estado moderno como sublinhou 
Foucault, formas de continuidade da biopolítica e da utilidade  econômica e docilidade 
política em nome de um soberano centralizado, os anarquistas propunham a associação 
federativa, com base numa sociabilidade avessa a redutores ou maximizadores de 
Estado. Era preciso inventar uma vida pautada em novos costumes alheios ao castigo, à 
vingança, aos direitos sociais. 
A saúde do corpo por meio do investimento disciplinar e de biopolítica que atravessavam 
as relações sociais faziam da cidadania a forma eficaz e eficiente de promover a fácil 
condução com base na abdicação da  vontade à razão da representação.  Nós, nos 
encontrávamos em asilos, reformatórios, manicômios, prisões, em casamentos, fábricas, 
casernas, escolas, partidos e sindicatos  lugares de extração de energias produtivas e 
de reprodução; espaços de contenção mas também de desassossego, do intempestivo e 
do surpreendente. O investimento na inibição das resistências pela cidadania substituiu 
um direito fundado no perdão herdado do direito canônico e fez aparecer um direito por Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
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deveres em nome de todos os homens livres. O soberano não era mais o herdeiro mas 
todos, o povo, instituindo nova tradição.  Nós  tanto anarquistas como socialistas 
autoritárias, sabíamos que não éramos todos e queríamos ser todos. Ainda que, liberais e 
socialistas autoritários estivessem voltados para afirmar o soberano seja como exercício 
de governo que toma a população como sujeito de necessidades, aspirações e objeto 
pelo Estado pretendendo melhorar ou realizar a verdadeira sorte desta população, numa 
continuidade que ia da monarquia, passando pela democracia até o socialismo, os 
anarquistas procuravam atingir seu limite ou o fim desta continuidade ao investirem num 
sujeito soberano, autônomo, a partir de práticas cotidianas, de amor, arte, educação e 
economia. Os anarquistas são, portanto, diante da continuidade da teoria da soberania, 
seu limite e limiar imediato. Estabelecem vínculos com o socialismo autoritário no sentido 
que este atribui ao fim da história, com a socialização dos meios de produção, mas tratase apenas de uma afinidade tangencial. Para eles a tese da extinção do Estado, após a 
tomada do mesmo pelo partido da revolução e sua vanguarda, planificando a economia 
por meio da utilização dos dispositivos repressivos e de direitos contra a classe 
antagonista, institui uma administração das coisas, uma nova forma de dominação, ou 
seja, um idealismo que se pretende realista e concreto. Estava claro para os anarquistas 
que a administração das coisas supõe governo de homens e, por conseguinte, nova 
forma de dominação. 
Democracia e socialismo, desde o século XIX, estabeleceram tensões em direção ao 
redimensionamento do  nós em todos. As respostas socialistas, principalmente dos 
anarquistas voltavam-se para liberdade de amar, educar seus filhos com base no talento 
de cada um, federalizar a vida livre do contrato que supunha deveres, como se fosse 
possível acontecer um indivíduo livre e autônomo. A emancipação do direito e da 
exploração por meio de revoluções e pacifismos marcaram as resistências libertárias: o 
alvo era o Estado e todas as situações em que uma autoridade centralizada pudesse se 
constituir. 
A política como guerra prolongada por outros meios se afirmou nas democracias por 
meio do princípio da amizade transcendental pelo povo ou humanidade, atuação em 
parlamentos e partidos que elegem a todos  como inimigos (sabendo que a coalizão é 
apenas parte de um interesse circunstancial). A este tipo de integração os anarquistas se 
recusaram e não se prestaram a abdicar da  sua vontade em nome da representação. 
