Francis
Bacon
Prefácio do Autor
AFORISMOS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I
LIVRO II
Notas
AFORISMOS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I
LIVRO II
Notas
NOVUM ORGANUM
PREFÁCIO DO AUTOR
Todos aqueles que ousaram
proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento, por convicção,
por vezo professoral ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à
filosofia quanto às ciências. Pois, fazendo valer a sua opinião, concorreram
para interromper e extinguir as investigações. Tudo mais que hajam feito não compensa
o que nos outros corromperam e fizeram malograr. Mas os que se voltaram para
caminhos opostos e asseveraram que nenhum saber é absolutamente seguro, venham
suas opiniões dos antigos sofistas, da indecisão dos seus espíritos ou, ainda,
de mente saturada de doutrinas, alegaram para isso razões dignas de respeito.
Contudo, não deduziram suas afirmações de princípios verdadeiros e, levados
pelo partido e pela afetação, foram longe demais. De outra parte, os antigos
filósofos gregos, aqueles cujos escritos se perderam, colocaram-se, muito
prudentemente, entre a arrogância de sobre tudo se poder pronunciar e o
desespero da acatalepsia.[1]
Verberando com indignadas queixas as dificuldades da investigação e a
obscuridade das coisas, como corcéis generosos que mordem o freio, perseveraram
em seus propósitos e não se afastaram da procura dos segredos da natureza.
Decidiram, assim parece, não debater a questão de se algo pode ser conhecido,
mas experimentá-lo. Não obstante, mesmo aqueles, estribados apenas no fluxo
natural do intelecto, não empregaram qualquer espécie de regra, tudo
abandonando à aspereza da meditação e ao errático e perpétuo revolver da
mente.
Nosso método,[2] contudo,
é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no
estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e
rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto
sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que,
de resto, provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que
também divisaram os que tanto concederam à dialética.[3] Tornaram
também manifesta a necessidade de escoras para o intelecto, pois colocaram sob
suspeita o seu processo natural e o seu movimento espontâneo. Mas tal remédio
vinha tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente ocupada pelos usos
do convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais vã idolatria.[4] Pois a
dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em nada modificando o
andamento das coisas, mais serviu para firmar os erros que descerrar a verdade.
Resta, como única salvação, reempreender-se inteiramente a cura da mente. E,
nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma, mas
permanentemente regulada, como que por mecanismos. Se os homens tivessem
empreendido os trabalhos mecânicos unicamente com as mãos, sem o arrimo e a
força dos instrumentos, do mesmo modo que sem vacilação atacaram as empresas do
intelecto, com quase apenas as forças nativas da mente, por certo muito pouco
se teria alcançado, ainda que dispusessem para o seu labor de seus extremos
recursos.
Considere-se, por um momento,
este exemplo que é como um espelho. Imagine-se um obelisco de respeitável
tamanho a ser conduzido para a magnificência de um triunfo, ou algo análogo, e
que devesse ser removido tão-somente pelas mãos dos homens. Não reconheceria
nisso o espectador prudente um ato de grande insensatez? E esta não pareceria
ainda maior se pelo aumento dos operários se confiasse alcançar o que se
pretendia? E, resolvendo fazer uso de algum critério, se se decidisse pôr de
lado os fracos e colocar em ação unicamente os robustos e vigorosos, esperando
com tal medida lograr o propósito colimado, não proclamaria o espectador
estarem eles cada vez mais caminhando para o delírio? E, se, ainda não
satisfeitos, decidissem, por fim, os dirigentes recorrer à arte atlética e
ordenassem a todos se apresentarem logo, com as mãos, os braços e os músculos untados
e aprestados, conforme os ditames de tal arte: não exclamaria o espectador
estarem eles a enlouquecer, já agora com certo cálculo e prudência? E se, por
outro lado, os homens se aplicassem aos domínios intelectuais, com o mesmo
pendor malsão e com aliança tão vã, por mais que esperassem, seja do grande
número e da conjunção de forças, seja da excelência e da acuidade de seus
engenhos; e, ainda mais, se recorressem, para o revigoramento da mente, à
dialética (que pode ser tida como uma espécie de adestramento atlético), pareceriam,
aos que procurassem formar um juízo correto, não terem desistido ainda de
usar, sem mais, o mero intelecto, apesar de tanto esforço e zelo. E
manifestamente impraticável, sem o concurso de instrumentos ou máquinas, conseguir-se
em qualquer grande obra a ser empreendida pela mão do homem o aumento do seu
poder, simplesmente, pelo fortalecimento de cada um dos indivíduos ou pela
reunião de muitos deles.
Depois de estabelecermos essas
premissas, destacamos dois pontos de que queremos os homens claramente
avisados, O primeiro consiste em que sejam conservados intactos e sem
restrições o respeito e a glória que se votam aos antigos, isso para o bom
transcurso de nossos fados e para afastar de nosso espírito contratempos e
perturbações. Desse modo, podemos cumprir os nossos propósitos e, ao mesmo
tempo, recolher os frutos de nossa discrição. Com efeito, se pretendemos
oferecer algo melhor que os antigos e, ainda, seguir alguns caminhos por eles
abertos, não podemos nunca pretender escapar à imputação de nos termos
envolvido em comparação ou em contenda a respeito da capacidade de nossos
engenhos. Na verdade, nada há aí de novo ou ilícito. Por que, com efeito, não
podemos, no uso de nosso direito que, de resto, é o mesmo que o de todos —,
reprovar e apontar tudo o que, da parte daqueles, tenha sido estabelecido de
modo incorreto? Mas, mesmo sendo justo e legítimo, o cotejo não pareceria entre
iguais, em razão da disparidade de nossas forças. Todavia, visto intentarmos a descoberta
de vias completamente novas e desconhecidas para o intelecto, a proposição fica
alterada. Cessam o cuidado e os partidos, ficando a nós reservado o papel de
guia apenas, mister de pouca autoridade, cujo sucesso depende muito mais da
boa fortuna que da superioridade de talento. Esta primeira advertência só diz
respeito às pessoas. A segunda, à matéria de que nos vamos ocupar.
É preciso que se saiba não ser
nosso propósito colocar por terra as filosofias ora florescentes ou qualquer
outra que se apresente, com mais favor, por ser mais rica e correta que
aquelas. Nem, tampouco, recusamos às filosofias hoje aceitas, ou a outras do
mesmo gênero, que nutram as disputas, ornem os discursos, sirvam o mister dos
professores e que provejam as demandas da vida civil. De nossa parte,
declaramos e proclamamos abertamente que a filosofia que oferecemos não
atenderá, do mesmo modo, a essas coisas úteis. Ela não é de pronto acessível,
não busca através de prenoções a anuência do intelecto, nem pretende, pela
utilidade ou por seus efeitos, pôr-se ao alcance do comum dos homens.
Que haja, pois talvez seja
propício para ambas as partes, duas fontes de geração e de propagação de
doutrinas. Que haja igualmente duas famílias de cultores da reflexão e da filosofia,
com laços de parentesco entre si, mas de modo algum inimigas ou alheia uma da
outra, antes pelo contrário coligadas. Que haja, finalmente, dois métodos, um
destinado ao cultivo das ciências e outro destinado à descoberta científica.
Aos que preferem o primeiro caminho, seja por impaciência, por injunções da
vida civil, seja pela insegurança de suas mentes em compreender e abarcar a
outra via (este será, de longe, o caso da maior parte dos homens), a eles
auguramos sejam bem sucedidos no que escolheram e consigam alcançar aquilo que
buscam. Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso
presente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam
preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas
na vitória sobre a natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e
prováveis, mas em conhecer a verdade de forma clara e manifesta; esses, como
verdadeiros filhos da ciência, que se juntem a nós, para, deixando para trás os
vestíbulos das ciências, por tantos palmilhados sem resultado, penetrarmos em
seus recônditos domínios. E, para sermos melhor atendidos e para maior
familiaridade, queremos adiantar o sentido dos termos empregados. Chamaremos ao
primeiro método ou caminho de Antecipação da Mente e ao segundo de Interpretação
da Natureza.
Para algo mais chamamos a
vossa atenção. Procuramos cercar nossas reflexões dos maiores cuidados, não
apenas para que fossem verdadeiras, mas também para que não se apresentassem de
forma incômoda e árida ao espírito dos homens, usualmente tão atulhado de
múltiplas formas de fantasia. Em contrapartida, solicitamos dos homens,
sobretudo em se tratando de uma tão grandiosa restauração do saber e da
ciência, que todo aquele que se dispuser a formar ou emitir opiniões a respeito
do nosso trabalho, quer partindo de seus próprios recursos, da turba de
autoridades, quer por meio de demonstrações (que adquiriram agora a força das
leis civis), não se disponha a fazê-lo de passagem e de maneira leviana. Mas
que, antes, se inteire bem do nosso tema; a seguir, procure acompanhar tudo o
que descrevemos e tudo a que recorremos; procure habituar-se à complexidade das
coisas, tal como é revelada pela experiência; procure, enfim, eliminar, com
serenidade e paciência, os hábitos pervertidos, já profundamente arraigados na
mente. Aí então, tendo começado o pleno domínio de si mesmo, querendo, procure
fazer uso de seu próprio juízo.
LIVRO I
AFORISMOS
I
O homem, ministro e intérprete
da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou
pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais.
II
Nem a mão nua nem o intelecto,
deixados a si mesmos, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos
e recursos auxiliares, de que dependem, em igual medida, tanto o intelecto
quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o
movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm.
III
Ciência e poder do homem
coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a
natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação
apresenta-se como causa é regra na prática.
IV
No trabalho da natureza o
homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a
própria natureza, em si mesma.
V
No desempenho de sua arte,
costumam imiscuir-se na natureza o tísico, o matemático, o médico, o alquimista
e o mago. Todos eles, contudo — no presente estado das coisas —, fazem-no com
escasso empenho e parco sucesso.
VI
Seria algo insensato, em si
mesmo contraditório, estimar poder ser realizado o que até aqui não se
conseguiu fazer, salvo se se fizer uso de procedimentos ainda não tentados.
VII
As criações da mente e das
mãos parecem sobremodo numerosas, quando vistas nos livros e nos ofícios.
Porém, toda essa variedade reside na exímia sutileza e no uso de um pequeno
número de fatos já conhecidos e não no número dos axiomas.[5]
VIII
Mesmo os resultados até agora
alcançados devem-se muito mais ao acaso e a tentativas que à ciência. Com
efeito, as ciências que ora possuímos nada mais são que combinações de
descobertas anteriores. Não constituem novos métodos de descoberta nem esquemas
para novas operações.
IX
A verdadeira causa e raiz de
todos os males que afetam as ciências é uma única: enquanto admiramos e
exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios
adequados.
X
A natureza supera em muito, em
complexidade, os sentidos e o intelecto. Todas aquelas belas meditações e
especulações humanas, todas as controvérsias são coisas malsãs. E ninguém disso
se apercebe.
XI
Tal como as ciências, de que
ora dispomos, são inúteis para a invenção de novas obras, do mesmo modo, a
nossa lógica atual é inútil para o incremento das ciências.
XII
A lógica tal como é hoje usada
mais vale para consolidar e perpetuar erros, fundados em noções vulgares, que
para a indagação da verdade, de sorte que é mais danosa que útil.
XIII
O silogismo não é empregado
para o descobrimento dos princípios das ciências; é baldada a sua aplicação a
axiomas intermediários, pois se encontra muito distante das dificuldades da
natureza. Assim é que envolve o nosso assentimento, não as coisas.
XIV
O silogismo consta de
proposições, as proposições de palavras, as palavras são o signo das noções.
Pelo que, se as próprias noções (que constituem a base dos fatos) são confusas
e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas depende pode pretender
solidez. Aqui está por que a única esperança radica na verdadeira indução.
XV
Não há nenhuma solidez nas
noções lógicas ou físicas. Substância, qualidade, ação, paixão, nem
mesmo ser, são noções seguras. Muito menos ainda as de pesado, leve,
denso, raro, úmido, seco, geração, corrupção, atração, repulsão, elemento,
matéria, forma e outras do gênero. Todas são fantásticas e mal definidas.
XVI
As noções das espécies
inferiores, como as de homem, cão, pomba, e as de percepção imediata
pelos sentidos, como quente, frio, branco, negro, não estão sujeitas a
grandes erros. Mas mesmo estas, devido ao fluxo da matéria e combinação das
coisas, também por vezes se confundem. Tudo o mais que o homem até aqui tem
usado são aberrações, não foram abstraídas e levantadas das coisas por
procedimentos devidos.
XVII
Não é menor que nas noções o
capricho e a aberração na constituição dos axiomas. Vigem aqui os mesmos
princípios da indução vulgar. E isso ocorre em muito maior grau nos axiomas e
proposições que se alcançam pelo silogismo.
XVIII
Os descobrimentos até agora
feitos de tal modo são que, quase só se apoiam nas noções vulgares. Para que se
penetre nos estratos mais profundos e distantes da natureza, é necessário que
tanto as noções quanto os axiomas sejam abstraídos das coisas por um método
mais adequado e seguro, e que o trabalho do intelecto se torne melhor e mais
correto.
XIX
Só há e só pode haver duas
vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no
saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a
seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e
de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os
axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e
gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima
generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado.
XX
Na primeira das vias o
intelecto deixado a si mesmo acompanha e se fia nas forças da dialética. Pois a
mente anseia por ascender aos princípios mais gerais para aí então se deter. A
seguir, desdenha a experiência. E tais males são incrementados pela dialética,
na pompa de suas disputas.
XXI
O intelecto, deixado a si
mesmo, na mente sóbria, paciente e grave, sobretudo se não está impedida pelas
doutrinas recebidas, tenta algo na outra via, na verdadeira, mas com escasso
proveito. Porque o intelecto não regulado e sem apoio é irregular e de todo
inábil para superar a obscuridade das coisas.
XXII
Tanto uma como a outra via
partem dos sentidos e das coisas particulares e terminam nas formulações da
mais elevada generalidade. Mas é imenso aquilo em que discrepam. Enquanto que
uma perpassa na carreira pela experiência e pelo particular, a outra aí se
detém de forma ordenada, como cumpre. Aquela, desde o início, estabelece
certas generalizações abstratas e inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas
coisas que são realmente as mais comuns na natureza.
XXIII
Não é pequena a diferença
existente entre os ídolos da mente humana e as idéias [6] da mente
divina, ou seja, entre opiniões inúteis e as verdadeiras marcas e impressões
gravadas por Deus nas criaturas. tais como de fato se encontram.
XXIV
De modo algum se pode admitir
que os axiomas constituídos pela argumentação valham para a descoberta de novas
verdades, pois a profundidade da natureza supera de muito o alcance do
argumento. Mas os axiomas reta e ordenadamente abstraídos dos fatos
particulares, estes sim, facilmente indicam e designam novos fatos particulares
e, por essa via, tornam ativas as ciências.
XXV
Os axiomas ora em uso decorrem
de experiência rasa e estreita e a partir de poucos fatos particulares, que
ocorrem com freqüência; e estão adstritos à sua extensão. Daí não espantar que
não levem a novos fatos particulares. Assim, se caso alguma instância [7] não antes
advertida ou cogitada se apresenta, graças a alguma distinção frívola
procura-se salvar o axioma, quando o mais verdadeiro seria corrigi-lo.
XXVI
Para efeito de explanação,
chamamos à forma ordinária da razão humana voltar-se para o estudo da natureza
de antecipações da natureza (por se tratar de intento temerário e
prematuro). E à que procede da forma devida, a partir dos fatos, designamos por
interpretação da natureza.
XXVII
As antecipações são fundamento
satisfatório para o consenso,[8] pois, se
todos os homens se tornassem da mesma forma insanos, poderiam razoavelmente
entender-se entre si.
XXVIII
Ainda mais, as antecipações
são de muito mais valia para lograr o nosso assentimento, que as interpretações;
pois, sendo coligidas a partir de poucas instâncias e destas as que mais
familiarmente ocorrem, desde logo empolgam o intelecto e enfunam a fantasia;
enquanto que as interpretações, pelo contrário, sendo coligidas a partir de múltiplos
fatos, dispersos e distanciados, não podem, de súbito, tocar o intelecto, de
tal modo que, à opinião comum, podem parecer quase tão duras e dissonantes
quanto os mistérios da fé.
XXIX
Nas ciências que se fundam nas
opiniões e nas convenções é bom o uso das antecipações e da dialética, já que
se trata de submeter o assentimento e não as coisas.
XXX
Mesmo que se reunissem, se
combinassem e se conjugassem os engenhos de todos os tempos, não se lograria
grande progresso nas ciências, através das antecipações, porque os erros
radicais perpetrados na mente, na primeira disposição, não se curariam nem
pela excelência das operações nem pelos remédios subseqüentes.
XXXI
Vão seria esperar-se grande
aumento nas ciências pela superposição ou pelo enxerto do novo sobre o velho.
É preciso que se faça uma restauração da empresa a partir do âmago de suas
fundações, se não se quiser girar perpetuamente em círculos, com magro e quase
desprezível progresso.
XXXII
A glória dos antigos, como a
dos demais, permanece intata, pois não se estabelecem comparações entre
engenhos e capacidades, mas de métodos. Não nos colocamos no papel de juiz, mas
de guia.
XXXIII
Seja dito claramente que não
pode ser formulado um juízo correto nem sobre o nosso método nem sobre as suas
descobertas pelo critério corrente — as antecipações; pois não nos podem pedir
o acolhimento do juízo cuja própria base está em julgamento.
XXXIV
Não é, com efeito, empresa
fácil transmitir e explicar o que pretendemos, porque as coisas novas são
sempre compreendidas por analogia com as antigas.
XXXV
Disse Bórgia, da expedição dos
franceses à Itália, que vieram com o giz nas mãos para marcar os seus
alojamentos, e não com armas para forçar passagem. Nosso propósito é
semelhante: que a nossa doutrina se insinue nos espíritos idôneos e capazes.
Não fazemos uso da refutação quando dissentimos a respeito dos princípios, dos
próprios conceitos e formas da demonstração.
XXXVI
Resta-nos um único e simples
método, para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos
particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se
sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato
direto das coisas.
XXXVII
Coincidem, até certo ponto, em
seu inicio, o nosso e o método daqueles que usaram da acatalepsia. Mas
nos pontos de chegada, imensa distância nos separa e opõe. Aqueles, com efeito,
afirmaram cabalmente que nada pode ser conhecido. De nossa parte, dizemos que
não se pode conhecer muito acerca da natureza, com auxílio dos procedimentos
ora em uso. E, indo mais longe, eles destroem a autoridade dos sentidos e do
intelecto, enquanto que nós, ao contrário, lhes inventamos e subministramos
auxílios.
XXXVIII
Os ídolos e noções falsas que
ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o
obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu
pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria
instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles,
se cuidem o mais que possam.
XXXIX
São de quatro gêneros os
ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos
nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos
do Teatro.[9]
XL
A formação de noções e axiomas
pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e
repelir os ídolos. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consistem,
posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o
mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar.
XLI
Os ídolos da tribo
estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana.
E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito
ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam
analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é
semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa
forma, as distorce e corrompe.
XLII
Os ídolos da caverna [10] são os
dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da
natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e
corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada
um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos
livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela
diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou
em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se
acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e
até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito [11] que os homens
buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.
XLIII
Há também os ídolos
provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos
indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do
foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens
se associam graças ao discurso,[12] e as
palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria
e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as
explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos
domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o
intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a
inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.
XLIV
Há, por fim, ídolos que
imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas
filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do
teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras
tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e
teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas
dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que
as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não
pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos
numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da
tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais
ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja
acautelado.
XLV
O intelecto humano, mercê de
suas peculiares propriedades, facilmente supõe maior ordem e regularidade nas
coisas que de fato nelas se encontram. Desse modo, como na natureza existem
muitas coisas singulares e cheias de disparidades, aquele imagina paralelismos,
correspondências e relações que não existem. Daí a suposição de que no céu
todos os corpos devem mover-se em círculos perfeitos, rejeitando por
completo linhas espirais e sinuosas, a não ser em nome. Daí, do mesmo modo, a
introdução do elemento fogo com sua órbita, para constituir a quaderna com os
outros três elementos que os sentidos apreendem. Também de forma arbitrária se
estabelece, para os chamados elementos, que o aumento respectivo de sua
rarefação se processa em proporção de um para dez, e outras fantasias da mesma
ordem. E esse engano prevalece não apenas para elaboração de teorias como
também para as noções mais simples.