Diante da tomada do Estado como meio para a vida igualitária para todos, criaram lutas 
travadas no dia a dia. Recusaram a consciência superior, tanto dos investidores em 
produtividade em nome do direito, como dos deuses investidores em produtividade em Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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nome do socialismo, de todos. As resistências anarquistas se queriam menores diante da 
democracia e do socialismo autoritário, mas também não deixavam de buscar a 
maioridade como utopia. Contudo, para os anarquistas a democracia sempre se opôs a 
comunismo. Trata-se de uma  forma de governo na qual é possível a passagem da luta 
por constituição para a luta por federação e anarquia. O comunismo contemporâneo, por 
sua vez, não passa de um  revival de antigos patriarcalismos. Seu destino será sempre 
ditaduras e, neste sentido, se assemelha  à monarquia, ou seja, governo pautado na 
individibilidade do poder de Estado, do chefe, do pai. A democracia é ao mesmo tempo 
para os anarquistas um forma da miséria  a ser combatida que se funda na ilusória 
igualdade de todos e, por outro, forma de  governo pautada na divisão de poderes de 
Estado que beneficia uma experiência de liberdade para além do limite instituído pelos 
governos como forma de por um fim à desordem e melhorar as condições de vida da 
população. O Estado moderno, com mínima ou máxima intervenção, sob o liberalismo ou 
o socialismo, tanto faz, é em si forma acabada do dominação que conta com a 
continuidade da constituição dos súditos pelos próprios súditos. Não há democracia que 
salve o socialismo de Estado. 
Misérias do controle 
A democracia no capitalismo requer a continuidade da miséria, afirmou Gilles Deleuze, 
com precisão. No século XX, sob democracias e ditaduras, os anarquismos resistiram. 
Anarquizaram as centralidades, mas gradativamente foram deixando de anarquizar a si 
próprios; também pareciam estar sendo  apanhados, consagrando uma doutrina. 
Contudo, resistiram às redes de poderes  e reapareceram nos acontecimentos de 1968 
quando tudo levava a crer que suas práticas tinham sido esgotadas e superadas na 
Guerra Civil Espanhola. 
No interior da sociedade de controles contínuos, os lugares são redefinidos por fluxos. O 
investimento não é mais no corpo propriamente dito; interessa agora é extrair o máximo 
de energias inteligentes, fazer participar, criar condições para cada um se sentir atuando 
e decidindo no interior das políticas de governos, em organizações não-governamentais e 
na construção de uma economia eletrônica.  As relações interestatais deixam de ser 
preponderantes no âmbito internacional, cedendo lugar a relações transnacionais. Os 
asilos, as prisões, os hospitais, os manicômios, as escolas, o sexo, as crianças são 
atravessados por direitos.  Sociedade de plenos direitos. Mundo da modulação, da 
exigência de formação constante, de controle contínuo, de bancos  de dados no qual a Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
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cifra é a senha, caracterizou assim Deleuze, a nova configuração que ultrapassa sem 
suprimir por completo a sociedade disciplinar exaustivamente descrita por Foucault 
segundo o molde, a fábrica, a escola, o exame, a assinatura, a palavra de ordem. 
Estamos diante de uma sociedade em rede  exercida por protocolos e interfaces, uma 
sociedade de diplomacia e guerra entre uniões de Estados de um lado, e guerras que 
pleiteiam o estatuto de Estado-nação por parte de etnias que pretendem afirmar suas 
especificidades. Uma sociedade em transição opondo o que ela superou e seus próprios 
vestígios. Um estágio superior de democracia diante de formas tradicionais de 
combinação entre razão moderna e religião,  uma estranha e eficaz convivência entre 
democracia e teocracia. 
A sociedade eletrônica, pautada em fluxos que se atualizam, confirmam a 
desterritorialização não só do capital,  já sobejamente conhecida, mas também dos 
trabalhadores ou parte deles libertados do confinamento territorial que impunha o 
Estado-nação até a fase do imperialismo. Ela  traz para dentro de si todas as formas 
possíveis de saberes cujas verdades se refazem por meio da confiança aos protocolos. É 
preciso reformar constantemente. No regime de controle não se deve ter nada acabado 
mas, ao contrário, ele se fortalece por meio da noção de inacabado convocando a todos a 
participarem ativamente da busca por maior produtividade e confiança na integração. 
Não se pretende mais docilizar, apenas criar dispositivos diplomáticos de construção de 
bens materiais e imateriais que contemplem a adesão de todos. Comunicar intensamente 
e instantaneamente é a maneira pela qual  os agenciamentos coletivos dinamizam as 
máquinas. Estamos pois, segundo Deleuze,  na era das máquinas cibernéticas de 
computadores. Estamos num mundo de direitos que não mais disciplinam as forças mas 
que consagram suas vidas como agentes participantes do próprio controle. Não há mais 
trabalho manual subordinado ao intelectual, apenas uma reviravolta na qual a vida 
somente existe para quem é trabalhador intelectual. Aos demais, os efeitos de vestígios a 
serem superados ou filantropias circunstanciais e circunstanciadas. 
A participação contínua dá sentido ao  controle contínuo. Todos precisamos ser 
democráticos, uma democracia de antecipação por meio de sondagens. Não se abdica do 
castigo ou da disciplina, mas agora se investe de outra maneira: o alvo é a rede Estado 
para o corpo são, outro redimensionamento da biopolítica. Mas o Estado também não é 
mais somente investimento sobre o território ou população, é principalmente, 
investimento no planeta, no espaço celestial. A biopolítica da população cede lugar, 
então, a uma ecopolítica planetária. Não há mais corpo no interior do corpo planeta, mas 
corpo planeta no espaço sideral: fazer a vida para a ocupação do espaço sideral. Não há Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
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lugares como investimento produtivo, mas fluxos. Não há mais o produtivo especialista 
disciplinar e disciplinado, mas o polivalente atuante, transparente. Não mais corpomáquina, corpo-espécie, mas corpo-planeta. 
Resistir não é apenas redimensionar as  sabotagens como insinuou Deleuze. Uma 
sabotagem na rede eletrônica é parte do controle contínuo, ela é apanhada 
produtivamente, é acesso a saberes procedentes de fluxos que se misturam: há uma 
educação em rede, como na Internet, que  estimula uma criação auto-didata que se 
separa dos controles das ciências humanas e  cria conhecimento. Diante da tradição do 
saber aristocratizado da cultura ocidental, a rede democratiza saberes, mas por meio de 
protocolos e confianças, aristocratiza interfaces. Não há mais mecânica ou eletricidade no 
comando e sim eletrônica que, do ponto de  vista da materialidade, funciona também 
inibindo resistências. Mas há também     e  como  não  deixar  de  constatar  opressão e 
domínio que atualizam resistências. A questão, ou as questões, que se colocam dizem 
respeito sem dúvida aos agenciamentos, posto que o regime aristocrático de protocolos e 
interfaces é compartilhado  produtiva e simultaneamente pelas redes de Estados em 
união (de União Européia a Mercosul) como por pleiteadores de Estados-nação (de 
palestinos a minorias étnicas em geral), como por associações libertárias. O acesso aos 
meios eletrônicos permanecem agenciados  de maneira a perpetuar a miséria. Neste 
sentido, atribuir à Internet  ou derivadas, um caráter democrático é apenas sinalizar 
favoravelmente em relação à perpetuação da miséria de maneira análoga à da 
proliferação dos direitos. 