XLVI
O intelecto humano, quando
assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque o
agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não
observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a
distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo.
Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada.
E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos
que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se
recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez: “E onde
estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?” [13] Essa é a
base de praticamente toda superstição, trate-se de astrologia, interpretação de
sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras,
marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha o que é bem mais
freqüente —, negligenciam-nos e passam adiante. Esse mal se insinua de maneira
muito mais sutil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceito tudo
impregna e reduz o que segue. até quando parece mais firme e aceitável. Mais
ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a
que nos referimos, o intelecto humano tem o erro peculiar e perpétuo de mais se
mover e excitar pelos eventos afirmativos que pelos negativos, quando deveria
rigorosa e sistematicamente atentar para ambos. Vamos mais longe: na
constituição de todo axioma verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas.
XLVII
O intelecto humano se deixa
abalar no mais alto grau pelas coisas que súbita e simultaneamente se
apresentam e ferem a mente e ao mesmo tempo costumam tomar e inflar a
imaginação. E a partir disso passa a conceber e supor, conquanto que
imperceptivelmente, tudo o mais, do mesmo modo que o pequeno número de coisas
que ocupam a mente. Contudo, para cumprir o percurso até os fatos remotos e
heterogêneos, pelos quais os axiomas se provam como pelo fogo — a não ser que
duras leis e violenta autoridade o imponham , mostra-se tardo e inepto.
XLVIII
O intelecto humano se agita
sempre, não se pode deter ou repousar, sempre procura ir adiante. Mas sem
resultado. Daí ser impensável, inconcebível que haja um limite extremo e
último do mundo. Antes, sempre ocorre como necessária a existência de mais algo
além. Nem tampouco se pode cogitar de como a eternidade possa ter transcorrido
até os dias presentes, posto que a distinção geralmente aceita do infinito, como
comportando uma parte já transcorrida e uma parte ainda por vir, não pode de
modo algum subsistir, em vista de que se seguiria o absurdo de haver um
infinito maior que outro, como se o infinito pudesse consumir-se no finito.
Semelhante é o problema da divisibilidade da reta ao infinito, coisa impossível
de ser pensada. Mas de maneira mais perniciosa se manifesta essa incapacidade
da mente na descoberta das causas: pois, como os princípios universais da
natureza, tais como são encontrados, devem ser positivos, não podem ter uma
causa. Mas, mesmo assim, o intelecto humano, que se não pode deter, busca algo.
Então, acontece que buscando o que está mais além acaba por retroceder ao que
está mais próximo, seja, as causas finais, que claramente derivam da natureza
do homem e não do universo. Aí está mais uma fonte que por mil maneiras
concorre para a corrupção da filosofia. Há tanta imperícia e leviandade dessa
espécie de filósofos, na busca das causas do que é universal, quanto
desinteresse pelas causas dos fatos secundários e subalternos.[14]
XLIX
O intelecto humano não é luz
pura,[15] pois
recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que
se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista
disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a
sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em
favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do
orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por
respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o
sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto.
L
Mas os maiores embaraços e
extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das
falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma que as coisas que afetam os
sentidos preponderam sobre as que, mesmo não o afetando de imediato, são mais
importantes. Por isso, a observação não ultrapassa os aspectos visíveis das
coisas, sendo exígua ou nula a observação das invisíveis. Também escapam aos
homens todas as operações dos espíritos latentes nos corpos sensíveis.
Permanecem igualmente desconhecidas as mudanças mais sutis de forma das partes
das coisas mais grossas (o vulgo sói chamar a isso de alteração, quando na
verdade se trata de translação) em espaços mínimos.[16] Até que
fatos, como os dois que indicamos, não sejam investigados e esclarecidos,
nenhuma grande obra poderá ser empreendida na natureza. E ainda a própria
natureza do ar comum, bem como de todos os corpos de menor densidade (que são
muitos), é quase por completo desconhecida. Na verdade, os sentidos, por si
mesmos, são algo débil e enganador, nem mesmo os instrumentos destinados a
ampliá-los e aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da
natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e adequados, onde
os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga a natureza e a
própria coisa.
LI
O intelecto humano, por sua
própria natureza, tende ao abstrato, e aquilo que flui, permanente lhe parece.
Mas é melhor dividir em partes a natureza que traduzi-la em abstrações. Assim
procedeu a escola de Demócrito, que mais que as outras penetrou os segredos da
natureza. O que deve ser sobretudo considerado é a matéria, os seus esquematismos,
os metaesquematismos, o ato puro, e a lei do ato, que é o
movimento. As formas são simples ficções do espírito humano, a não ser que
designemos por formas as próprias leis do ato.[17]
LII
Tais são os ídolos a que
chamamos de ídolos da tribo, que têm origem na uniformidade da substância
espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou
na sua contínua instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na
incompetência dos sentidos ou no modo de receber impressões.
LIII
Os ídolos da caverna têm
origem na peculiar constituição da alma e do corpo de cada um; e também na
educação, no hábito ou em eventos fortuitos. Como as suas espécies são
múltiplas e várias, indicaremos aquelas com que se deve ter mais cuidado, por
se tratar das que têm maior alcance na turbação da limpidez do intelecto.
LIV
Os homens se apegam às
ciências e a determinados assuntos, ou por se acreditarem seus autores ou
descobridores, ou por neles muito se terem empenhado e com eles se terem
familiarizado. Mas essa espécie de homens, quando se dedica à filosofia e a
especulações de caráter geral, distorce e corrompe-as em favor de suas
anteriores fantasias. Isso pode ser especialmente observado em Aristóteles que
de tal modo submete a sua filosofia natural à lógica que a tornou quase inútil
e mais afeita a contendas. A própria estirpe dos alquimistas elabora uma
filosofia fantástica e de pouco proveito, porque fundada em alguns poucos
experimentos levados a cabo em suas oficinas. Assim também Gilbert,[18] que,
depois de laboriosamente haver observado o magneto, logo concebeu uma filosofia
toda conforme ao seu principal interesse.
LV
A maior e talvez a mais
radical diferença que distingue os engenhos, em relação à filosofia e às
ciências, está em que alguns são mais capazes e aptos para notar as diferenças
das coisas, outros para as suas semelhanças. Com efeito, os engenhos constantes
e agudos podem fixar, deter e dedicar a sua atenção às diferenças mais sutis.
De outra parte, os engenhos altaneiros e discursivos reconhecem e combinam as
mais gerais e sutis semelhanças das coisas. Mas tanto uns como outros podem
facilmente incorrer no exagero, captando em um caso a graduação das coisas, em
outro as aparências.
LVI
É desse modo que se
estabelecem as preferências pela Antiguidade ou pelas coisas novas. Poucos são
os temperamentos que conseguem a justa medida, ou seja, não desprezar o que é
correto nos antigos, sem deixar de lado as contribuições acertadas dos
modernos. E é o que tem causado grandes danos tanto às ciências quanto à
filosofia, pois faz-se o elogio da Antiguidade ou das coisas novas e não o seu
julgamento. A verdade não deve, porém, ser buscada na boa fortuna de uma época,
que é inconstante, mas à luz da natureza e da experiência, que é eterna. Em
vista disso, todo entusiasmo deve ser afastado e deve-se cuidar para que o
intelecto não se desvie e seja por ele arrebatado em seus juízos.
LVII
O estudo da natureza e dos
corpos em seus elementos simples fraciona e abate o intelecto, enquanto que o
estudo da natureza e da composição e da configuração dos corpos o entorpece e
desarticula. Isto se pode muito bem observar na escola de Leucipo e Demócrito,
se se compara com as demais filosofias. Aquela, com efeito, de tal modo se
preocupa com as partículas das coisas que negligencia a sua estrutura; as
outras, por seu turno, ficam de tal modo empolgadas na consideração da
estrutura que não penetram nos elementos simples da natureza. Assim, pois, se
devem alternar ambas as formas de observação e adotar cada uma por sua vez,
para que se torne a um tempo penetrante e capaz e se possam afastar os
inconvenientes apontados, bem como os ídolos deles provenientes.
LVIII
Essa seja a prudência a ser
adotada nas especulações para que se contenham e desalojem os ídolos da
caverna, os quais provêm de alguma disposição predominante no estudo, ou do
excesso de síntese ou de análise, ou do zelo por certas épocas, ou ainda da
magnitude ou pequenez dos objetos considerados. Todo estudioso da natureza deve
ter por suspeito o que o intelecto capta e retém com predileção. Em vista
disso, muito grande deve ser a precaução para que o intelecto se mantenha
íntegro e puro.
LIX
Os ídolos do foro são de todos
os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e
de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas
sucede também que as palavras volvem e refletem suas forças sobre o intelecto,
o que torna a filosofia e as ciências sofisticas e inativas. As palavras,
tomando quase sempre o sentido que lhes inculca o vulgo seguem a linha de
divisão das coisas que são mais potentes ao intelecto vulgar. Contudo, quando o
intelecto mais agudo e a observação mais diligente querem transferir essas
linhas para que coincidam mais adequadamente com a natureza, as palavras se
opõem. Daí suceder que as magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com
freqüência, acabem em controvérsias em torno de palavras e nomes, caso em que
melhor seria (conforme o uso e a sabedoria dos matemáticos) restaurar a ordem,
começando pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente
esse mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, posto que as próprias definições
constam de palavras e as palavras engendram palavras. Donde ser necessário o
recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries, como depois
vamos enunciar, quando se expuser o método e o modo de constituição das noções
e dos axiomas.
LX
Os ídolos que se impõem ao
intelecto através das palavras são de duas espécies. Ou são nomes de coisas que
não existem (pois do mesmo modo que há coisas sem nome, por serem
despercebidas, assim também há nomes por mera suposição fantástica, a que não
correspondem coisas), ou são nomes de coisas que existem, mas confusos e mal
determinados e abstraídos das coisas, de forma temerária e inadequada. À
primeira espécie pertencem: a fortuna, o primeiro móvel, as órbitas
planetárias, o elemento do fogo e ficções semelhantes, que têm origem em
teorias vazias e falsas. Essa espécie de ídolos é a mais fácil de se expulsar,
pois se pode exterminá-los pela constante refutação e ab-rogação das teorias
que os amparam. Mas a outra espécie é mais complexa e mais profundamente
arraigada por se ter formado na abstração errônea e inábil. Tome-se como
exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que pode assumir.
Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de operações
diversas que nada têm em comum ou que não são irredutíveis. Significa, com
efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo; tudo o que é
em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência; tudo o que facilmente
cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se divide e dispersa; tudo o
que se une e junta facilmente; tudo o que facilmente adere a outro corpo e
molha; tudo o que facilmente se reduz a liquido, se antes era sólido. De sorte
que se pode predicar e impor a palavra úmido em um determinado sentido,
“a chama é úmida”; em outro, “o ar não é úmido”; em outro, “o pó fino é úmido”;
e em outro, ainda, “o vidro é úmido”. Daí facilmente transparece que esta
noção foi abstraída de forma leviana apenas da água e dos líquidos correntes e
vulgares, sem qualquer adequada verificação posterior
Há, contudo, nas palavras
certos graus de distorção e erro. O gênero menos nefasto é o dos nomes de
substâncias particulares, em especial as de espécies inferiores, bem deduzidas.
Assim as noções de greda e lodo são boas; a de terra, má. Mais deficientes são
as palavras que designam ação, tais como: gerar, corromper, alterar. As mais
prejudiciais são as que indicam qualidades (com exceção dos objetos imediatos
da sensação), como: pesado, leve, tênue, denso, etc. Todavia, em todos esses
casos pode suceder que certas noções sejam um pouco melhores que as demais,
como ocorre com as que designam coisas que os sentidos humanos alcançam com
mais freqüência.
LXI
Por sua vez, os ídolos do
teatro não são inatos, nem se insinuaram às ocultas no intelecto, mas foram
abertamente incutidos e recebidos por meio das fábulas dos sistemas e das
pervertidas leis de demonstração. Porém, tentar e sustentar a sua refutação não
seria consentâneo com o que vimos afirmando. Pois, se não estamos de acordo nem
com os princípios nem com as demonstrações, não se admite qualquer
argumentação. O que, ademais, é um favor dos fados, pois dessa forma é
respeitada a glória dos antigos. Nada se lhes subtrai, já que se trata de uma
questão de método. Um coxo (segundo se diz) no caminho certo, chega antes que
um corredor extraviado, e o mais hábil e veloz, correndo fora do caminho, mais
se afasta de sua meta, O nosso método de descobrir a verdadeira ciência é de
tal sorte que muito pouco deixa à agudeza e robustez dos engenhos; mas, ao
contrário, pode-se dizer que estabelece equivalência entre engenhos e
intelectos. Assim como para traçar uma linha reta ou um círculo perfeito,
perfazendo-os a mão, muito importam a firmeza e o desempenho, mas pouco ou
nada importam usando a régua e o compasso. O mesmo ocorre com o nosso método.
Ainda que seja de utilidade nula a refutação particular de sistemas, diremos
algo das seitas e teorias e, a seguir, dos signos exteriores que denotam a sua
falsidade; e, por último, das causas de tão grande infortúnio e tão constante
e generalizado consenso no erro. E isso para que se torne menos difícil o
acesso à verdade e o intelecto humano com mais disposição se purifique e os
ídolos possa derrogar.
LXII
Os ídolos do teatro, ou das
teorias, são numerosos, e podem ser, e certamente o serão, ainda em muito maior
número. Com efeito, se já por tantos séculos não tivesse a mente humana se
ocupado de religião e teologia; e se os governos civis (principalmente as monarquias)
não tivessem sido tão adversos para com as novidades, mesmo nas especulações
filosóficas a tal ponto que os homens que as tentam sujeitam-se a riscos, ao
desvalimento de sua fortuna, e, sem nenhum prêmio, expõem-se ao desprezo e ao
ódio; se assim não fosse, sem dúvida, muitas outras seitas filosóficas e outras
teorias teriam sido introduzidas, tais como floresceram tão grandemente
diversificadas entre os gregos. Pois, do mesmo modo que se podem formular
muitas teorias do céu[19] a partir
dos fenômenos celestes; igualmente, com mais razão, sobre os fenômenos de que
se ocupa a filosofia se podem fundar e constituir muitos dogmas. E acontece com
as fábulas deste teatro o mesmo que no teatro dos poetas. As narrações feitas
para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras
narrações tomadas da história.
Mas em geral supõe-se para
matéria da filosofia ou muito a partir de pouco ou pouco a partir de muito.
Assim, a filosofia se acha fundada, em ambos os casos, numa base de experiência
e história natural excessivamente estreita e se decide a partir de um número de
dados muito menor que o desejável. Assim, a escola racional [20] se
apodera de um grande número de experimentos vulgares, não bem comprovados e nem
diligentemente examinados e pensados, e o mais entrega à meditação e ao
revolver do engenho.
Há também outra espécie de
filósofos que se exercitaram, de forma diligente e acurada, em um reduzido
número de experimentos e disso pretenderam deduzir e formular sistemas
filosóficos acabados, ficando, estranhamente, os fatos restantes à imagem
daqueles poucos distorcidos.
E há uma terceira espécie de
filósofos, os quais mesclam sua filosofia com a teologia e a tradição amparada
pela fé e pela veneração das gentes. Entre esses, há os que, levados pela
vaidade, pretenderam estabelecer e deduzir as ciências da invocação de espíritos
e gênios.[21] Dessa
forma, são de três tipos as fontes dos erros e das falsas filosofias: a
sofística, a empírica e a supersticiosa.
LXIII
O mais conspícuo exemplo da primeira
é o de Aristóteles, que corrompeu com sua dialética a filosofia natural: ao
formar o mundo com base nas categorias; ao atribuir à alma humana, a mais nobre
das substâncias, um gênero extraído de conceitos segundos;[22] ao tratar
da questão da densidade e da rarefação, com que se indica se os corpos ocupam
maiores ou menores extensões, conforme suas dimensões, por meio da fria
distinção de potência e ato; ao conferir a cada corpo apenas um movimento
próprio, afirmando que, se o corpo participa de outro movimento, este provém
de uma causa externa; ao impor à natureza das coisas inumeráveis distinções
arbitrárias, mostrando-se sempre mais solícito em formular respostas e em apresentar
algo positivo nas palavras do que a verdade íntima das coisas. Isso se torna
mais manifesto quando se compara a sua filosofia com as filosofias que eram
mais celebradas entre os gregos. Sem dúvida, as homeomerias, de Anaxágoras; os
átomos, de Leucipo e Demócrito; o céu e a terra, de Parmênides; a discórdia e a
amizade, de Empédocles; a resolução dos corpos na adiáfora natureza do fogo e o
seu retorno ao estado sólido, de Heráclito, sabem a filosofia natural, a
natureza das coisas, experiência e corpos.[23] Mas na Física,
de Aristóteles, na maior parte dos casos, não ressoam mais que as vozes de sua
dialética. Retoma-a na sua Metafísica, sob nome mais solene, e mais como
realista que nominalista. A ninguém cause espanto que no Livro dos Animais
e nos Problemas, e em outros tratados, ocupe-se freqüentemente de
experimentos. Pois Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava
devidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E
tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência como a uma
escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais
censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que
abandonaram totalmente a experiência.
LXIV
A escola empírica de
filosofia engendra opiniões mais disformes e monstruosas que a sofistica ou
racional. As suas teorias não estão baseadas nas noções vulgares (pois estas,
ainda que superficiais, são de qualquer maneira universais e, de alguma forma,
se referem a um grande número de fatos), mas na estreiteza de uns poucos e
obscuros experimentos. Por isso, uma tal filosofia parece, aos que se exercitaram
diariamente nessa sorte de experimentos, contaminando a sua imaginação, mais
provável, e mesmo quase certa; mas aos demais apresenta-se como indigna de
crédito e vazia. Há na alquimia, nas suas explicações, um notável exemplo do
que se acaba de dizer. Em nossos dias não se encontram muitos desses casos,
exceção feita talvez à filosofia de Gilbert. Contudo, em relação a tais
sistemas filosóficos, não se pode renunciar à cautela. Desde já, prevenimos e
auguramos que quando os homens, conduzidos por nossos conselhos, se voltem de
verdade para a experiência, afastando-se das doutrinas sofisticas, pode ocorrer
que, devido à impaciência e à precipitação do intelecto, saltem ou mesmo voem
às leis gerais e aos princípios das coisas. Um grande perigo, pois, pode advir
dessas filosofia e contra ele nos devemos acautelar desde já.
LXV
Mas a corrupção da filosofia,
advinda da superstição e da mescla com a teologia, vai muito além e causa danos
tanto aos sistemas inteiros da filosofia quanto às suas partes, pois o
intelecto humano não está menos exposto às impressões da fantasia que às das
noções vulgares. A filosofia sofistica, afeita que é às disputas, aprisiona o
intelecto, mas esta outra, fantasiosa e inflada, e quase poética, perde-o muito
mais com suas lisonjas. Pois há no homem uma ambição intelectual que não é
menor que a ambição da vontade. Isso acontece, sobretudo, nos espíritos
preclaros e elevados.
Na Grécia, encontram-se
exemplos típicos de tais filosofias, sendo o caso, antes dos demais, de
Pitágoras, onde aparecem aliadas a uma superstição tosca e grosseira. Mais
perigoso e sutil é o exemplo de Platão e sua escola.[24]
Encontra-se também este mal, parcialmente, nas restantes filosofias, onde são
introduzidas formas abstratas, causas finais e causas primeiras, omitindo-se
quase sempre as causas intermediárias. Diante disso, toda precaução deve ser
tomada, pois nada há de pior que a apoteose dos erros, e como uma praga para o
intelecto a veneração votada às doutrinas vãs. Alguns modernos incorreram em
tal inanidade que, com grande leviandade, tentaram construir uma filosofia
natural sobre o primeiro capítulo do Gêneses. sobre o Livro de Jó e sobre
outros livros das Sagradas Escrituras, buscando assim os mortos entre os vivos.[25] É da
maior importância coibir-se e frear esta inanidade, tanto mais que dessa mescla
danosa de coisas divinas e humanas não só surge uma filosofia absurda, como
também uma religião herética. Em vista do que é sobremodo salutar outorgar-se,
com sóbrio espírito, à fé o que à fé pertence.
LXVI
Já falamos da falsa autoridade
das filosofias fundadas nas noções vulgares, sobre poucos experimentos e na
superstição. Deve-se falar, igualmente, da falsa direção que toma a especulação
particularmente na filosofia natural. O intelecto humano se deixa contagiar
pela visão dos fenômenos que acontecem nas artes mecânicas, onde os corpos
sofrem alterações por um processo de composição e separação, daí surgindo o
pensamento de que algo semelhante se passa na própria natureza. Aqui tem a sua
origem aquela ficção dos elementos e de seu concurso para a constituição dos
corpos naturais. De outro lado, quando o homem contempla o livre jogo da
natureza, logo chega ao descobrimento das espécies naturais, dos animais, das
plantas e dos minerais; donde ocorre pensar que também na natureza existem
formas primárias das coisas, que a própria natureza tende a tornar manifestas,
e que a variedade dos indivíduos tem sua origem nos obstáculos e desvios que a
natureza sofre em seu trabalho ou no conflito de diversas espécies ou na
superposição de uma sobre a outra. A primeira dessas cogitações nos valeu as
qualidades elementares primárias, a segunda, as propriedades ocultas e as
virtudes específicas. Ambas constituem um resumo das explicações sem sentido,
com as quais se entretém o espírito, distanciando-se das coisas mais
importantes.
É maior o êxito do trabalho
que os médicos dedicam ao estudo das qualidades secundárias das coisas e de
suas operações como a atração, a repulsão, a rarefação e a
condensação, a dilatação, a contração, a dissipação
e a maturação e outras análogas. E tirariam muito maior proveito, se não
comprometessem, com os conceitos mencionados de qualidades elementares e de
virtudes específicas, os fenômenos bem observados, reduzindo-os a qualidades
primárias e às suas combinações sutis e incomensuráveis, esquecendo-se de levá-los,
com maior e mais diligente observação, até às qualidades terceiras ou quartas,
sem romper intempestivamente a linha da observação. Virtudes, se não idênticas,
pelo menos semelhantes, devem ser buscadas não apenas nas medicinas para o
corpo humano, mas também nas mudanças de todos os demais corpos naturais.
Maior prejuízo acarreta o fato
de se limitar a reflexão e a indagação aos princípios quiescentes dos quais
derivam as coisas, e não considerar os princípios motores pelos quais se
produzem as coisas, já que os primeiros servem aos discursos, os segundos à
prática. Tampouco, têm qualquer valor as distinções vulgares do movimento que
sob o nome de geração, corrupção, aumento, diminuição, alteração e translação
se admitem na filosofia natural. Pois, em última instância, não dizem
mais que o seguinte: há translação quando um corpo, sem sofrer outra
mudança, muda de lugar; alteração quando, sem mudar de lugar, nem
espécie, muda de qualidade; se, em virtude da mudança, a massa e quantidade de
corpo não permanecem as mesmas, então, há aumento ou diminuição;
e se a mudança é de tal ordem que transforma a própria espécie e substância da
coisa em outra diferente, então há geração e corrupção. Mas tudo
isso é meramente popular e não penetra a natureza, pois indica as medidas e os
períodos e não as espécies de movimento. Indica até onde e não como
e de que fonte surgem. E tais conceitos nada dizem acerca da tendência
natural dos corpos e nem do processo de suas partes. Eles apenas são aplicáveis
quando o movimento introduz modificações evidentes na coisa, a ponto de serem
imediatamente sensíveis, e é dessa forma que também estabelecem as suas
distinções. Mesmo quando procuram dizer algo a respeito das causas do movimento
e estabelecer uma divisão em. virtude das mesmas, apresentam, revelando uma
absoluta negligência, a distinção entre movimento natural e violento, que
também tem sua origem em conceitos vulgares, posto que realmente, todo
movimento violento é também natural, pelo fato de um agente externo reduzir uma
coisa da natureza a um estado diferente do que antes tinha.
Mas, deixando de lado tais
distinções, pode-se constatar que representam verdadeiras espécies de movimento
físico os seguintes casos: quando se observa que há nos corpos um esforço para
o mútuo contato de forma a não permitir que se rompa a continuidade da natureza,
ou se desloquem, ou se produza o vácuo; quando se manifesta nos corpos
tendência a recobrar o seu volume natural ou extensão de modo que, se se
comprimem, diminuindo-os, ou se se distendem, aumentando-os, agem de forma a
recuperar e voltar ao seu primitivo volume e extensão; ou quando se diz que há
nos corpos uma tendência à agregação das massas de natureza semelhante e que
os corpos densos tendem à esfera terrestre e os leves ao espaço celeste, etc.
Os primeiros movimentos enumerados, por sua vez, são meramente lógicos e
escolásticos, como fica manifesto, ao serem comparados com estes últimos.
Não é menos ruinoso que em
suas filosofias e especulações os seus esforços se consumam na preocupação e na
investigação dos princípios e das causas últimas da natureza, pois toda a
possibilidade e utilidade operativa se concentram nos princípios
intermediários. A conseqüência disso é que os homens não cessam de fazer
abstrações sobre a natureza, ate atingir a matéria potencial e informe; nem cessam
de dissecá-la até chegar ao átomo. Tudo isso, ainda que correspondesse à
verdade, pouco serviria ao bem-estar do homem.
LXVII
Também se deve acautelar o
intelecto contra a intemperança dos sistemas filosóficos no livrar ou coibir o
assentimento, porque tal intemperança concorre para firmar os ídolos, e, de
certo modo, os faz perpétuos, sem possibilidades de remoção.
Há no caso um duplo excesso: o
primeiro é o dos que se pronunciam apressadamente, convertendo a ciência em
uma doutrina positiva e doutoral; e outro é o dos que introduziram a acatalepsia
e tornaram a investigação vaga e sem um termo. O primeiro deprime, o segundo
enerva o intelecto. Assim, a filosofia de Aristóteles, depois de destruir
outras filosofias (à maneira dos otomanos, com seus irmãos) com suas pugnazes
refutações, pronunciou-se acerca de cada uma das questões. Depois, inventou ele
mesmo, ao seu arbítrio, questões para as quais a seguir apresentou soluções, e
dessa forma tudo ficou definido e estabelecido e é o que passou a ser atendido
ainda hoje por seus sucessores.
A escola de Platão, de sua
parte, introduziu a acatalepsia, a princípio como ardil e ironia, por
desprezo para com os velhos sofistas, Protágoras, Hípias e os demais, os quais
nada temiam mais que aparentar terem dúvidas a respeito de algo. Mas a Nova
Academia transformou a acatalepsia em dogma e dela fez profissão. E,
ainda que esta seja uma atitude mais moderada que a dos que se achavam no
direito de se repronunciarem sobre tudo já que os acadêmicos dizem que não
pretendem confundir a investigação (como o fizeram Pirro e os céticos) e que se
limitam ao provável, quando de fato nada aceitavam como verdadeiro —, contudo,
quando o espírito humano se desespera da busca da verdade, o seu interesse por
todas as coisas se torna débil; daí resultando que os homens passam a preferir
as disputas e os discursos amenos, distantes da realidade, em vez de se
comprometerem com rigor na investigação. Contudo, como dissemos a principio e
sustentamos sempre, os sentidos e o intelecto humano, pela sua fraqueza, não
hão de ser desmerecidos em sua autoridade, mas, ao contrário, devem ser
providos de auxílios.
LXVIII
Já falamos de todas as
espécies de ídolos e de seus aparatos. Por decisão solene e inquebrantável
todos devem ser abandonados e abjurados. O intelecto deve ser liberado e
expurgado de todos eles, de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa
sobre as ciências. possa parecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não
se permite entrar senão sob a figura de criança.[26]
LXIX
As demonstrações falhas são as
fortificações e as defesas dos ídolos. E as que nos ensina a dialética não
fazem muito mais que subordinar a natureza ao pensamento humano e o pensamento
humano às palavras. As demonstrações, na verdade, são como que filosofias e
ciências em potência, porque, conforme sejam estabelecidas mal ou corretamente
instituídas, assim também serão as filosofias e as especulações. Errados e
incompetentes são os que seguem o processo que vai dos sentidos e das coisas
diretamente aos axiomas e as conclusões. Esse processo consiste de quatro
partes e quatro igualmente são seus defeitos. Em primeiro lugar. as próprias
impressões dos sentidos são viciosas; os sentidos não só desencaminham como
levam ao erro É pois necessário que se retifiquem os descaminhos e se corrijam
os erros. Em segundo lugar, as noções são mal abstraídas das impressões dos
sentidos, ficando indeterminadas e confusas. quando deveriam ser bem
delimitadas e definidas. Em terceiro lugar. é imprópria a indução que estabelece
os princípios das ciências por simples enumeração, sem o cuidado de proceder
àquelas exclusões, resoluções ou separações que são exigidas pela natureza. Por
último, esse método de invenção e de prova, que consiste em primeiro se
determinarem os princípios gerais e, a partir destes, aplicar e provar os
princípios intermediários, é a matriz de todos os erros e de todas as
calamidades que recaem sobre as ciências. Mas desse assunto, que tocamos de
passagem, trataremos mais amplamente quando propusermos o verdadeiro método de
interpretação da natureza, depois de cumprida esta espécie de expiação e
purgação da mente.
LXX
A melhor demonstração é de
longe, a experiência, desde que se atenha rigorosamente ao experimento. Se
procuramos aplicá-la a outros fatos tidos por semelhantes, a não ser que se
proceda de forma correta e metódica, é falaciosa. Mas o modo de realizar
experimentos hoje em uso é cego e estúpido. Começam os homens a vagar [27] sem rumo
fixo, deixando-se guiar pelas circunstâncias; vêem-se rodeados de uma multidão
de fatos, mas sem qualquer proveito; ora se entusiasmam, ora se distraem;
presumem sempre haver algo mais a ser descoberto. Dessa forma, ocorre que os
homens realizam os experimentos levianamente, como em um jogo, variando pouco
os experimentos já conhecidos e, se não alcançam resultados, aborrecem-se e
põem de lado os seus desígnios. E mesmo os que se dedicam aos experimentos com
mais seriedade, tenacidade e esforço acabam restringindo o seu trabalho a
apenas um experimento particular. Assim fez Gilbert com o magneto, e os
alquimistas com o ouro. Um tal modo de proceder é tão inexperto quanto
superficial, pois ninguém investiga com resultado a natureza de uma coisa
apenas naquela própria coisa: é necessário ampliar a investigação até as coisas
mais gerais.[28]
E mesmo quando conseguem
estabelecer formulações científicas ou teóricas, a partir dos seus
experimentos, demonstram uma disposição intempestiva e prematura de se
voltarem para a prática.[29] Procedem
dessa forma não apenas pela utilidade e pelos frutos que essa prática propicia,
como também para obter uma certa garantia de que não serão infrutíferas as
investigações subseqüentes e, ainda, para que as suas ocupações sejam mais
reputadas pelos demais. Por isso acaba acontecendo com eles o que aconteceu a
Atalanta:[30]
desviam-se de seu caminho, para recolherem os frutos de ouro, interrompendo a
corrida e deixando escapar a vitória. Para se topar com o verdadeiro caminho
da experiência e a partir daí se conseguir a produção de novas obras, é
necessário tomar como exemplos a sabedoria e a ordem divinas. Deus, com efeito,
no primeiro dia da criação criou somente a luz, dedicando-lhe todo um dia e não
se aplicando nesse dia a nenhuma obra material. Da mesma forma, em qualquer
espécie de experiência, deve-se primeiro descobrir as causas e os axiomas
verdadeiros, buscando os axiomas lucíferos e não os axiomas frutíferos.[31] Pois os
experimentos, quando corretamente descobertos e constituídos, informam não a
uma determinada e estrita prática, mas a uma série contínua, e desencadeiam na
sua esteira bandos e turbas de obras. Mais adiante falaremos dos verdadeiros
caminhos da experiência, que, por sua vez, não se encontram menos obstruídos e
interceptados que os do juízo; por ora falaremos da experiência vulgar.
considerando-a como uma má espécie de demonstração. Mas, para o momento, a
ordem das coisas exige que falemos algo mais acerca dos signos a que antes nos
referimos graças aos quais se pode concluir que as filosofias e as especulações
ora em uso andam muito mal —, como também das causas desse fato, à primeira
vista espantoso e inacreditável. O conhecimento dos signos prepara o assentimento,
e a explicação de suas causas dissipa qualquer sombra de milagre. Ambas as
coisas concorrem para a extirpação, de maneira fácil e suave, dos ídolos do
intelecto.
LXXI
As ciências que possuímos
provieram em sua maior parte dos gregos. O que os escritores romanos, árabes ou
os mais recentes acrescentaram não é de monta nem de muita importância; de qualquer
modo, está fundado sobre a base do que foi inventado pelos gregos. Contudo, a
sabedoria [32] dos
gregos era professoral [33] e pródiga
em disputas — que é um gênero dos mais adversos à investigação da verdade.
Desse modo, o nome de sofistas, que foi aplicado depreciativamente aos que se
pretendiam filósofos e que acabou por designar os antigos retores, Górgias,
Protágoras, Hípias e Polo, compete igualmente a Platão, Aristóteles, Zenão,
Epicuro, Teofrasto; e aos seus sucessores Crisipo, Carnéades, e aos demais.
Entre eles havia apenas esta diferença: os primeiros eram do tipo errante e
mercenário, percorriam as cidades, ostentando a sua sabedoria e exigindo
estipêndio; os outros, do tipo mais solene e comedido, tinham moradas fixas,
abriram escolas e ensinaram a filosofia gratuitamente. Mas ambos os gêneros,
apesar das demais disparidades, eram professorais e favoreciam as disputas, e
dessa forma facilitavam e defendiam seitas e heresias filosóficas, e as suas
doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio, de Platão) palavras
de velhos ociosos a jovens ignorantes.[34] Mas os
mais antigos dos filósofos gregos, Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito,
Parmênides, Heráclito, Xenófanes, Filolau e outros (omitimos Pitágoras, por se
ter entregue à superstição), não abriram escolas, ao que saibamos: ao
contrário, e, no maior silêncio, com rigor e simplicidade, vale dizer, com
menor afetação e aparato, se consagraram à investigação da verdade. E a nosso
juízo, melhor se saíram, só que suas obras, com o decorrer do tempo, foram
sendo ofuscadas por outras mais superficiais, mas mais afeitas à capacidade e
ao gosto do vulgo; pois o tempo, como o rio, trouxe-nos as coisas mais leves e
infladas, submergindo o mais pesado e consistente. Contudo, nem mesmo eles
foram imunes aos vícios de seu povo, pois propendiam mais que o desejável à
ambição e à vaidade de fundarem uma seita e captarem a aura popular. Nada se
há de esperar, com efeito, da busca da verdade, quando distorcida por tais
inanidades. E, a propósito, não se deve omitir aquela sentença, ou melhor,
vaticínio, do sacerdote egípcio a respeito dos gregos: “Sempre serão crianças,
não possuirão nem a antiguidade da ciência, nem a ciência da Antiguidade”.[35] Os
gregos, com efeito, possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos
para tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua sabedoria é farta em
palavras, mas estéril de obras. Aí está por que não se mostram favoráveis os
signos [36] que se
observam na gente e na fonte de que provém a filosofia ora em uso.
LXXII
Os signos que se podem retirar
das características do tempo e da idade não são muito melhores que os das
características do lugar e da nação. Naquela época era limitado e superficial o
conhecimento histórico e geográfico, o que é muito grave sobretudo para os que
tudo depositam na experiência. Não possuíam, digna desse nome, uma história
que remontasse aos mil anos, e que se não reduzisse a fábulas e rumores da
Antiguidade. Na verdade, conheciam apenas uma exígua parte dos países e das
regiões do mundo. Chamavam indistintamente de citas a todos os povos
setentrionais e de celtas a todos os ocidentais. Nada conheciam das regiões
africanas, situadas além da Etiópia setentrional, nem da Ásia de além Ganges, e
muito menos ainda das províncias do Novo Mundo, de que nada sabiam, nem de
ouvido, nem de qualquer tradição certa e constante. E mais, julgavam
inabitáveis muitas zonas e climas em que vivem e respiram inumeráveis povos. As
viagens de Demócrito, Platão, Pitágoras, que não eram mais que excursões
suburbanas, eram celebradas como grandiosas. Em nossos tempos, ao contrário,
tornaram-se conhecidas não apenas muitas partes do Novo Mundo, como também todos
os extremos limites do Mundo Antigo, e assim é que o número de possibilidades
de experimentos foi incrementado ao infinito. Enfim, se se devem interpretar
os signos à maneira dos astrólogos, os que se podem retirar do tempo de
nascimento e de concepção daquelas filosofias indicam que nada de grande delas
se pode esperar.
LXXIII
De todos os signos nenhum é
mais certo ou nobre que o tomado dos frutos. Com efeito, os frutos e os
inventos são como garantias e fianças da verdade das filosofias. Ora, de toda
essa filosofia dos gregos e todas as ciências particulares dela derivadas,
durante o espaço de tantos anos, não há um único experimento de que se possa
dizer que tenha contribuído para aliviar e melhorar a condição humana, que seja
verdadeiramente aceitável e que se possa atribuir às especulações e às
doutrinas da filosofia. É o que ingênua e prudentemente reconhece Celso [37] ao falar
que primeiro se fizeram experimentos em medicina, e depois sobre eles os homens
construíram os sistemas filosóficos, buscando e assinalando as causas, e não
inversamente, ou seja, que da descoberta das causas se tenham estabelecido e
deduzido os experimentos da medicina. Por isso não deve parecer estranho que
entre os egípcios, que divinizavam e consagravam os inventores, houvesse mais
imagens de animais que de homens, pois os animais com seu instinto natural
produziram muito no caminho de descobertas úteis, enquanto os homens, com os
seus discursos e ilações racionais, pouco ou nada concluíram.
Os alquimistas com sua
atividade fizeram algumas descobertas, mas como que por acaso e pela variação
dos experimentos (como fazem com freqüência os mecânicos), não por arte e com
método, e isso porque a sua atividade tende mais a confundir os experimentos
que a estimulá-los. Mesmo aqueles que se dedicaram à chamada magia natural
fizeram algumas descobertas, mas poucas em número e sobretudo superficiais e
frutos da impostura. Devemos, em suma, aplicar à filosofia o princípio da
religião, que quer que a fé se manifeste pelas obras, estabelecendo assim que
um sistema filosófico seja julgado pelos frutos que seja capaz de dar; se é
estéril deve ser refutado como coisa inútil, sobretudo se em lugar de frutos bons
como os da vinha e da oliva produz os cardos e espinhos das disputas e das
contendas.
LXXIV
Outros signos se podem retirar
do desenvolvimento e do progresso da filosofia e das ciências, porque aquilo
que tem o seu fundamento na natureza cresce e se desenvolve, mas o que não tem
outro fundamento que a opinião varia, mas não progride. Por isso, se aquelas
doutrinas em vez de serem, como são, comparáveis a plantas despojadas de suas
raízes tivessem aprofundado suas raízes no próprio seio da natureza e dela
tivessem retirado a própria substância, as ciências não teriam permanecido por
dois mil anos estagnadas no seu estádio originário; e quase no mesmo estado
permanecem, sem qualquer progresso notável. Dessa forma. foram pouco a pouco
declinando à medida que se afastaram dos primeiros autores que as fizeram
florescer. Nas artes mecânicas, que são fundadas na natureza e se enriquecem
das luzes da experiência, vemos acontecer o contrário, e essas (desde que
cultivadas), como que animadas por um espírito, continuamente se acrescentam e
se desenvolvem, de inicio grosseiras, depois cômodas e aperfeiçoadas, e em
contínuo progresso.