De sorte que vivemos numa sociedade de controle que se afirma antes de tudo como 
sociedade de difusão de direitos e que encontrou no multiculturalismo sua forma mais 
atroz. Veio  dar  direitos a todos no momento em que o corpo deixou de ser parte 
conjugada da máquina energética. O direito  não é mais acesso, mas condição para a 
continuidade dos súditos reinventores de soberanias  desterritorializantes. São 
convocados pelos fluxos produtivos eletrônicos que não requerem mais o corpo inteiro, 
mas apenas inteligência. O Estado não investe mais na formação corpo são. Agora ele 
necessita do corpo são já agenciado: sua inteligência, participação contínua e defesa 
democrática. Aos demais, parece não haver nada mais a fazer senão disponibilizá-los 
para filantropias de múltiplas ordens. O Estado, então, existe como agenciador produtivo 
ao lado das empresas e organizações não-governamentais para administração de corpos 
desnecessários, trazendo para o centro das controvérsias a ética da fraternidade. Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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Tomando-se o triângulo perfeito da revolução francesa que levou inicialmente ao 
confronto pelas liberdades, sua afirmação e contestação relativa à emancipação humana 
em busca de igualdade e constatada a  vitória  capitalista para  todos, se reconhecem os 
princípios de liberdade e igualdade e se passa a investir em fraternidade. As misérias 
assim o requerem para que a sociedade de controle com sua materialidade eletrônica e 
democrática se afirme. 
Diante dos fluxos que apanham a todos e que criamos para todos participarem ainda 
estamos tomados por saberes providenciais. Não é estranho que se ajustem tão bem 
razão e religião com conservadorismo, democracia midiática, transdisciplinaridades... 
Ainda se pensa em sociedade, a melhor sociedade, a melhor sociedade que seja capaz de 
preservar-se das armas biológicas e químicas que ela mesma criou para se proteger. É 
preciso cada vez mais segurança e proteção contra os  virus que atingem inteligências 
produtivas de corpos e máquinas e que podem ser acionados de qualquer lugar, de 
qualquer Estado, a partir de qualquer organização não-governamental, ou indivíduos, de 
perícias da inteligência capazes de colocar  em risco a espécie, mas jamais o planeta. 
Como resistir a fluxos? Por meio de contra-fluxos? 
Anarquizar quem sabe seja pensar sem pensamento (da razão verdadeira, soberana, ou 
das religiões), como uma criança, este ser que se encontra no mundo da arte, da luta 
pelo objeto querido como um guerreiro que não visa a destruição, como sublinhou Max 
Stirner, como desejava Nietzsche, pensadores que pensaram a si próprios, livres de uma 
consciência, como heterotopias, diferentes. Stirner não se iludia com a autonomia do 
sujeito soberano defendida por Proudhon.  Jamais passara pelo seu pensamento que 
pudesse aparecer algo como consciência superior externa como Lenin ao aperfeiçoar 
Marx. Se Proudhon e Marx estavam certos que a democracia seria a religião do rebanho 
no século XX, Nietzsche estava correto ao  afirmar que o socialismo não alçaria vôo. E 
Stirner que somente a associação entre iguais diferentes, associações inacabas, em 
fluxos, acabariam com a providência divina e da razão. As associações articuladas como 
miríades, exigem pessoas únicas, livres de direitos, subversivas em busca do objeto. Não 
são pessoas autônomas mas componentes de  uma subjetividade que afirma não mais 
todos ou muitos, mas justamente seus reversos, uns. Uma prática de liberdade que não 
exige fidelidade mas lealdade, não ser fiel (religioso, confessional e trapaceiro) a si, ao 
povo, ou a estes pensadores que inventam povos, como Stirner, Nietzsche, Foucault ou 
Deleuze: amizade não como transcendência, mas imanência, coisa própria de amigos, os 
melhores inimigos. Colóquio Foucault/Deleuze-2000/Unicamp-São Paulo 
O que estamos fazendo de nós mesmos?
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Foucault, sutil e contundente, revirando o  pensamento sobre si, como estética da 
existência e Deleuze, generoso com outros pensadores para si, inventando autorias, são 
fluxos para os anarquismos, por anarquizá-lo. Expressam por meio de suas reflexões 
pontos que tocam os anarquismos e merecem  ser tocados por Stirner tanto quanto se 
deixaram atingir por Nietzsche. São para  nós mesmos, para mim, pra você, como os 
versos de Arnaldo Antunes: "o que não pode ser/ ser que não é/ é o que é/ o quê?".
 
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