LXXV
Deve-se considerar ainda um
outro signo (se se deve colocar entre os signos um fato que é mais uma prova e
entre as provas, ainda, a mais certa), seja, a confissão daqueles autores que
ora estão em grande voga. De fato, mesmo aqueles que com tanta confiança
pronunciam o seu juízo sobre a realidade, mesmo eles, quando mais
conscienciosos, põem-se a lamentar a respeito da obscuridade das coisas, da
sutileza da natureza, da fraqueza do intelecto humano. Ora, se se limitassem a
isso, certamente os mais tímidos seriam dissuadidos de ulteriores
investigações, mas os que têm o engenho mais álacre e confiante receberiam
mais incitamento e sugestão para progredirem ulteriormente. Mas, não contentes
de falarem deles próprios, põem fora dos limites do possível tudo o que tenha
permanecido ignorado e inatingível para si e para os seus mestres, e declaram-no
incognoscível e irrealizável, quase sob a autoridade da própria arte. Com suma
presunção e malignidade fazem de sua fraqueza razão de calúnia para com a
natureza e desespero para com todos os demais. Assim, a Nova Academia professou
a acatalepsia e condenou os homens à perpétua ignorância. Daí surge a
opinião de que as formas, que são as verdadeiras diferenças das coisas, isto é,
as leis efetivas do ato puro, são impossíveis de serem descobertas, porque
colocadas além de qualquer alcance humano. Daí surgem as opiniões, acolhidas na
parte ativa e operativa da ciência, de que o calor do sol e o do fogo são
diferentes por natureza; que tendem a tolher na humanidade a esperança de poder
extrair ou construir, por meio do fogo, qualquer coisa de semelhante ao que
acontece na natureza.[38] E ainda
mais, que a composição é obra do homem, enquanto que a mistura é obra apenas da
natureza: o que equivale a tolher toda esperança de poder realizar, com meios
artificiais, os processos de geração e de transformação dos corpos naturais.
Por este signo não deverá ser difícil persuadir os homens a não misturarem as
suas sortes e fados com dogmas não apenas desesperados, mas destinados à
desesperação.
LXXVI
Merece ainda ser considerada
como signo a grande e perpétua disparidade de idéias que tem reinado entre os
filósofos, e a própria variedade das escolas de filosofia. Essa disparidade
mostra que a via que conduz dos sentidos ao intelecto não foi bem traçada, já
que a própria matéria da filosofia, ou seja, a natureza, foi rompida e dividida
em tantos e tão diversos erros. Em tempo mais recente, as dissenções e as
disparidades de pontos de vista em torno dos próprios princípios da filosofia
e das filosofias parece terem cessado; mas restam ainda inumeráveis problemas e
controvérsias nas várias partes da filosofia, donde resulta claro que não há
nada de certo e de rigoroso nem nas doutrinas filosóficas nem nos métodos de
demonstração.
LXXVII
Crê-se comumente que a
filosofia de Aristóteles obteve o consenso universal pelo fato de que, quando
de sua divulgação, todas as outras filosofias dos antigos morriam ou
desapareciam, e pelo fato de que nos tempos subseqüentes não se encontrou nada
melhor; dessa forma, a filosofia aristotélica parece tão bem fundada e
estabelecida, pois canalizou para si o tempo antigo e o tempo moderno. A isso
se responde: primeiro, o que se pensa em relação à cessação das antigas
filosofias depois da divulgação das obras de Aristóteles é falso, porque muito
tempo depois, até a época de Cícero e mesmo nos séculos seguintes, as obras dos
antigos filósofos ainda subsistiram. Mas, depois, no tempo das invasões
bárbaras do Império Romano, após toda doutrina humana ter, por assim dizer,
naufragado, então, se conservaram apenas as doutrinas de Aristóteles e de
Platão, como tábuas feitas de matéria mais leve e menos sólida, flutuando no
curso dos tempos. Segundo: por pouco que se aprofunde tal ponto, também o
argumento do consenso universal vai-se mostrar falho, O verdadeiro consenso é,
antes de tudo, uma coincidência de juízos livres sobre uma questão
precedentemente examinada. Mas, pelo contrário, a grande massa dos que convêm
na aprovação de Aristóteles é escrava do prejuízo da autoridade de outros, a
tal ponto que se deveria falar, mais que de consenso, de zelo de sequazes e de
espírito de associação. E mesmo no caso em que tenha havido verdadeiro e
aberto consenso, o consenso está sempre longe de se constituir em autoridade
verdadeira e sólida, mas faz, ao contrário, nascer uma vigorosa opinião em
relação à opinião oposta. Com efeito, o pior auspício é o que deriva do
consenso nas coisas intelectuais, excetuadas a política e a teologia, para as
quais, ao contrário, há o direito de sufrágio.[39] A muitos
apraz só o que tolhe a imaginação e aprisiona o intelecto pelos laços dos
conceitos vulgares, como já foi dito antes.[40] Vem a
propósito aquele dito de Fócion que, dos costumes, pode ser transposto às
questões intelectuais: “Os homens devem perguntar que coisa disseram ou
fizeram de mal quando o povo os enche de apoio e aplauso”.[41] Este é,
pois, um signo dos mais desfavoráveis. Concluamos dizendo que os signos da
verdade e da sensatez das filosofias e das ciências, ora em uso, são péssimos,
quer se procurem nas suas origens, nos seus frutos, nos seus progressos, nas
confissões dos autores ou no consenso.
LXXVIII
Tratemos agora das causas dos
erros e de sua persistência que se prolongou por séculos. Elas são muitas e
muito poderosas. Em vista disso, não há motivo para se admirar de que tenham
escapado e tenham permanecido ocultas dos homens as coisas que vão agora ser
expostas. O que seria de causar espanto é como, finalmente, tenham podido cair
na mente de um determinado mortal para serem objeto de suas reflexões; o que,
de resto (segundo cremos), foi mais uma questão de sorte que de excelência de
alguma faculdade. Deve ser tido mais como parto do tempo que parto do engenho.[42]
Bem consideradas as coisas, um
número tão grande de séculos reduz-se a um lapso efetivamente exíguo. Das vinte
e cinco centúrias em que mais ou menos estão compreendidos a história e o saber
humano, apenas seis podem ser escolhidas e apontadas como tendo sido fecundas
para as ciências ou favoráveis ao seu desenvolvimento. No tempo como no espaço
há regiões ermas e solidões. De fato só podem ser levados em conta três
períodos ou retornos na evolução do saber:[43] um, o dos
gregos; outro, o dos romanos e, por último, o nosso, dos povos ocidentais da
Europa; a cada um dos quais se pode atribuir no máximo duas centúrias de anos.
A Idade Média, em relação à riqueza e fecundidade das ciências, foi uma época
infeliz. Não há, com efeito, motivos para se fazer menção nem dos árabes, nem
dos escolásticos. Estes, nos tempos intermédios, com seus numerosos tratados
mais atravancaram as ciências que concorreram para aumentar-lhes o peso. Por
isso, a primeira causa de um tão parco progresso das ciências deve ser buscada
e adequadamente localizada no limitado tempo a elas favorável.
LXXIX
Em segundo lugar, surge uma
causa de grande importância, sob todos os aspectos, a saber, mesmo nas épocas
em que, bem ou mal, floresceram o engenho humano e as letras, a filosofia
natural ocupou parte insignificante da atividade humana. E leve-se em conta que
a filosofia natural deve ser considerada a grande mãe das ciências. Todas as
artes e ciências, uma vez dela desvinculadas, podem ser brunidas e amoldadas
para o uso, mas não podem crescer.[44] É
manifesto que desde o momento em que a fé cristã foi aceita e deitou raízes no
espírito humano, a grande maioria dos melhores engenhos se consagrou à
teologia, e para isso concorreram poderosamente os prêmios e toda sorte de
estímulos a eles reservados. E o cultivo da teologia ocupou principalmente o
terceiro lapso de tempo, o nosso, isto é, o dos povos ocidentais da Europa;
tanto mais que no mesmo período começaram a florescer as letras, e as
controvérsias a respeito de religião começaram a se propagar. Na idade
anterior, no segundo período, o correspondente aos romanos, as mais
significativas reflexões e os melhores esforços se ocuparam e se consumiram na
filosofia moral (que entre os pagãos substituía a teologia) e, ainda, os
talentos daquele tempo se dedicaram aos assuntos civis, necessidade oriunda da
própria magnitude do Império Romano, que exigia a dedicação de um grande
número de homens. Mesmo naquela idade em que se viu florescer ao máximo, entre
os gregos, a filosofia natural corresponde a uma pequena parte, não contínua,
de tempo. Nos tempos mais antigos, aqueles que foram chamados de Sete Sábios,
todos eles afora Tales, se aplicaram à filosofia moral e à política. Nos tempos
seguintes, depois que Sócrates fez descer a filosofia do céu à terra,[45] prevaleceu
mais ainda a filosofia moral e mais se afastaram os engenhos humanos da
filosofia natural.
Contudo, aquele mesmo período
em que as investigações da natureza ganharam vigor foi corrompido pelas
contradições e pela ambição de se emitirem novas opiniões, ficando, assim,
inutilizado. Dessa forma, durante esses três períodos, a filosofia natural,
abandonada e dificultada, não é para se admirar que os homens, ocupados por
outros assuntos, nela pouco tenham progredido.
LXXX
Deve-se acrescentar, ademais,
que a filosofia natural, mesmo entre os seus fautores, não encontrou um único
homem inteira e exclusivamente a ela dedicado, particularmente nos últimos
tempos, a não ser o exemplo isolado de elucubrações de algum monge, em sua
cela, ou de algum nobre, em sua mansão. A filosofia natural servia a alguns de
passagem e de ponte para outras disciplinas.
Dessa forma, a grande mãe das
ciências foi relegada ao indigno oficio de serva, prestando serviços à obra de
médicos ou de matemáticos, ou devendo oferecer à mente imatura dos jovens o
primeiro polimento e a primeira tintura, para facilitação e bom êxito de suas
posteriores ocupações. Que ninguém espere um grande progresso nas ciências,
especialmente no seu lado prático,[46] até que a
filosofia natural seja levada às ciências particulares e as ciências
particulares sejam incorporadas à filosofia natural. Por serem disso
dependentes é que a astronomia, a óptica, a música, inúmeras artes mecânicas, a
própria medicina, e, o que é espantoso, a filosofia moral e política e as ciências
lógicas [47] não
alcançaram qualquer profundidade, mas apenas deslizam pela superfície e
variedade das coisas. De fato, desde que as ciências particulares se
constituíram e se dispersaram, não mais se alimentaram da filosofia natural,
que lhes poderia ter transmitido as fontes e o verdadeiro conhecimento dos
movimentos, dos raios, dos sons, da estrutura e do esquematismo dos corpos, das
afecções e das percepções intelectuais, o que lhes teria infundido novas forças
para novos progressos. Assim, pois, não é de admirar que as ciências não
cresçam depois de separadas de suas raízes.
LXXXI
Ainda há outra causa grande e
poderosa do pequeno progresso das ciências. E ei-la aqui: não é possível
cumprir-se bem uma corrida quando não foi estabelecida e prefixada a meta a ser
atingida. A verdadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana
de novos inventos e recursos.[48] Mas a
turba, que forma a grande maioria, nada percebe, busca o próprio lucro e a
glória acadêmica. Pode, eventualmente, ocorrer que algum artesão de engenho
agudo e ávido de glória se aplique a algum novo invento, o que realiza, na
maior parte dos casos, com os seus próprios recursos. A maior parte dos homens
está tão longe de dedicar-se ao aumento do acervo das ciências e das artes,
que, do acervo já à sua disposição, apanham e são atraídos tão-somente o
suficiente para os usos professorais, para lograr lucro, consideração ou outra
vantagem análoga. Contudo, se de toda essa multidão alguém se dedica com
sinceridade à ciência por si mesma, ver-se-á que se volta mais para a variedade
das especulações e das doutrinas que para uma inquirição severa e rígida da
verdade. Ainda mais, se se encontra um investigador mais severo da verdade,
também ele proporá, como sua condição, que satisfaça sua mente e intelecto na
representação das causas das coisas que já eram conhecidas antes, e não a de
conseguir provas para novos resultados e luz para novos axiomas. Em suma, se
ninguém até agora fixou de forma justa o fim da ciência, não é para causar
espanto que tudo o que se subordine a esse fim desemboque em uma aberração.
LXXXII
Ademais, o fim e a meta da
ciência foram mal postos pelos homens. Mas, ainda que bem postos, a via escolhida
é errônea e impérvia. E é de causar estupefação, a quem quer que de ânimo avisado
considere a matéria, constatar que nenhum mortal se tenha cuidado ou tentado a
peito traçar e estender ao intelecto humano uma via, a partir dos sentidos e da
experiência bem fundada, mas que, ao invés, se tenha tudo abandonado ou às
trevas da tradição, ou ao vórtice e torvelinho dos argumentos ou, ainda, às
flutuações e desvios do acaso e de uma experiência vaga e desregrada.
Indague agora o espírito
sóbrio e diligente qual o caminho escolhido e usado pelos homens para a
investigação e descoberta da verdade. Logo notará um método de descoberta
muito simples e sem artifícios, que é o mais familiar aos homens. E esse não
consiste senão, da parte de quem se disponha e apreste para a descoberta, em
reunir e consultar o que os outros disseram antes. A seguir, acrescentar as
próprias reflexões. E, depois de muito esforço da mente, invocar, por assim
dizer, o seu gênio para que expanda os seus oráculos. Trata-se de conduta sem
qualquer fundamento e que se move tão-somente ao sabor de opiniões.
Algum outro pode, talvez,
invocar o socorro da dialética, que só de nome tem relação com o que se propõe.
Com efeito, a invenção própria da dialética não se refere aos princípios e
axiomas fundamentais que sustentam as artes, mas apenas a outros princípios
que com aqueles parecem estar em acordo. E quando, cercada pelos mais curiosos
e importunos, é interpelada a respeito das provas e da descoberta dos
princípios e axiomas primeiros, a dialética os repele com a já bem conhecida
resposta, remetendo-os à fé e ao juramento que se devem prestar aos princípios
de cada uma das artes.
Resta a experiência pura e
simples que, quando ocorre por si, é chamada de acaso e, se buscada, de
experiência. Mas essa espécie de experiência é como uma vassoura desfiada, como
se costuma dizer, mero tateio, à maneira dos que se perdem na escuridão, tudo
tateando em busca do verdadeiro caminho, quando muito melhor fariam se
aguardassem o dia ou acendessem um archote para então prosseguirem. Mas a
verdadeira ordem da experiência, ao contrário, começa por, primeiro, acender o
archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por uma
experiência ordenada e medida —nunca vaga e errática -, dela deduzindo os
axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos experimentos. Pois nem mesmo
o Verbo Divino agiu sem ordem sobre a massa das coisas.
Não se admirem pois os homens
de que o curso das ciências não tenha tido andamento, visto que, ou a
experiência foi abandonada, ou nela (os seus fautores) se perderam e vagaram
como em um labirinto; ao passo que um método bem estabelecido é o guia para a
senda certa que, pela selva da experiência, conduz à planura aberta dos
axiomas.
LXXXIII
Esse mal foi espantosamente
aumentado pela opinião — tornada presunção inveterada, conquanto vã e danosa —
de que a majestade da mente humana fica diminuída se muito e a fundo se ocupa
de experimentos e de coisas particulares e determinadas na matéria, mormente
tratando-se de coisas, segundo se diz, laboriosas de inquirir, ignóbeis para a
meditação, ásperas para a transmissão, avaras para a prática, infinitas em
número, tênues em sutileza. Chegou-se ao ponto em que a verdadeira via não só
foi abandonada, mas foi ainda fechada e obstruída. A experiência não foi
apenas abandonada ou mal administrada, como também desprezada.
LXXXIV
A reverência à Antiguidade, o
respeito à autoridade de homens tidos como grandes mestres de filosofia e o
geral conformismo para com o atual estádio do saber e das coisas descobertas
também muito retardaram os homens na senda do progresso das ciências, mantendo-os
como que encantados. Desse tipo de consenso já falamos antes.[49]
No tocante à antiguidade, a
opinião dos homens é totalmente imprópria e, a custo, congruente com o
significado da palavra. Deve-se entender mais corretamente por antiguidade a
velhice e a maturidade do mundo e deve ser atribuída aos nossos tempos e não à
época em que viveram os antigos, que era a do mundo mais jovem. Com efeito,
aquela idade que para nós é antiga e madura é nova e jovem para o mundo.[50] E do
mesmo modo que esperamos do homem idoso um conhecimento mais vasto das coisas
humanas e um juízo mais maduro que o do jovem, em razão de sua maior
experiência, variedade e maior número de coisas que pôde ver, ouvir e pensar,
assim também é de se esperar de nossa época (se conhecesse as suas forças e se
dispusesse a exercitá-las e estendê-las) muito mais que de priscas eras, por se
tratar de idade mais avançada do mundo, mais alentada e cumulada de infinitos
experimentos e observações.
Por outra parte, não é de se
desprezar o fato de que, pelas navegações longínquas e explorações tão
numerosas, em nosso tempo, muitas coisas que se descortinaram e descobriram
podem levar nova luz à filosofia. Assim, será vergonhoso para os homens que, tendo
sido tão imensamente abertas e perlustradas em nossos tempos as regiões do
globo material, ou seja, da terra, dos astros e dos mares, permaneça o globo
intelectual [51] adstrito
aos angustos confins traçados pelos antigos.
No que respeita à autoridade,
é de suma pusilanimidade atribuir-se tanto aos autores e negar-se ao tempo o
que lhe é de direito, pois com razão já se disse que “a verdade é filha do
tempo, não da autoridade”.[52] Não é,
portanto, de se admirar que esse fascínio da Antiguidade, dos autores e do
consenso tenha de tal modo assoberbado as forças dos homens que não puderam
eles se familiarizar com as próprias coisas, como que por artes de algum
malefício.
LXXXV
Mas não foi somente a
admiração pela Antiguidade, pela autoridade e o respeito pelo consenso que
compeliram a indústria humana a contentar-se com o já descoberto, mas, também,
a admiração pelas aparentemente copiosas obras já conseguidas pelo gênero
humano. Quem puser ante os olhos a variedade e o magnífico aparato de coisas
introduzidas e acumuladas pelas artes mecânicas, para o cultivo do homem,
estará, certamente, muito mais inclinado a admirar-se da sua opulência que da
penúria. Isso sem se dar conta de que os primeiros resultados da observação e
as primeiras operações da natureza, que são como que a alma e o principio motor
dessa variedade, não são nem muitos, nem bem fundados. O restante pode ser
atribuído unicamente à paciência humana e ao movimento sutil e bem ordenado da
mão ou dos instrumentos. A confecção de relógios, por exemplo, é certamente
mister delicado e trabalhoso, de tal modo que as suas rodas parecem imitar as
órbitas celestes ou o movimento contínuo e ordenado do pulso dos animais. No
entanto, depende de apenas um ou dois axiomas da natureza.
Ainda mais, quem atente para o
refinamento próprio das artes liberais ou, ainda, o das artes mecânicas, na
preparação de substâncias naturais e leve em conta coisas como a descoberta
dos movimentos celestes em astronomia, da harmonia em música, das letras do
alfabeto (ainda não em uso no reino dos chineses) em gramática; e igualmente,
na mecânica, o descobrimento das obras de Baco e Ceres, ou seja, a arte da
preparação do vinho, da cerveja, da panificação, das destilações e similares, e
de outras delícias da mesa; e também reflita e observe quanto tempo transcorreu
para que essas coisas (todas, exceto a destilação, já conhecidas dos antigos)
alcançassem o avanço que em nosso tempo desfrutam; e, ainda, o quão pouco são
baseadas (o mesmo que já se disse dos relógios) em observações e em axiomas da
natureza; e, indo um pouco mais longe, como essas coisas facilmente poderiam
ter sido descobertas em circunstâncias óbvias ou por observações casuais.[53]
Quem assim proceder,
facilmente se libertará de qualquer admiração, antes se compadecerá da
condição humana, por tantos séculos em tão grande penúria e esterilidade de
artes e invenções. E aqueles mesmos inventos de que fizemos menção são mais
antigos que a filosofia e as artes intelectuais [54] e,
pode-se dizer que, quando tiveram inicio as ciências racionais e dogmáticas,
cessou a invenção de obras úteis.
E o mesmo interessado, uma vez
que passe das oficinas às bibliotecas, ficará admirado da imensa variedade de
livros. Mas, detendo-se e examinando com mais cuidado a sua matéria e conteúdo,
certamente a sua admiração volver-se-á em sentido contrário, ao aí constatar as
infinitas repetições e que os homens dizem e fazem sempre o mesmo. De sorte
que, da admiração pela variedade, passará ao espanto pela indigência e pobreza
das coisas que têm prendido e ocupado a mente dos homens.
Quem, ainda, se disponha a
considerar aquelas coisas tidas mais por curiosas que sérias e passe a examinar
mais a fundo as obras dos alquimistas, acabará não sabendo se estes são mais
dignos de riso ou de lágrimas.
O alquimista, com efeito,
alimenta eterna esperança e quando algo falha atribui a si mesmo os erros,
acusando-se de não haver entendido bem os vocábulos de sua arte ou dos autores
(por isso, com tanto ânimo se aplica às tradições e aos sussurros que chegam
aos seus ouvidos), ou que suas manipulações careceram de escrúpulos quanto ao
peso ou ao exato tempo, em vista do que repete ao infinito os experimentos. Se,
nesse ínterim, em meio aos azares da experimentação, topa com algo de aspecto
novo ou de utilidade não desprezível, contenta-se com esses resultados, muito
os celebra e ostenta. E a esperança se encarrega do resto. Não se pode negar,
contudo, que os alquimistas descobriram não poucas coisas e deram aos homens
úteis inventos. Bem por isso não se lhes aplica mal a fábula do ancião que
legou aos seus filhos um tesouro enterrado em uma vinha e cujo sítio exato
simulava desconhecer. Os filhos, com afinco, revolveram toda a vinha, não
encontrando nenhum tesouro, mas a vindima, graças a tal cultivo, foi muito mais
abundante.
Os cultores da magia natural,[55] que tudo
explicam por simpatia e antipatia, deduziram, de conjunturas ociosas e
apressadas, virtudes e operações maravilhosas para as coisas. E mesmo quando
alcançaram resultados, estes são da espécie dos que mais se prestam à
admiração e novidade que a proporcionar frutos e utilidade.
Quanto à magia supersticiosa
(se dela é preciso falar), antes de tudo deve ser dito que em todas as nações,
em todos os tempos e, mesmo religiões, suas estranhas e supersticiosas artes só
puderam afetar em algo apenas um porção reduzida e bem definida de objetos. Em
vista disso, deixemo-la de lado, lembrando que nada há de surpreendente que a
ilusão da riqueza tenha sido causa da pobreza.
LXXXVI
A admiração dos homens pelas
doutrinas e artes, por si mesma bastante singela e mesmo pueril, foi
incrementada pela astúcia e pelos artifícios dos que se ocuparam das ciências e
as difundiram. Pois, levados pela ambição e pela afetação, apresentam-nas de
tal modo ordenadas e como que mascaradas que, ao olhar dos homens, pareciam
perfeitas em suas partes e já completamente acabadas. Com efeito, se se
consideram as divisões e o método, elas parecem compreender e esgotar tudo o
que possa pertencer a um assunto. E, ainda que as partes estejam mal
concluídas, como cápsulas ocas, ao intelecto vulgar oferecem a forma e o
ordenamento da ciência perfeita.
Mas os primeiros e mais
antigos investigadores da verdade, com mais fidelidade e sucesso, costumavam
consignar em forma de aforismos,[56] isto e,
de breves sentenças avulsas e não vinculadas por qualquer artificio
metodológico, o saber que recolhiam da observação das coisas e que pretendiam
preservar para uso posterior, e nunca simularam, nem professaram haver-se
apoderado de toda a arte. Por isso, visto ser esse o estado de coisas, não é de
se admirar que os homens não inquiram de questões tidas há tempo como
resolvidas e elucidadas em todas as suas peculiaridades.
LXXXVII
Além disso, a sabedoria antiga
foi tornada mais respeitável e digna de fé, graças à vaidade e à leviandade dos
que propuseram coisas novas, principalmente na parte ativa e operativa da
filosofia natural. Com efeito, não têm faltado espíritos presumidos e
fantasiosos a cumularem, em parte por credulidade, em parte por impostura, o gênero
humano de processos tais como: prolongamento da vida, retardamento da velhice,
eliminação da dor, reparação de defeitos físicos, encantamento dos sentidos,
suspensão e excitação dos sentimentos, iluminação e exaltação das faculdades
intelectuais, transmutação das substâncias, aumento e multiplicação dos
movimentos, compressão e rarefação do ar, desvio e promoção das influências dos
astros, adivinhação do futuro, reprodução do passado, revelação do oculto, e
alarde e promessa de muitas outras maravilhas semelhantes. Portanto, não
estaria longe da verdade, acerca de espíritos tão pródigos, um juízo como o
seguinte: há tanta distância, em matéria filosófica, entre essas fantasias e as
artes verdadeiras, quanto em história, entre as gestas de Júlio César ou de
Alexandre Magno e as de Amadis de Gaula ou de Artur da Bretanha.[57] É
notório, pois, que aqueles ilustres generais realizaram muito mais que as
façanhas atribuídas a esses heróis espectrais, em forma de ações reais, nem um
pouco fabulosas ou prodigiosas. Não obstante, não seria justo negar-se fé à
memória do verdadeiro porque tenha sido lesado e difamado pela fábula. Mas,
tampouco, se deve estranhar que tais impostores, quando tentaram empresas
semelhantes, tenham infligido grande prejuízo às novas proposições,
principalmente às relacionadas com operações práticas. O excesso de vaidade e
de fastígio acabou por destruir as disposições magnânimas para tais
cometimentos.
LXXXVIII
A pusilanimidade, a estreiteza
e a superficialidade com que a indústria humana se impõe tarefas causaram à
ciência ainda maiores danos e com a agravante dessa pusilanimidade não se
apresentar sem pompa e arrogância. Destaca-se, em primeiro lugar, aquela
cautela já familiar a todas as artes, que consiste em atribuírem os autores à
natureza a ineficiência de sua própria arte, e o que essa arte não alcança, em
seu nome, declararem ser “por natureza” impossível. Em conseqüência, jamais
poderá ser condenada uma arte que a si mesma julga. Também a filosofia que hoje
se professa abriga certas asserções e conclusões que, consideradas
diligentemente, parecem compelir os homens à convicção de que não se deve
esperar da arte e da indústria humana nada de árduo, nada que seja imperioso ou
válido acerca da natureza, como já se disse antes [58] a
respeito da heterogeneidade do calor do sol e do fogo e sobre a combinação dos
corpos.
Tudo isso, bem observado,
procura maliciosamente limitar o poder humano e produzir um calculado e
artificioso desânimo que não só vem perturbar os augúrios da esperança, como
amortecer todos os estímulos e nervos da indústria humana e também interceptar
todas as oportunidades de experiência. E, ao mesmo tempo, tudo fazem por
parecer perfeita a própria arte, entregando-se a uma glória vã e desvairada que
consiste em pensar que o que até o momento não foi descoberto ou compreendido
não poderá tampouco ser descoberto ou compreendido no futuro.
Alguém que se acerque das
coisas com intento de descobrir algo novo propor-se-á e limitasse-a a um único
invento, e não mais. Por exemplo: a natureza do ímã, o fluxo e o refluxo do
mar, o sistema celeste e coisas desse gênero, que parecem esconder algum
segredo, e coisas que, até agora, tenham sido tratadas com pouco êxito. Mas é
indício de grande imperícia o fato de se perscrutar a natureza de uma coisa na
própria coisa, pois a mesma natureza [59] que em
alguns objetos está latente e oculta, em outros é manifesta e quase palpável,
num caso provocando admiração, em outro, nem sequer chamando a atenção. É o
que ocorre com a natureza da consistência, que não é notada na madeira ou na
pedra e que é designada genericamente com o nome de solidez, sem se indagar
acerca da sua tendência de se furtar a qualquer separação ou solução de
continuidade. De outra parte, esse mesmo fato nas bolhas de água parece mais
sutil e engenhoso. As bolhas se constituem de películas curiosamente dispostas
em forma hemisférica de tal modo que, por um momento, evita-se a solução de
continuidade.
De fato, há casos em que as
naturezas das coisas estão latentes, enquanto em outros são manifestas e
comuns, o que jamais será evidente se os experimentos e as observações dos
homens se restringirem apenas às primeiras.
Em geral, o vulgo tem por
novos inventos, ou quando se aperfeiçoa algo já antes inventado ou este se
orna com mais elegância, ou quando se juntam ou combinam partes dele antes
separadas, ou quando se torna de uso mais cômodo, ou, ainda, se alcança um
resultado de maior ou menor massa ou volume que o costume, e coisas do gênero.
Por isso não é de se admirar
que não saiam à luz inventos mais nobres e dignos do gênero humano, uma vez que
os homens se contentam e se satisfazem com empresas tão limitadas e pueris. E
supõem terem buscado e alcançado algo de grandioso.
LXXXIX
Não se deve esquecer de que,
em todas as épocas, a filosofia se tem defrontado com um adversário molesto e
difícil na superstição e no zelo cego e descomedido da religião.[60] A
propósito veja-se como, entre os gregos, foram condenados por impiedade os que,
pela primeira vez, ousaram proclamar aos ouvidos não afeitos dos homens as
causas naturais do raio e das tempestades.[61] Não foram
melhor acolhidos, por alguns dos antigos padres da religião cristã, os que
sustentaram, com demonstrações certíssimas — que não seriam hoje contraditas
por nenhuma mente sensata —, que a Terra era redonda e que, em conseqüência,
existiam antípodas.[62]
Além disso, nas atuais
circunstancias, as condições para a ciência natural se tornaram mais árduas e
perigosas devido às sumas e aos métodos da teologia dos escolásticos. Estes,
como lhes cumpria, ordenaram sistematicamente a teologia, e lhe conferiram a
forma de uma arte, e combinaram, com o corpo da religião, a contenciosa e
espinhosa filosofia de Aristóteles, mais que o conveniente.
Ao mesmo resultado, mas por
diverso caminho, conduzem as especulações dos que procuraram deduzir a verdade
da religião cristã dos princípios dos filósofos e confirmá-la com sua
autoridade, celebrando com grande pompa e solenidade, como legítimo, o consórcio
da fé com a razão e lisonjeiam, assim, o ânimo dos homens com a grata variedade
das coisas, enquanto, com disparidade de condições, mesclam o humano e o
divino. Mas essas combinações de teologia e filosofia apenas compreendem o que
é admitido pela filosofia corrente. As coisas novas, mesmo levando a uma
mudança para melhor, são não só repelidas, como exterminadas.
Finalmente, constatar-se-á
que, mercê da infâmia de alguns teólogos, foi quase que totalmente barrado o
acesso à filosofia, mesmo depurada. Alguns, em sua simplicidade, temem que a
investigação mais profunda da natureza avance além dos limites permitidos pela
sua sobriedade, transpondo, e dessa forma distorcendo, o sentido do que dizem
as Sagradas Escrituras a respeito dos que querem penetrar os mistérios divinos,
para os que se volvem para os segredos da natureza, cuja exploração não está
de maneira alguma interdita. Outros, mais engenhosos, pretendem que, se se
ignoram as causas segundas [63] será mais
fácil atribuir-se os eventos singulares à mão e à férula divinas — o que
pensam ser do máximo interesse para a religião. Na verdade, procuram “agradar a
Deus pela mentira”.[64]
Outros temem que, pelo
exemplo, os movimentos e as mudanças da filosofia acabem por recair e abater-se
sobre a religião. Outros. finalmente, parecem temer que a investigação da
natureza acabe por subverter ou abalar a autoridade da religião, sobretudo para
os ignorantes. Mas estes dois últimos temores parecem-nos saber inteiramente a
um instinto próprio de animais, como se os homens, no recesso de suas mentes e
no segredo de suas reflexões, desconfiassem e duvidassem da firmeza da religião
e do império da fé sobre a razão e, por isso, temessem o risco da investigação
da verdade na natureza. Contudo, bem consideradas as coisas, a filosofia
natural, depois da palavra de Deus, é a melhor medicina contra a superstição, e
o alimento mais substancioso da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente
reputada como a mais fiel serva da religião, uma vez que uma (as Escrituras)
torna manifesta a vontade de Deus, outra (a filosofia natural) o seu poder.
Certamente, não errou o que disse: “Errais por ignorância das Escrituras e do
poder de Deus”[65] onde se
unem e combinam em um único nexo a informação da vontade de Deus e a meditação
sobre o seu poder. Ademais, não é de se admirar que tenha sido coibido o
desenvolvimento da filosofia natural, desde que a religião, que tanto poder
exerce sobre o ânimo dos homens, graças à imperícia e o ciúme de alguns, viu-se
contra ela arrastada e predisposta.
XC
Por outro lado, nos costumes
das instituições escolares, das academias, colégios e estabelecimentos
semelhantes, destinados à sede dos homens doutos e ao cultivo do saber, tudo se
dispõe de forma adversa ao progresso das ciências. De fato, as lições e os
exercícios estão de tal maneira dispostos que não é fácil venha a mente de
alguém pensar ou se concentrar em algo diferente do rotineiro. Se um ou outro,
de fato, se dispusesse a fazer uso de sua liberdade de juízo, teria que, por si
só, levar a cabo tal empresa, sem esperar receber qualquer ajuda resultante do
convívio com os demais. E, sendo ainda capaz de suportar tal circunstância,
acabará por descobrir que a sua indústria e descortino acabarão por se constituir
em não pequeno entrave à sua boa fortuna. Pois os estudos dos homens, nesses
locais, estão encerrados, como em um cárcere, em escritos de alguns autores. Se
alguém deles ousa dissentir, é logo censurado como espírito turbulento e ávido
de novidades. Mas, a tal respeito é preciso assinalar que. com efeito, há uma
grande diferença entre os assuntos políticos e as artes[66]: não
implicam o mesmo perigo um novo movimento e uma nova luz. Na verdade, uma
mudança da ordem civil, mesmo quando para melhor, é suspeita de perturbação,
visto que ela descansa sobre a autoridade, sobre a conformidade geral, a fama e
sobre a reputação e não sobre a demonstração. Nas artes e nas ciências, ao contrário,
o ruído das novas descobertas e dos progressos ulteriores deve ressoar como nas
minas de metal. Assim pelo menos devia ser conforme os ditames da boa razão,
mas tal não ocorre na prática, pois, como antes assinalamos, a forma de
administração das doutrinas e a forma de ordenação das ciências costumam
oprimir duramente o seu progresso.
XCI
Mesmo que viesse a cessar essa
ojeriza, bastaria para coibir o progresso das ciências o fato de a qualquer
esforço ou labor faltar estímulo. Com efeito, não estão nas mesmas mãos o
cultivo das ciências e as suas recompensas. As ciências progridem graças aos
grandes engenhos, mas os estipêndios e os prêmios estão nas mãos do vulgo e dos
príncipes, que, raramente, são mais que medianamente cultos. Dessa maneira, esse
progresso não é apenas destituído de recompensa e de reconhecimento dos homens,
mas até mesmo do favor popular. Acham-se as ciências acima do alcance da maior
parte dos homens e são facilmente destruídas e extintas pelos ventos da opinião
vulgar. Daí não se admirar que não tenha tido curso feliz o que não costuma ser
favorecido com honrarias.
XCII
Contudo, o que se tem
constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências e à
propensão para novas tarefas e para a abertura de novas províncias do saber é o
desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade. Os homens
prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se desconfiados, levando em conta:
a obscuridade da natureza, a brevidade da vida, as falácias dos sentidos, a
fragilidade do juízo, as dificuldades dos experimentos e dificuldades
semelhantes. Supõem existir, através das revoluções do tempo e das idades do
mundo, um certo fluxo e refluxo das ciências; em certas épocas crescem e
florescem; em outras declinam e definham, como se depois de um certo grau e
estado não pudessem ir além.
Se alguém espera ou promete
algo maior, é acusado como espírito descontrolado e imaturo e diz-se que em
tais iniciativas o início é risonho, árduo o andamento e confusa a conclusão.
E, como essa sorte de ponderações acodem facilmente aos homens graves e de
juízo superior, devemos nos prevenir para que, por amor de uma empresa soberba
e belíssima, não venhamos relaxar ou diminuir a severidade de nossos juízos.
Devemos observar diligentemente se a esperança refulge e donde ela provém e,
afastando as mais leves brisas da esperança, passar a discutir e a avaliar as
coisas que pareçam apresentar firmeza. Seja, aqui, invocada e aplicada a
prudência política,[67] que
desconfia por princípio e nos assuntos humanos conjetura o pior. Falemos, pois,
agora de nossas aspirações. Não somos pródigos em promessas, nem procuraremos
coagir ou armar ciladas ao juízo humano, mas tomar os homens pela mão e
guiá-los, com a sua anuência. E, ainda que o meio, de longe mais poderoso de se
encorajar a esperança,[68] seja
colocar os homens diante dos fatos particulares, especialmente dos fatos tais
como se acham recolhidos e ordenados em nossas tabelas de investigação [69] tema que
pertence parcialmente à segunda, mas principalmente à quarta parte de nossa Instauração
—, já que não se trata mais, no caso, de esperança, mas de algo real, todavia,
como tudo deve ser feito gradualmente, prosseguiremos no propósito já traçado de
preparar a mente dos homens. E nessa preparação não é parte pequena a indicação
de esperanças. Porque, afora isso, tudo o mais levaria tristeza ao homem ou a
formar uma opinião ainda mais pobre e vil que a que possui ou a fazê-lo sentir
a condição infeliz em que se encontra, em vez de alguma alegria ou a disposição
para a experimentação. Em vista disso, é necessário propor e explicar os
argumentos que tornam prováveis as nossas esperanças, tal como fez Colombo
que, antes da sua maravilhosa navegação pelo oceano Atlântico, expôs as razões
que o levaram a confiar na descoberta de novas terras e continentes, além do
que já era conhecido. Tais razões, de início rejeitadas, foram mais tarde
comprovadas pela experiência e se constituíram na causa e no princípio de
grandes empresas.
XCIII
Porém, o supremo motivo de
esperança emana de Deus. Com efeito, a empresa a que nos propomos, pela sua
excelência e intrínseca bondade, provém manifestamente de Deus, que é Autor do
bem e Pai das luzes. Pois bem, nas obras divinas, mesmo os inícios mais tênues
conduzem a um êxito certo. E o que se disse da ordem espiritual, que “O reino
de Deus não vem com aparência exterior”,[70] é
igualmente verdadeiro para todas as grandes obras da Divina Providência. Tudo
se realiza placidamente, sem estrépito e a obra se cumpre antes que os homens a
suponham ou vejam. Não se deve esquecer a profecia de Daniel a respeito do fim
do mundo: “Muitos passarão e a ciência se multiplicará”,[71] o que
evidentemente significa que está inscrito nos destinos, isto é, nos desígnios
da Providência, que o fim do mundo o que, depois de tantas e tão distantes
navegações parece haver-se cumprido ou está prestes a fazê-lo — e o progresso
das ciências coincidam no tempo.[72]
XCIV
Segue a mais importante das
razões que alicerçam a esperança. É a que procede dos erros dos tempos
pretéritos e dos caminhos até agora tentados. Excelente é o julgamento, feito
por alguém, ao responsável por desastrosa administração do Estado, com as
seguintes palavras: “O que no passado foi causa de grandes males deve
parecer-nos princípio de prosperidade para o futuro. Pois, se houvésseis
cumprido perfeitamente tudo o que se relaciona com o vosso dever, e, mesmo
assim, não houvesse melhorado a situação dos vossos interesses, não restaria
qualquer esperança de que tal viesse a acontecer. Mas, como as más
circunstâncias em que se encontram não dependem das forças das coisas, mas dos
vossos próprios erros, é de se esperar que, estes corrigidos, haja uma grande
mudança e a situação se torne favorável”.[73] Do mesmo
modo, se os homens, no espaço de tantos anos, houvessem mantido a correta via
da descoberta e do cultivo das ciências, e mesmo assim não tivessem conseguido
progredir, seria, sem dúvida, tida como audaciosa e temerária a opinião no
sentido de um progresso possível. Mas uma vez que o caminho escolhido tenha
sido o errado, e a atividade humana se tenha consumido de forma inoperante,
segue disso que a dificuldade não radica nas próprias coisas, que fogem ao
nosso alcance, mas no intelecto humano, no seu uso e aplicação, o que é
passível de remédio e medicina. Por isso, estimamos ser oportuno expor esses
erros. Pois, quantos foram os erros do passado, tantas serão as razões de
esperança [74] para o
futuro. Embora se tenha antes falado algo a seu respeito, é de toda
conveniência expô-las brevemente, em palavras simples e claras.
XCV
Os que se dedicaram às
ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das
formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das
aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia.[75] A abelha
representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do
jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é
diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das
forças da mente, nem tampouco se limita ao material fornecido pela história
natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato na memória. Mas ele deve
ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da
aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas
faculdades, a experimental e a racional.
XCVI
Ainda não foi criada uma
filosofia natural pura. As existentes acham-se infectadas e corrompidas: na
escola de Aristóteles, pela lógica; na escola de Platão, pela teologia
natural; na segunda escola de Platão, a de Proclo e outros, pela matemática,[76] a quem
cabe rematar a filosofia e não engendrar ou produzir a filosofia natural. Mas
é de se esperar algo de melhor da filosofia natural pura e sem mesclas.
XCVII
Até agora ninguém surgiu
dotado de mente tão tenaz e rigorosa que haja decidido, e a si mesmo imposto,
livrar-se das teorias e noções comuns e aplicar, integralmente, o intelecto,
assim purificado e reequilibrado, aos fatos particulares. Pois a nossa razão
humana [77] é
constituída de uma farragem e massa de coisas, procedentes algumas de muita
credulidade, e outras do acaso e também de noções pueris, que recebemos desde
o início.
É de se esperar algo melhor de
alguém que, na idade madura, de plena posse de seus sentidos e mente
purificada, se dedique integralmente à experiência e ao exame dos fatos
particulares. Nesse sentido prometemo-nos a fortuna de Alexandre Magno: que
ninguém nos acuse de vaidade antes de constatar que o nosso propósito final é o
de banir toda vaidade.
Com efeito, de Alexandre e de
suas façanhas assim falou Ésquines: “Certamente, não vivemos uma vida mortal;
mas nascemos para que a posteridade narre e apregoe os nossos prodígios”, como
que entendendo por milagrosos os feitos de Alexandre.[78]
Mas, em época posterior, Tito
Lívio, apreciando e compreendendo melhor o fato, disse de Alexandre algo como:
“Em última instância, nada mais fez que ter a ousadia de desprezar as coisas
vãs”.[79] Cremos
que nos tempos futuros far-se-á a nosso respeito um juízo semelhante: De
fato nada fizemos de grandioso; apenas reduzimos as proporções do que era
superestimado. Todavia, como já dissemos, não há esperança senão na
regeneração das ciências, vale dizer, na sua reconstrução, segundo uma ordem
certa, que as faça brotar da experiência. Ninguém pode afirmar, segundo
presumimos, que tal tarefa tenha sido feita ou sequer cogitada.
XCVIII
Os fundamentos da experiência
— já que a ela sempre retomamos — até agora ou foram nulos ou foram muito
inseguros. Até agora não se buscaram nem se recolheram coleções [80] de fatos
particulares, em número, gênero ou em exatidão, capazes de informar de algum
modo o intelecto. Mas, ao contrário, os doutos, homens indolentes e crédulos,
acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filosofia certos rumores, quase
mesmo sussurros ou brisas [81] de
experiência, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho.
Dessa forma, introduziu-se na filosofia, no que respeita à experiência, a mesma
prática de um reino ou Estado que cuidasse de seus negócios, não à base de
informações de representantes ou núncios fidedignos, mas dos rumores ou
mexericos de seus cidadãos. Nada se encontra na história natural devidamente
investigado, verificado, classificado, pesado e medido. E o que no terreno da
observação é indefinido e vago é falacioso e infiel na informação. Se alguém se
admira de que assim se fale e pensa não serem justos os nossos reclamos, ao se
lembrar de Aristóteles, homem tão grande ele próprio e apoiado nos recursos de
um tão grande rei,[82] que
escreveu uma tão acurada História dos Animais; e de alguns outros que a
enriqueceram com mais diligência, mas com menos estrépito; e de outros ainda,
que fizeram o mesmo em relação às plantas, os metais, os fósseis, com história
e descrições abundantes, ele não se dá conta, não parece ver ou compreender
suficientemente o assunto de que tratamos. Pois uma é a marcha da história
natural, organizada por amor de si mesma,[83] outra, a
que é destinada a informar o intelecto com ordem (método), para fundar a
filosofia. Essas duas histórias naturais se diferenciam em muitos aspectos,
principalmente nos seguintes: a primeira compreende a variedade das espécies
naturais e não os experimentos das artes mecânicas. Com efeito, da mesma
maneira que na vida política o caráter de cada um, sua secreta disposição de
ânimo e sentimentos melhor se patenteiam em ocasiões de perturbação que em
outras, assim também os segredos da natureza melhor se revelam quando esta é
submetida aos assaltos [84] das artes
que quando deixada no seu curso natural. Em vista disso, é de se esperar muito
da filosofia natural quando a história natural que é a sua base e fundamento —
esteja melhor construída. Até que isso aconteça nada se pode esperar.
XCIX
Por sua vez, mesmo em meio à
abundância dos experimentos mecânicos, há grande escassez dos que mais
contribuem e concorrem para informação do intelecto. De fato, o artesão,
despreocupado totalmente da busca da verdade, só está atento e apenas estende
as mãos para o que diretamente serve a sua obra particular. Por isso, a
esperança de um ulterior progresso das ciências estará bem fundamentada quando
se recolherem e reunirem na história natural muitos experimentos que em si não
encerram qualquer utilidade, mas que são necessários na descoberta das causas e
dos axiomas. A esses experimentos costumamos designar por lucíferos, para
diferenciá-los dos que chamamos de frutíferos.[85] Aqueles
experimentos têm, com efeito, admirável virtude ou condição: a de nunca falhar
ou frustrar, pois não se dirigem à realização de qualquer obra, mas à revelação
de alguma causa natural. Assim, qualquer que seja o caso, satisfazem esse
intento e assim resolvem a questão.
C
Deve-se buscar não apenas uma
quantidade muito maior de experimentos, como também de gênero diferente dos que
até agora nos têm ocupado. Mas é necessário, ainda, introduzir-se um método
completamente novo, uma ordem diferente e um novo processo, para continuar e
promover a experiência. Pois a experiência vaga, deixada a si mesma, como antes
já se disse,[86] é um mero
tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas quando a
experiência proceder de acordo com leis seguras e de forma gradual e
constante, poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.
CI
Todavia, mesmo quando esteja
pronto e preparado o material de história natural e de experiência, na
quantidade requerida para a obra do intelecto, ou seja, para a obra da
filosofia, nem assim o intelecto estará em condições de trabalhar o referido
material espontaneamente e apenas com o auxílio da memória. Seria o mesmo que
se tentasse aprender de memória e reter exatamente todos os cálculos de uma
tábua astronômica. E até agora, em matéria de invenção, tem sido mais importante
o papel da meditação que o da escrita, e a experiência não é ainda literata.[87] Apesar
disso, nenhuma forma de invenção é conclusiva senão por escrito. E é de se
esperar melhores frutos quando a experiência literata for de uso
corrente.
CII
Além disso, sendo tão grande o
número dos fatos particulares, quase um exército, e achando-se de tal modo
esparsos e difusos que chegam a desagregar e confundir o intelecto, não é de se
esperar boa coisa das escaramuças, dos ligeiros movimentos e incursões do
intelecto, a não ser que, organizando e coordenando todos os fatos relacionados
a um objeto, se utilize de tabelas de invenção idôneas e bem dispostas e como
que vivas. Tais tabelas servirão à mente como auxiliares preparados e
ordenados.
CIII
Contudo, mesmo depois de se
haver disposto, como que sob os olhos, de forma correta e ordenada a massa de
fatos particulares, não se pode ainda passar à investigação e à descoberta de novos
fatos particulares ou de novos resultados. Se, não obstante, tal ocorrer, não é
de se ficar satisfeito com apenas isso. Todavia, não negamos que depois que os
experimentos de todas as artes forem recolhidos e organizados e, depois,
levados à consideração e ao juízo de um só homem, seja possível, pela simples
transferência dos conhecimentos de uma arte para outra, com auxílio da
experiência a que chamamos de literata, chegar a muitas novas
descobertas úteis à vida humana e às suas condições. Todavia, tais resultados,
a bem dizer, são de menor importância. Na verdade muito maiores serão os
provenientes da nova luz dos axiomas, deduzidos dos fatos particulares, com
ordem e por via adequada, e que servem, por sua vez, para indicar e designar
novos fatos particulares. Atente-se para isto: o nosso caminho não é plano, há
nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos axiomas, é
descendente quando se volta para as obras.
CIV
Contudo, não se deve permitir
que o intelecto salte e voe dos fatos particulares aos axiomas remotos e aos,
por assim dizer, mais gerais — que são os chamados princípios das artes e das
coisas — e depois procure, a partir da sua verdade imutável, estabelecer e
provar os axiomas médios. E é o que se tem feito até agora graças à propensão
natural do intelecto, afeito e adestrado desde há muito, pelo emprego das
demonstrações silogísticas. Muito se poderá esperar das ciências quando,
seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem interrupção, ou falhas,
se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, destes aos
médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente aos mais gerais. Em
verdade, os axiomas inferiores não se diferenciam muito da simples experiência.
Mas os axiomas tidos como supremos e mais gerais (falamos dos de que dispomos
hoje) são meramente conceituais ou abstratos [88] e nada
têm de sólido. Os médios são os axiomas verdadeiros, os sólidos e como que vivos,
e sobre os quais repousam os assuntos e a fortuna do gênero humano. Também
sobre eles se apoiam os axiomas generalíssimos, que são os mais gerais. Estes
entendemos não simplesmente como abstratos, mas realmente limitados pelos
axiomas intermediários. Assim, não é de se dar asas ao intelecto, mas chumbo e
peso para que lhe sejam coibidos o salto e o vôo. É o que não foi feito até
agora; quando vier a sê-lo, algo de melhor será lícito esperar-se das ciências.
CV
Para a constituição de axiomas
deve-se cogitar de uma forma de indução diversa da usual até hoje e que deve
servir para descobrir e demonstrar não apenas os princípios como são
correntemente chamados como também os axiomas menores, médios e todos, em
suma. Com efeito, a indução que procede por simples enumeração é uma coisa
pueril, leva a conclusões precárias, expõe-se ao perigo de uma instância que a
contradiga. Em geral, conclui a partir de um número de fatos particulares
muito menor que o necessário e que são também os de acesso mais fácil. Mas a
indução que será útil para a descoberta e demonstração das ciências e das artes
deve analisar a natureza, procedendo às devidas rejeições e exclusões, e
depois, então, de posse dos casos negativos necessários, concluir a respeito
dos casos positivos. Ora, é o que não foi até hoje feito, nem mesmo tentado,
exceção feita, certas vezes, de Platão, que usa essa forma de indução para
tirar definições e idéias. Mas, para que essa indução ou demonstração possa ser
oferecida como uma ciência boa e legítima, deve-se cuidar de um sem-número de
coisas que nunca ocorreram a qualquer mortal. Vai mesmo ser exigido mais
esforço que o até agora despendido com o silogismo. E o auxílio dessa indução
deve ser invocado, não apenas para o descobrimento de axiomas, mas também para
definir as noções. E é nessa indução que estão depositadas as maiores
esperanças.
CVI
Na constituição de axiomas por
meio dessa indução, é necessário que se proceda a um exame ou prova: deve-se
verificar se o axioma que se constitui é adequado e está na exata medida dos
fatos particulares de que foi extraído, se não os excede em amplitude e latitude,
se é confirmado com a designação de novos fatos particulares que, por seu
turno, irão servir como uma espécie de garantia. Dessa forma, de um lado, será
evitado que se fique adstrito aos fatos particulares já conhecidos; de outro,
que se cinja a sombras ou formas abstratas em lugar de coisas sólidas e
determinadas na sua matéria. Quando esse procedimento for colocado em uso,
teremos um motivo a mais para fundar as nossas esperanças.
CVII
E aqui deve ser recordado o
que antes se disse [89] sobre a
extensão da filosofia natural e sobre o retorno ao seu âmbito dos fatos
particulares, para que não se instaurem cisões ou rupturas no corpo das
ciências. Pois sem tais precauções muito menos há de se esperar em matéria de
progresso.
CVIII
Tratou-se, pois, da forma de
se eliminar a desesperação, bem como a de se infundir a esperança, eliminando e
retificando os erros dos tempos passados. Vejamos se há ainda mais alguma coisa
capaz de gerar esperanças. Tal de fato ocorre, a saber: se foi possível a homens
que não as buscavam descobrirem muitas coisas, por acaso ou sorte, e até quando
tinham outros propósitos, não pode haver dúvida de que quando as buscarem e se
empenharem com ordem e método,[90] e não por
impulsos e saltos, necessariamente muitas mais haverão de ser descerradas. Por
outro lado, pode ocorrer também, uma ou outra vez, que alguém, por acaso, tope
com algo que antes lhe escapou quando o buscava com esforço e determinação. Mas
na maior parte dos casos, sem dúvida, ocorrerá o contrário. Por conseguinte,
pode-se esperar muito mais e melhor e a menores intervalos de tempo, da razão,
da indústria, da direção e intenção dos homens que do acaso e do instinto dos
animais e coisas semelhantes, que até agora serviram de base para as invenções.
CIX
Pode-se também acrescentar
como argumento de esperança o fato de que muitos dos inventos já logrados são
de tal ordem que antes a ninguém foi dado sequer suspeitar da sua
possibilidade. Eram, ao contrário, olhados como coisas impossíveis. E tal se
deve a que os homens procuram adivinhar as coisas novas a exemplo das antigas e
com a imaginação preconcebida e viciada. Mas essa é uma maneira de opinar
sumamente falaciosa, pois a maioria das descobertas que derivam das fontes das
coisas não flui pelos regatos costumeiros.
Assim, por exemplo, se antes
da invenção dos canhões alguém, baseado nos seus efeitos, os descrevesse: foi
inventada uma máquina que pode, de grande distância, abalar e arrasar as mais
poderosas fortificações, os homens então se poriam a cogitar das diferentes e
múltiplas formas de se aumentar a força de suas máquinas bélicas pela
combinação de pesos e rodas e dispositivos que tais, causadores de embates e
impulsos. Mas a ninguém ocorreria, mesmo em imaginação ou fantasia, essa
espécie de sopro violento e flamejante que se propaga e explode. A sua volta
não divisavam nenhum exemplo de algo semelhante, a não ser o terremoto e o
raio, que, como fenômenos naturais de grandes proporções, não imitáveis pelo
homem, seriam desde logo rejeitados.
Do mesmo modo, se antes da
descoberta do fio da seda [91] alguém
houvesse falado: há uma espécie de fio para a confecção de vestes e alfaias que
supera de longe em delicadeza e resistência e, ainda, em esplendor e suavidade,
o linho e a lã, os homens logo se poriam a pensar em alguma planta chinesa, ou
no pêlo muito delicado de algum animal, ou na pluma ou penugem das aves; mas
ninguém haveria de imaginar o tecido de um pequeno verme tão abundante e que se
renova todos os anos. Se alguém se referisse ao verme teria sido objeto de
zombaria, como alguém que sonhasse com um novo tipo de teia de aranha.
Do mesmo modo, se antes da
invenção da bússola [92] alguém
houvesse falado ter sido inventado um instrumento com o qual se poderia captar
e distinguir com exatidão os pontos cardeais do céu; os homens se teriam
lançado, levados pela imaginação, a conjeturar a construção dos mais rebuscados
instrumentos astronômicos, e pareceria de todo incrível que se pudesse
inventar um instrumento com movimentos coincidentes com os dos céus, sem ser de
substância celeste, mas apenas de pedra ou metal. Contudo, tais inventos e outros
semelhantes permaneceram ignorados pelos homens por tantos séculos, e não foram
descobertos pelas artes, mas graças ao acaso e oportunidade. Por outro lado,
são de tal ordem (como já dissemos), são tão heterogêneos e tão distantes do
que antes era conhecido que nenhuma noção anterior teria podido conduzir a
eles.
Desse modo, é de se esperar
que há ainda recônditas, no seio da natureza, muitas coisas de grande
utilidade, que não guardam qualquer espécie de relação ou paralelismo com as
já conhecidas, mas que estão fora das rotas da imaginação. Até agora não foram
descobertas.
Mas não há dúvida de que no
transcurso do tempo e no decorrer dos séculos virão à luz, do mesmo modo que as
antes referidas. Mas, seguindo o caminho que estamos apontando, elas podem ser
mostradas muito antes do tempo usual, podem ser antecipadas, de forma rápida,
repentina e simultaneamente.
CX
Mas há outra espécie de
invenções que são de tal ordem que nos levam a pensar que o gênero humano pode
preteri-las, e deixar para trás nobres inventos praticamente colocados a seus
pés. Pois, com efeito, se, de um lado, a invenção da pólvora, da seda, da
agulha de marear, do açúcar, do papel e outras do gênero parecem se basear em
propriedades das coisas e da natureza, de outro, a imprensa nada apresenta que
não seja manifesto e quase óbvio.
De fato, os homens não foram
capazes de notar que, se é mais difícil a disposição dos caracteres
tipográficos que escrever as letras à mão, aqueles, uma vez colocados,
propiciam um número infinito de cópias, enquanto que as letras à mão só servem
para uma escrita. Ou talvez não tenham sido capazes de notar que a tinta
poderia ser espessada de forma a tingir sem escorrer (mormente quando se faz a
impressão sobre as letras voltadas para cima). Eis por que por tantos séculos
não se pôde contar com essa admirável invenção, tão propicia à propagação do
saber.[93]
Mas a mente humana, no curso
dos descobrimentos, tem estado tão desastrada e mal dirigida que primeiro
desconfia de si mesma e depois se despreza. Primeiro lhe parece impossível certo
invento; depois de realizado, considera incrível que os homens não o tenham
feito há mais tempo. É isso mesmo que reforça os nossos motivos de esperança,
pois subsiste ainda um sem-número de descobrimentos a serem feitos, que podem
ser alcançados através da já mencionada experiência literata, não só
para se descobrirem operações desconhecidas, como também para transferir,
juntar e aplicar as já conhecidas.
CXI
Há ainda um outro motivo de
esperança que não pode ser omitido. Que os homens se dignem considerar o
infinito dispêndio de tempo, de orgulho e de dinheiro que se tem consumido em
coisas e estudos sem importância e utilidade! Se apenas uma pequena parte
desses recursos fosse canalizada para coisas mais sensatas e sólidas, não
haveria dificuldade que não pudesse ser superada. Parece oportuno acrescentar
isso porque reconhecemos com toda franqueza que uma coleção de história natural
e experimental, tal como a concebemos e como deve ser, é uma empresa grandiosa
e quase real, que requer muito trabalho e muitos gastos.[94]
CXII
Contudo, ninguém deve temer a
multidão de fatos particulares que, na verdade, pode ser tida como mais um
motivo de esperança. Pois os fenômenos particulares das artes e da natureza,
quando afastados e abstraídos da evidência das coisas, são como manípulos para
o trabalho do espírito. E a via dos particulares conduz ao campo aberto e não
está longe de nós. A outra não tem saída e leva a emaranhados sem fim. Os
homens, até agora, pouco e muito superficialmente se têm dedicado à
experiência, mas têm consagrado um tempo infinito a meditações e divagações
engenhosas. Mas se houvesse entre nós alguém pronto a responder às
interrogações incitadas pela natureza, em poucos anos seria realizado o
descobrimento de todas as causas e o estabelecimento de todas as ciências.
CXIII
Pensamos também que o nosso
próprio exemplo poderia servir aos homens de motivo para esperanças e dizemos
isso não por jactância, mas pela sua utilidade. Os que desconfiam considerem a
mim, que sou dentre os homens de meu tempo o mais ocupado dos negócios de
Estado,[95] com saúde
vacilante — o que representa grande dispêndio de tempo e pioneiro deste rumo,
pois não sigo as pegadas de ninguém, e sem comunicar estes assuntos a qualquer
outro mortal.[96] E no
entanto prossegui constantemente, pelo caminho verdadeiro, submetendo o meu
espírito às coisas, tendo assim conseguido, segundo penso, algum resultado.
Considerem em seguida quanto se poderia esperar (tomando o meu exemplo) de
homens com todo o seu tempo disponível, associados no trabalho, tendo pela
frente todo o tempo necessário e levando-se em conta também que se trata de um
caminho que pode ser percorrido não apenas por um indivíduo (como no caminho
racional)[97] mas que
permite que o trabalho e a colaboração de muitos se distribuam perfeitamente
(em especial para a coleta de dados da experiência). Aí então os homens
começarão a conhecer as suas próprias forças, isto é, não quando todos se
dediquem à mesma tarefa, mas quando cada um a uma tarefa diferente.[98]
CXIV
Finalmente, ainda que não
tenha soprado mais que uma débil e obscura aura de esperança procedente desse
novo continente,[99]
entendemos deva ser feita a prova, se não quisermos dar mostras de um espírito
completamente abjeto. Pois não há paridade entre o risco que se corre ao não se
tentar a prova e o proveniente do insucesso. No primeiro caso nos expomos à
perda de um imenso bem; no segundo, há uma pequena perda de trabalho humano.
Assim, tanto do que se há dito como do que não se disse, parece subsistirem
grandes motivos para que o homem destemido se disponha a tentar e para que o
prudente e comedido adquira confiança.
CXV
Expusemos até aqui as diversas
formas de se tolher a desesperação,[100] apontada
como um dos principais obstáculos e causas poderosas de retardamento do
progresso das ciências. Concluímos também nossa explanação a respeito dos
signos e causas dos erros, da inércia e da ignorância até agora predominantes.
Deve ser lembrado também que as causas mais sutis desses óbices, que se acham
fora do alcance do juízo e observação popular, devem ser buscadas no que já se
disse a respeito dos ídolos do espírito humano.
Aqui termina igualmente a
parte destrutiva de nossa Instauração,[101] que
compreende três refutações: refutação da razão humana natural e deixada
a si mesma, refutação das demonstrações e refutação das teorias,
ou dos sistemas filosóficos e doutrinas aceitos. Essa refutação foi cumprida
tal como era possível, isto é, por meio dos signos e dos erros evidentes. Não
podíamos empregar nenhum outro gênero de refutação, por dissentirmos das
demais quanto aos princípios e quanto às formas de demonstração.
É tempo, pois, de passarmos à
arte e às normas de interpretação da natureza. Mas há ainda algo a ser
lembrado. Como nosso propósito neste primeiro livro de aforismos foi o de
preparar a mente dos homens tanto para entender quanto para aceitar o que se
seguirá, e estando já limpo, desbastado e igualado o terreno da mente, é de se
esperar que ela se coloque em boa postura e em disposição benévola em relação
ao que a ela iremos propor.
Com efeito, quando se trata de
coisa nova, induz ao prejuízo não apenas a preocupação de uma eminente opinião
antiga, como também a falsa concepção ou representação antes formada a respeito
do assunto. Por isso nos esforçaremos para conseguir que sejam consideradas
como corretas e verdadeiras as nossas opiniões, mesmo que por algum tempo, como
que em confiança, até que se tenha adquirido conhecimento da coisa mesma.
CXVI
Em primeiro lugar, pedimos aos
homens que não presumam ser nosso propósito, à maneira dos antigos gregos, ou
de alguns modernos, como Telésio, Patrizzi e Severino, fundar alguma nova
seita de filosofia.[102] Não temos
tal desígnio, e nem julgamos de muito interesse para a fortuna dos homens
saber que opiniões abstratas pode ter alguém sobre a natureza ou os princípios
das coisas. Não há dúvida de que muitas opiniões dos antigos podem ser
ressuscitadas e outras novas introduzidas, assim como se podem supor muitas
teorias dos céus que, embora guardando muito bom acordo com os fenômenos,
difiram entre si.
Mas não nos ocuparemos de tais
coisas suscetíveis de opiniões e também inúteis. Ao contrário, a nossa
disposição é de investigar a possibilidade de realmente estender os limites do
poder ou da grandeza do homem e tornar mais sólidos os seus fundamentos. Ainda
que isoladamente e em alguns aspectos particulares tenhamos alcançado, assim
nos parece, resultados mais verdadeiros, mais sólidos, e ainda mais fecundos
que aqueles a que chegaram os homens que deles até agora se ocuparam (o que
resumimos na quinta parte da nossa Instauração),[103] todavia
não pretendemos propor qualquer teoria universal ou acabada. Não parece ter
chegado ainda o momento de fazê-lo. Por isso, não nutrimos esperanças de que a
duração de nossa vida chegue para concluir a sexta parte de nossa Instauração,[104] que está
destinada a contar a filosofia descoberta a partir da legítima interpretação da
natureza. Mas nos daremos por satisfeitos se conseguirmos agir com sobriedade
e proficiência nas partes intermediárias, e lançar aos pósteros as sementes de
uma verdade mais sincera, e não nos furtamos pelo menos ao início das grandes
empresas.
CXVII
E do mesmo modo que não somos
fundadores de uma escola, não nos propomos a prometer ou desenvolver obras de
caráter particular.[105] Contudo,
poderia alguém nos exigir, como penhor, que apresentássemos de nossa parte
alguma produção, já que tanto falamos de obras e a elas tudo relacionamos. O
nosso plano e o nosso verdadeiro procedimento — como já o dissemos muitas vezes
e de bom grado o repetimos — consiste em não extrair obras de obras e
experimentos de experimentos, como fazem os artífices. Pretendemos deduzir das
obras e experimentos as causas e os axiomas e depois, das causas e princípios,
novas obras e experimentos, como cumpre aos legítimos intérpretes da natureza.
Mas em nossas tábuas de
descoberta [106] — que
compreendem a quarta parte [107] da nossa Instauração
e também pelos exemplos particulares que constam da nossa segunda parte — e
ainda nas nossas observações sobre história — que estão na terceira parte [108] qualquer
pessoa de mediana perspicácia e engenho notará aqui indicações e designações de
muitas obras importantes. Mas confessamos abertamente que a história natural
de que dispomos, seja a recolhida dos livros, seja a resultante de nossas
próprias investigações, não é nem tão abundante nem tão comprovada a ponto de
satisfazer e bastar às exigências da legítima interpretação.
Assim, se há alguém mais apto
e preparado para a mecânica e mais sagaz para a busca de novos resultados só
com o uso dos experimentos, consentimos e confiamos à sua indústria a coleta
de minha história e de minhas tábuas, muitas coisas pelo caminho,
conferindo-lhe um uso prático e recebendo um interesse provisório, até que alcance
o êxito definitivo. Quanto a nós, na verdade, como pretendemos mais, condenamos
toda demora precipitada e prematura em coisas como essas a exemplo das maçãs de
Atalanta,[109] como
muitas vezes costumo dizer. Com efeito, não procuramos puerilmente os pomos
dourados, antes tudo depositamos na marcha triunfal da arte sobre a natureza.
Não nos apressamos a colher o musgo ou as espigas ainda verdes: é a messe
sazonada que aguardamos.
CXVIII
Examinando nossa história
natural e nossas tábuas de descoberta certamente ocorrerá a alguém a
existência, em nossos experimentos, de aspectos não bem comprovados, ou,
mesmo, serem eles totalmente falsos. Em vista disso, passará a refutar os novos
descobrimentos como se apoiados em fundamentos e princípios duvidosos ou
falsos. Na verdade, isso nada significa, pois é necessário que tal aconteça no
início. Seria como se na escrita ou na impressão uma ou outra letra estivessem
mal colocadas (ou fora do lugar), o que não chegaria a confundir muito o
leitor, uma vez que o próprio sentido acaba facilmente por corrigir os erros.
Da mesma maneira, reflitam os homens que na história natural muitos falsos
experimentos podem ser tomados e aceitos como verdadeiros, e mais tarde
facilmente rejeitados e expurgados, quando da descoberta de causas e de
axiomas. É igualmente verdadeiro que se encontra na história natural e nos
experimentos uma série longa e contínua de erros que, todavia, não poderão ser
corrigidos pela boa disposição do engenho.
Em vista disso, se a nova
história natural que foi coligida e comprovada com tanta diligência,
severidade e zelo quase religioso deixa passar algum erro ou falsidade nos
fatos particulares, o que se poderá dizer então da história natural corrente
que é, em comparação com a nossa, tão negligente e superficial? Ou da filosofia
codificada sobre a areia ou sirtes? Portanto, ninguém se deve preocupar com o
que foi dito.
CXIX
Serão também encontradas em
nossa história natural e em nossos experimentos muitas coisas superficiais e
comuns, outras vis e mesmo grosseiras, finalmente outras sutis e meramente
especulativas e quase sem qualquer utilidade. Coisas, enfim, que poderiam
afastar os homens do estudo, bem como desgostá-los.
Quanto às coisas que parecem
comuns, reflitam os homens em sua conduta habitual que não tem sido outra que
referir e adaptar as causas das coisas que raramente ocorrem às que ocorrem com
freqüência, sem, todavia, indagar das causas daquelas mais freqüentes,
aceitando-as como fatos admitidos e assentados.
Dessa forma, não buscam as
causas do peso, da rotação dos corpos celestes, do calor, do frio, da luz, do
duro, do mole, do tênue, do denso, do líquido, do sólido, do animado, do
inanimado, do semelhante, do dessemelhante, e nem tampouco do orgânico. Antes,
tomam tais coisas por evidentes e manifestas e se entregam à disputa e à
determinação das que não ocorrem com tanta freqüência e não são tão familiares.
Mas, quanto a nós, que sabemos
não se poder formular juízos acerca das coisas raras e extraordinárias e muito
menos trazer à luz algo de novo, antes de se terem examinado devidamente e de
se haverem descoberto as causas das coisas comuns, e as causas das causas, fomos
compelidos, por necessidade, a acolher em nossa história as coisas mais comuns.
Por isso, estabelecemos que não há nada tão pernicioso à filosofia como o fato
de as coisas familiares e que ocorrem com freqüência não atraírem e não
prenderem a reflexão dos homens, mas serem admitidas sem exame e investigação
das suas causas. Disso resulta que é mais freqüente recolherem-se informações
sobre as coisas desconhecidas que dedicar-se atenção às já conhecidas.
CXX
Com referência a fatos
considerados vis e torpes, aos quais (como diz Plínio),[110] é
necessário render homenagem, devem integrar, não menos que os mais brilhantes
e preciosos, a história natural. Não será a história natural maculada: do mesmo
modo que também não se macula o sol que penetra igualmente palácios e cloacas.
Não pretendemos dedicar ou construir um capitólio ou uma pirâmide à soberba
humana. Mas fundamos no intelecto humano um templo santo à imagem do mundo. E
por ele nos pautamos. Pois tudo o que é digno de existir é digno de ciência,
que é a imagem da realidade. As coisas vis existem tanto quanto as admiráveis.
E indo mais longe: do mesmo modo que se produzem excelentes aromas de matérias
pútridas, como o almíscar e a algália, também de circunstâncias vis e sórdidas
emanam luz e exímias informações. E isso é suficiente, pois esse gênero de
desagrado é pueril e efeminado.
CXXI
Há ainda outro assunto que
deve merecer o mais acurado exame. É que muitas das coisas da nossa história
parecerão, ao intelecto vulgar e a qualquer mente afeita às coisas presentes,
curiosas e de uma sutileza inútil. Disso já tratamos e vamos repetir o que
antes dissemos: de início e por certo tempo, buscamos apenas os experimentos lucíferos
e não os experimentos frutíferos, tomando por exemplo a criação divina
que, como temos reiterado, no primeiro dia produziu unicamente a luz, a ela
dedicando todo um dia, não se aplicando nesse dia a nenhuma obra material.
Se alguém reputa tais coisas
como destituídas de uso, seria o mesmo que entendesse não ter também a luz
qualquer uso, por não se tratar de uma coisa sólida ou material. E, a bem da
verdade, deve ser dito que o conhecimento das naturezas simples,[111] quando
bem examinado e definido, é como a luz, que abre caminho ao segredo de todas as
obras, e com o poder que lhe é próprio abrange e arrasta todas as legiões e
exércitos de obras e as fontes dos axiomas mais nobres, não sendo, contudo, em
si mesma de grande uso. Da mesma forma, as letras do alfabeto, em si e tomadas
isoladamente, nada significam e a nada servem. Contudo, são como que a
matéria-prima para a composição e preparação de todo discurso. Assim também as
sementes das coisas têm virtualmente grande poder, mas fora de seu processo de
desenvolvimento para nada servem. E os raios dispersos da própria luz, se não
convergentes, não produzem beneficio.
Se alguém se ofende com as
sutilezas especulativas, o que dizer então dos escolásticos que, com tanta
indulgência, se entregaram às sutilezas? Tais sutilezas se consumiam nas
palavras ou, pelo menos, em noções vulgares (o que dá no mesmo), não penetravam
nas coisas ou na natureza. Não ofereciam utilidade não só em suas origens, como
também em suas conseqüências. E não eram, enfim, de tal forma que, como as de
que nos ocupamos, não tendo utilidade no presente, oferecem-na infinita em
suas conseqüências. Tenham os homens por certo que toda sutileza nas disputas
ou nos esforços da mente, se aplicada depois da descoberta dos axiomas, será
extemporânea e que o momento próprio, pelo menos precípuo do uso de sutilezas,
é aquele em que se examina a experiência, para a partir dela se constituírem os
axiomas. Com efeito, aquele outro gênero de sutileza persegue e procura captar
a natureza, mas nunca a alcança e submete. É muito certo, se transposto para a
natureza, o que se diz da ocasião e da fortuna, “que tem fartos cabelos vista
de frente e é calva vista de trás”.[112]
Enfim, a propósito do desprezo
que se vota, na história natural, às coisas vulgares, vis ou muito sutis ou de
nenhuma utilidade, em sua origem, são como oraculares as palavras de uma pobre
mulher, dirigidas a um príncipe arrogante, que rejeitara sua petição por ser
indigna de sua majestade: “Deixa, pois, de ser rei”.[113] Pois é
absolutamente certo que ninguém que deixe de levar em conta essas coisas, por
ínfimas e insignificantes que sejam, conseguirá e poderá exercer domínio sobre
a natureza.
CXXII
Costuma-se objetar também ser
espantoso e muito rigoroso querermos, de um só golpe, rechaçar todas as
ciências e todos os autores e, isso, sem recorrer a nenhum dos antigos, para
auxílio ou defesa, valendo-nos apenas de nossas próprias forças.
Entretanto, sabemos
perfeitamente que, se quiséssemos agir com menos boa fé não nos seria difícil
relacionar o que vamos expor com os tempos antigos anteriores aos dos gregos,
nos quais as ciências, especialmente as da natureza, mais floresceram, ainda em
silêncio, antes de passarem pelas trombetas e flautas dos gregos; ou, mesmo
ainda que em parte, com alguns dentre os próprios gregos, neles recolhendo
apoio e glória, à maneira dos novos-ricos que, com ajuda de genealogias, forjam
e inventam a sua nobreza, a partir da descendência de alguma antiga linhagem.
Quanto a nós apoiados na evidência dos fatos, rejeitamos toda sorte de
fantasia ou impostura. E não reputamos de interesse para o que nos ocupa o
saber-se se o que vai ser descoberto já era conhecido dos antigos ou se está
sujeito às vicissitudes das coisas ou às circunstâncias desta ou daquela
idade. Tampouco parece digno da preocupação dos homens o saber-se se o Novo
Mundo é aquela ilha Atlântida, conhecida dos antigos, ou se foi descoberta
agora pela primeira vez. A descoberta das coisas deve ser feita com recurso à
luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade.
Quanto à censura universal que
fizemos, é inquestionável, bem considerado o assunto, que parece mais plausível
e mais modesta se feita por partes. Pois, se os erros não se tivessem radicado
nas noções primeiras, não teria sido possível que certas noções corretas não
tivessem corrigido as demais (portadoras de erros). Mas como os erros são
fundamentais e não provenientes de juízos falhos ou falsos, mas da negligência
e da ligeireza com que os homens trataram os fatos, não é de se admirar que não
tenham conseguido o que não buscaram e que não tenham alcançado a meta que se
não tinham proposto, e, ainda, que não tenham percorrido um caminho em que não
entraram ou de que se transviaram.
E, se nos acusam de arrogantes,
cumpre-nos observar que isso seria verdadeiro de alguém que pretendesse traçar
uma linha reta ou um círculo, melhor que algum outro, servindo-se apenas da
segurança das mãos e do bom golpe de vista. No caso, haveria uma comparação de
capacidade. Mas se alguém afirma poder traçar uma linha mais reta e um círculo
mais perfeito servindo-se da régua e do compasso, em comparação a alguém que
faça uso apenas das mãos e da vista, esse com certeza não seria um jactancioso.
O que ora dizemos não se refere somente aos nossos primeiros esforços e
tentativas, mas também aos dos que se seguiram com os mesmos propósitos. Pois
o nosso método de descoberta das ciências quase que iguala os engenhos e não
deixa muita margem à excelência individual, pois tudo submete a regras rígidas
e demonstrações. Eis por que, como já o dissemos muitas vezes, a nossa obra
deve ser atribuída mais à sorte que à habilidade, e é mais parto do tempo que
do talento. Pois parece não haver dúvidas de que uma espécie de acaso intervém
tanto no pensamento dos homens quanto nas obras e nos fatos.
CXXIII
Assim, diremos de nós o que
alguém, por gracejo, disse de si: “Não podem ter a mesma opinião quem bebe água
e quem bebe vinho”.[114] Com
efeito, os demais homens, tanto os antigos como os modernos, beberam nas
ciências um licor cru, como a água que mana espontaneamente de sua
inteligência, ou haurido pela dialética, como de um poço, por meio de roldanas.
Mas, de nossa parte, bebemos e brindamos um licor preparado com abundantes
uvas, amadurecidas na estação, de racemos escolhidos, logo espremidas no lagar,
e depois purificado e clarificado em vasilhame próprio. Em vista disso, não é
de se admirar que não nos ponhamos de acordo com eles.
CXXIV
Podem fazer-nos ainda outra
objeção: a de que mesmo nós não prefixamos para as ciências a meta e o escopo
melhores e mais verdadeiros, fato que censuramos em outros. E que a
contemplação da verdade é mais digna e elevada que a utilidade e a grandeza de
qualquer obra,[115] e também
que essa longa, solícita e instante dedicação à experiência, à matéria e ao
fluxo das coisas particulares curva a mente para a terra ou mesmo a abandona a
um Tártaro de confusão e desordem e a afasta e distancia da serenidade e
tranqüilidade da sabedoria abstrata, que é muito mais próxima do divino. De bom
grado assentimos nessas observações, pois tratamos, precipuamente e antes de
mais nada, de alcançar o que os nossos críticos indicam e escolhem.
Efetivamente construímos no intelecto humano um modelo verdadeiro [116] do mundo,
tal qual foi descoberto e não segundo o capricho da razão de fulano ou
beltrano. Porém, isso não é possível levar a efeito, sem uma prévia e
diligentíssima dissecção e anatomia do mundo. Por isso, decidimos correr com
todas essas imagens ineptas e simiescas que a fantasia humana infundiu nos
vários sistemas filosóficos. Saibam os homens como já antes dissemos a imensa
distância que separa os ídolos da mente humana das idéias da mente divina.[117] Aqueles,
de fato, nada mais são que abstrações arbitrárias; estas, ao contrário, são as
verdadeiras marcas do Criador sobre as criaturas, gravadas e determinadas sobre
a matéria, através de linhas exatas e delicadas. Por conseguinte, as coisas em
si mesmas, neste gênero, são verdade e utilidade,[118] e as
obras devem ser estimadas mais como garantia da verdade que pelas comodidades
que propiciam à vida humana.[119]
CXXV
Pode ser também que sejamos
tachados de fazer algo já feito antes e que mesmo os antigos seguiram já
semelhante caminho. Assim, qualquer um poderá tomar como verossímil que, depois
de tanta agitação e esforço, acabamos por cair em uma daquelas filosofias
instituídas pelos antigos. Também eles partiam em suas meditações de grande
quantidade e acúmulo de exemplos e fatos particulares e os dispunham
separadamente segundo os assuntos. A seguir compunham as suas filosofias e as
suas artes e, depois de procederam a uma verificação, enunciavam as suas
opiniões, não sem antes ter acrescentado, aqui e ali, exemplos, a título de
prova ou de elucidação. Todavia, consideraram supérfluo e fastidioso transcrever
suas notas de fatos particulares, apontamentos e comentários e, dessa forma,
imitaram o procedimento usado na construção: depois de terminado o edifício
foram removidos da vista as máquinas e os andaimes. Não há motivo para crer que
tenham procedido de outra forma. Mas quem não se esqueceu do que dissemos
antes, facilmente responderá a essa objeção, que é, na verdade, mais um
escrúpulo. A forma [120] de investigação
e de descoberta própria dos antigos, e sabemo-lo bem, se encontra expressa em
seus escritos. E essa forma não consistia em mais que galgar de um salto, a
partir de alguns exemplos e fatos particulares (juntamente com noções comuns e
talvez uma certa porção das opiniões mais aceitas), às conclusões mais gerais
ou aos princípios das ciências, Depois, a partir dessas verdades tidas como
imutáveis e fixas, por meio de proposições intermediárias, estabeleciam as
conclusões inferiores e, a partir destas, constituíam a arte. Se, porventura,
surgissem novos fatos particulares e exemplos que contrariassem as suas
afirmações, por meio de distinções ou da aplicação de suas regras
encaixavam-nos em suas doutrinas ou, quando não, grosseiramente os descartavam
como exceções. E as causas dos fatos particulares, não conflitantes com os seus
princípios, essas eram pertinaz e laboriosamente a eles acomodadas. Aquela
experiência e aquela história natural não eram, pois, o que deviam ser,
estavam antes muito longe e, ademais, esse vôo súbito aos princípios mais
gerais punha tudo a perder.
CXXVI
Ainda nos pode ser endereçado
o reparo de que, sob o pretexto de admitirmos unicamente a enunciação de juízos
e o estabelecimento de princípios certos, só depois de se terem alcançado as
verdades mais gerais, rigorosamente a partir de graus intermediários, sustentamos
a suspensão do juízo e acabamos assim por cair em uma espécie de acatalepsia.
Mas, em verdade, não cogitamos e nem propomos a acatalepsia, mas a eucatalepsia,[121] pois não
pretendemos abdicar dos sentidos, mas ampará-los; nem desprezar o intelecto,
mas dirigi-lo. Enfim, é melhor saber-se tudo o que ainda está para ser feito,
supondo que não o sabemos, que supor-se que bem o sabemos, e ignorar totalmente
o que nos falta.
CXXVII
Ainda nos pode ser indagado,
mais como dúvida que como objeção, se intentamos, com nosso método,
aperfeiçoar apenas a filosofia natural [122] ou também
as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos deve
ser tomado como se estendendo a todas as ciências. Do mesmo modo que a lógica
vulgar, que ordena tudo segundo o silogismo, aplica-se não somente às ciências
naturais, mas a todas as ciências, assim também a nossa lógica, que procede por
indução, tudo abarca. Por isso, pretendemos constituir história e tábuas de
descobertas para a ira, o medo, a vergonha e assuntos semelhantes; e também
para exemplos das coisas civis e, não menos, para as operações mentais, como a
memória, para a composição e a divisão,[123] para o
juízo,[124] etc. E,
ainda, para o calor, para o frio, para a luz, vegetação e assuntos semelhantes.
Porém, como o nosso método de interpretação, uma vez preparada e ordenada a
história, não se dirige unicamente aos processos discursivos da mente, como a
lógica vulgar, mas à natureza de todas as coisas, tratamos de conduzir a mente
de tal modo que possa se aplicar à natureza das coisas, de forma adequada a
cada caso particular. É por isso que na doutrina da interpretação indicamos
muitos e diversos preceitos que, de alguma forma, ajustam o método de
investigação às qualidades e condições do assunto que se considera.
CXXVIII
Mas no que não pode pairar
qualquer dúvida é quanto à nossa pretensa ambição de destruir e demolir a
filosofia, as artes e as ciências, ora em uso. Antes pelo contrário, admitimos
de bom grado o seu uso, o seu cultivo e o respeito de que gozam. De modo algum
nos opomos a que as artes comumente empregadas continuem a estimular as disputas,
a ornar os discursos, sirvam às conveniências professorais e aproveitem os
reclamos da vida civil e, como as moedas, circulem graças ao consenso dos
homens. Indo mais longe, declaramos abertamente que tudo o que propomos não há
de ser de muito préstimo a esse tipo de usos, uma vez que não poderá ser
colocado ao alcance do vulgo, a não ser pelos seus efeitos e pelas obras
propiciados. São testemunho de nossa boa disposição e de nossa boa vontade,
para com as ciências ora aceitas, nossos escritos já publicados, especialmente
os livros sobre O Progresso das Ciências.[125] Não
intentamos, por isso, prová-lo melhor com palavras. Contudo, advertimos de
modo claro e firme que com os atuais métodos não se pode lograr grandes
progressos nas doutrinas e nas indagações sobre ciências, e bem por isso não se
podem esperar significativos resultados práticos.
CXXIX
Resta-nos dizer algumas
palavras acerca da excelência do fim proposto. Se as tivéssemos dito logo de
início, poderiam ser tomadas por simples aspirações. Mas, uma vez que firmamos
as esperanças e eliminamos os iníquos prejuízos, terão certamente mais peso. Se
tivéssemos conduzido e realizado tudo sem invocar a participação e a ajuda de
outros para a nossa empresa, nesse caso, abster-nos-íamos de quaisquer
palavras, para que não fossem tomadas como proclamadoras de nossos próprios
méritos. Mas, como é necessário estimular a indústria dos outros homens, e
mesmo excitar e inflamar-lhes o ânimo, é de toda conveniência fixar certos
pontos em suas mentes.
Em primeiro lugar, parece-nos
que a introdução de notáveis descobertas ocupa de longe o mais alto posto entre
as ações humanas. Esse foi também o juízo dos antigos. Os antigos, com efeito,
tributavam honras divinas aos inventores,[126] enquanto
que concediam aos que se distinguiam em cometimentos públicos, como os
fundadores de cidades e impérios, os legisladores, os libertadores da pátria de
males repetidos, os debeladores das tiranias, etc., simplesmente honras de
heróis. E, em verdade, a quem estabelecer entre ambas as coisas um confronto
correto, parecerá justo o juízo daqueles tempos remotos. Pois, de fato, os
benefícios dos inventos podem estender-se a todo o gênero humano, e os
benefícios civis alcançam apenas algumas comunidades e estes duram poucas
idades, enquanto que aqueles podem durar para sempre. Por outro lado, a reforma
de um Estado dificilmente se cumpre sem violência e perturbação, mas os
inventos trazem venturas e os seus benefícios a ninguém prejudicam ou
amarguram.
Além disso, os inventos são
como criações e imitações das obras divinas, como bem cantou o poeta:
Primum frugiferos foetus mortalibus aegris
Dididerant quondam praestanti nomini Athenae
Et RECREAVERUNT vitam legesque rogarunt.[127]
Dididerant quondam praestanti nomini Athenae
Et RECREAVERUNT vitam legesque rogarunt.[127]
E é digno de nota o exemplo de
Salomão, eminente pelo império, pelo ouro, pela magnificência de suas obras,
pela escolta e famulagem, pela sua frota, pela imensa admiração que provocava
nos homens, e que nada dessas coisas elegeu para a sua glória, e em vez disso
proclamou: “A glória de Deus consiste em ocultar a coisa, a glória do rei em
descobri-la”. [128]
Considere-se ainda, se se
quiser, quanta diferença há entre a vida humana de uma região das mais
civilizadas da Europa e uma região das mais selvagens e bárbaras da Nova Índia.[129] Ela
parecerá tão grande que se poderá dizer que “O homem é Deus para o homem”,[130], não só
graças ao auxílio e benefício que ele pode prestar a outro homem, como também
pela comparação das situações. E isso ocorre não devido ao solo, ao clima ou à
constituição física.
Vale também recordar a força,
a virtude e as conseqüências das coisas descobertas, o que em nada é tão
manifesto quanto naquelas três descobertas que eram desconhecidas dos antigos e
cujas origens, embora recentes, são obscuras e inglórias. Referimo-nos à arte
da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três
descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira
nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. Daí se
seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal ordem que não consta que nenhum
império, nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido maior
influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos.
A esta altura, não seria
impróprio distinguirem-se três gêneros ou graus de ambição dos homens. O
primeiro é o dos que aspiram ampliar seu próprio poder em sua pátria, gênero
vulgar a aviltado; o segundo é o dos que ambicionam estender o poder e o
domínio de sua pátria para todo o gênero humano, gênero sem dúvida mais digno,
mas não menos cúpido. Mas se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e
o domínio do gênero humano sobre o universo, a sua ambição (se assim pode ser
chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas. Pois bem, o
império do homem sobre as coisas se apóia unicamente nas artes e nas ciências.
A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe.[131]
E mais ainda: se a utilidade
de um invento particular abalou os homens a ponto de levá-los a considerar mais
que homem aquele que ofereceu à humanidade inteira apenas um único beneficio,
que excelso lugar não ocupará a descoberta que vier abrir caminho a todas as demais
descobertas? Contudo, e para dizer toda a verdade, assim como devemos dar
graças à luz, mercê da qual podemos praticar as artes, ler e reconhecermo-nos
uns aos outros, devemos reconhecer que a própria visão da luz é muito mais
benéfica e bela que todas as suas vantagens práticas. Assim também a
contemplação das coisas tais como são, sem superstição e impostura, sem erro ou
confusão, é em si mesma mais digna que todos os frutos das descobertas.
Por último, se se objetar com
o argumento de que as ciências e as artes se podem degradar, facilitando a
maldade, a luxúria e paixões semelhantes, que ninguém se perturbe com isso,
pois o mesmo pode ser dito de todos os bens do mundo, da coragem, da força, da
própria luz e de tudo o mais. Que o gênero humano recupere os seus direitos
sobre a natureza, direitos que lhe competem por dotação divina. Restitua-se ao
homem esse poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta e pela
verdadeira religião.
CXXX
Já é tempo de expor a arte de
interpretar a natureza. A propósito devemos deixar claro que, embora acreditemos
ai se encontrarem preceitos muito úteis e verdadeiros, não lhe atribuímos
absoluta necessidade ou perfeição. De fato, somos da opinião de que se os
homens tivesssem à mão uma adequada história da natureza e da experiência, e a
ela se dedicassem cuidadosamente, e se, além disso, se impusessem duas
precauções: uma, a de renunciar às opiniões e noções recebidas; outra, a de
coibir, até o momento exato, o ímpeto próprio da mente para os princípios mais
gerais e para aqueles que se acham próximos; se assim procedessem, acabariam,
pela própria e genuína força de suas mentes, sem nenhum artifício, por chegar à
nossa forma de interpretação. A interpretação é, com efeito, a obra
verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos. Mas
com os nossos preceitos tudo será mais rápido e seguro.
Não pretendemos que nada lhe
possa ser acrescentado. Ao contrário, nós, que consideramos a mente não
meramente pelas faculdades que lhe são próprias, mas na sua conexão com as
coisas, devemos presumir que a arte da invenção robustecer-se-á com as
próprias descobertas.
LIVRO II
I
Engendrar e introduzir nova
natureza ou novas naturezas [1] em um
corpo [2] dado, tal
é a obra e o fito do poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é
descobrir a forma [3] de uma
natureza dada ou a sua verdadeira diferença ou natureza naturante [4] ou fonte
de emanação (estes são os vocábulos de que dispomos mais adequados para os
fatos que apresentamos). A estas empresas primárias subordinam-se duas outras
secundárias e de cunho inferior. A primeira é a transformação de corpos
concretos de um em outro, nos limites do possível;[5] a
segunda, a descoberta de toda geração e movimento do processo latente,[6] contínuo,
a partir do agente manifesto até a forma implícita [7] e
descobrir, também, o esquematismo latente [8] dos
corpos quiescentes e não em movimento.
II
A infeliz situação em que se
encontra a ciência humana transparece até nas manifestações do vulgo.
Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas causas.[9] E, não
indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a matéria, a forma, a causa
eficiente, a causa final.[10] Destas, a
causa final longe está de fazer avançar as ciências, pois na verdade as
corrompe; mas pode ser de interesse para as ações humanas.[11] A
descoberta da forma tem-se como impossível.[12] E a causa
eficiente e a causa material (tal como são investigadas e admitidas, isto é,
como remotas e sem o processo latente no sentido da forma) são
perfunctórias e superficiais, em nada beneficiando a ciência verdadeira e
ativa. Não nos esquecemos, porém, de antes ter notado e procurado sanar o erro
da mente humana que consiste em atribuir à forma o afirmado da essência.[13] Ainda que
na natureza, de fato, nada mais exista que corpos individuais que produzem
atos puros individuais, segundo uma lei, na ciência é essa mesma lei, bem assim
a sua investigação, na descoberta e explicação, que se constitui no fundamento
para o saber e para a prática. Pelo nome de forma entendemos essa lei e seus
parágrafos,[14] mormente
porque tal vocábulo é de uso comum e se tornou familiar.
III
Quem conhece a causa de alguma
natureza (como a da brancura ou do calor), somente em determinados sujeitos,
possui uma ciência imperfeita, que pode produzir um efeito em apenas
determinadas matérias (entre as que são suscetíveis), esse possui igualmente um
poder imperfeito. E quem conhece apenas a causa eficiente e a causa material
(que são causas instáveis e não mais que veículos que em certos casos provocam
a forma), esse pode chegar a novas descobertas em matéria algo semelhante e
para isso preparada, mas não conseguir mudar os limites mais profundos e
estáveis das coisas. Mas o que conhece as formas abarca a unidade da natureza
nas suas mais dissímeis matérias e, em vista disso, pode descobrir e provocar o
que até agora não se produziu, nem pelas vicissitudes naturais, nem pela
atividade experimental, nem pelo próprio acaso e nem sequer chegou a ser
cogitado pela mente humana. Assim é que da descoberta das formas resultam a
verdade na investigação e a liberdade na operação.
IV
Ainda que as vias que levam ao
humano poder e à humana ciência estejam muito ligadas e sejam quase
coincidentes, apesar do pernicioso e inveterado hábito de se propender para as
abstrações, é muito mais seguro urdir e derivar as ciências dos mesmos
fundamentos apropriados para o lado prático e deixar que esta designe e
determine o lado contemplativo. Em vista disso, para se gerar ou introduzir em
um corpo dado uma certa natureza, é necessário se considere devidamente o
preceito ou direção ou dedução que deve ser escolhido, e isso deve ser feito em
termos claros e não abstrusos.
Por exemplo, se alguém se
propõe a dotar a prata da cor amarela do ouro ou aumentar-lhe o peso
(observando as leis da matéria) ou tornar transparente uma pedra não
transparente, ou dar resistência ao vidro, ou vegetação a um corpo não vegetal,
deve averiguar a regra ou a dedução mais conveniente para o caso. Com tal
propósito, em primeiro lugar, estará, sem dúvida, interessado em um
procedimento que não frustre a empresa, nem leve ao malogro o experimento. Em
segundo lugar, estará igualmente interessado em um procedimento que não o
constranja nem o force ao uso de certos meios e modos particulares de proceder.
Pois pode ocorrer que não disponha de tais meios ou não tenha possibilidade ou
condições de consegui-los. E se há outros meios ou modos para reproduzir a
natureza desejada (além daqueles preceitos), eles poderiam estar ao alcance do
operador. E este poderia, pela rigidez dos preceitos, anular os resultados. Em
terceiro lugar, desejará que lhe seja indicado algo que não seja tão difícil
quanto a própria operação investigada, mas que seja mais próximo da prática.
A regra verdadeira e perfeita
para o operar pode ser assim enunciada: que seja certa, livre e predisposta
ou que esteja ordenada para a ação.[15] O mesmo
deve ser levado em conta para a descoberta da forma. Pois a forma de uma
natureza dada é tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a
natureza. Está presente sempre que essa natureza também o esteja,
universalmente a afirma e é constantemente inerente a ela. E essa mesma forma
é de tal ordem que, se se afasta, a natureza infalivelmente se desvanece; que
sempre que está ausente está ausente a natureza, quando totalmente a nega, por
só nela estar presente. Finalmente, a verdadeira forma é tal que deduz a
natureza de algum princípio de essência [16] que é
inerente a muitas naturezas e é mais conhecido (como se diz) na ordem natural
que a própria forma.[17] Por
conseguinte, o enunciado e a regra do verdadeiro e perfeito axioma do saber: que
se descubra outra natureza que seja conversível à natureza dada e que ainda
seja a limitação de uma natureza mais geral, à maneira de um verdadeiro gênero.[18] Estes
dois enunciados, um ativo e outro contemplativo, são a mesma coisa, pois o que
é mais útil na prática é mais verdadeiro no saber.[19]
V
A regra [20] ou axioma
para a transformação dos corpos é de duas espécies. A primeira considera o
corpo como um conjunto ou conjugação de naturezas simples. Veja-se, no ouro
estão reunidas as seguintes características: ser amarelo, ter um determinado
peso, ser maleável e dúctil até determinado limite, não ser volátil ou perder a
sua quantidade sob a ação do fogo, liquefazer-se com determinada fluidez,
separar-se e solver-se por determinados meios, e outras naturezas semelhantes
que se encontram no ouro. Desse modo, tal axioma deduz a coisa das formas das
naturezas simples. Quem conhecer as formas e os modos de se introduzir o
amarelo, o peso, a ductilidade, a fixidez, a fluidez, a solução, etc., e suas
graduações e modos, saberá como proceder para conjugar em um único corpo essas
qualidades, para conduzi-las à transformação em ouro.[21] Essa
espécie de operação pertence à ação primária. Pois o método de se produzir uma
única natureza simples é o mesmo que o de muitas; apenas o homem se sente mais
limitado e tolhido nas suas operações, quando se trata de várias, em vista da
dificuldade de coordenar essas naturezas que não se unem tão facilmente, como
pelas trilhas ordinárias do mundo natural. Contudo, deve ser lembrado que tal
método de operar [22] que
distingue as naturezas é constante, eterno e universal, e abre amplas vias ao
poder humano, e isso a um ponto tal que, no estado atual das coisas, a mente
humana pode sequer cogitar ou representar.
A segunda espécie de axiomas
(a que depende da descoberta do processo latente) [23] não
procede das naturezas simples, mas dos corpos concretos, tal como se encontram
na natureza em seu curso ordinário. Por exemplo, se se trata de investigar, a
partir de sua origem, o modo e o processo de formação do ouro ou de qualquer
outro metal ou a pedra, a partir de seus primeiros mênstruos [24] ou de
seus rudimentos até o estado acabado de mineral; ou apreender o processo pelo
qual se gera a erva, a partir das primeiras concreções do suco na terra ou a
partir da semente até a planta formada, acompanhando toda a sucessão de
movimentos e todos os diversos e continuados esforços da natureza; igualmente,
investigar a geração dos animais, discernindo a partir do coito até o parto. E
proceder da mesma forma em relação aos demais corpos.
Mas, na verdade, essa
investigação não se restringe à geração dos corpos, mas se estende aos outros
movimentos e operações da natureza. Assim, por exemplo, se se trata de
investigar a série completa e contínua da ação da nutrição, a partir da
ingestão inicial do alimento até a sua perfeita assimilação; ou o movimento
involuntário dos animais, a partir da primeira impressão da imaginação e dos
continuados esforços do espírito [25] até as
flexões e movimentos dos membros; ou os distintos movimentos da língua, dos
lábios e dos demais instrumentos até a emissão de vozes articuladas, tudo
isso, com efeito, também respeita às naturezas concretas ou coligadas e conjugadas.
Estas podem ser consideradas como modos de ser habituais, particulares e
especiais da natureza e não como leis fundamentais e comuns que constituem as
formas. Não obstante, deve-se reconhecer que este segundo procedimento é mais
expedito, mais disponível e oferece mais esperanças que o primeiro.
E da mesma forma, a parte
operativa, que corresponde a esta especulativa, estende e promove a operação, a
partir do que ordinariamente se descobre na natureza, indo para as mais
próximas, até as que se não distanciam muito destas. Mas as operações mais
profundas e mais radicais na natureza dependem sempre dos primeiros axiomas.
Em vista disso, onde não é dada ao homem a faculdade de operar, mas apenas de
saber, como em relação às coisas celestes — pois não é possível ao homem agir
sobre as coisas celestes, para mudá-las ou transformá-las —, a investigação do
próprio fato ou da verdade da coisa, bem como o conhecimento das causas e dos
consensos, refere-se tão somente àqueles axiomas primários e universais,[26] relativos
às naturezas simples (como os relacionados à natureza da rotação espontânea, da
atração ou virtude magnética e de muitas outras coisas, ainda mais comuns que
os próprios corpos celestes). E que ninguém espere resolver a questão de que
se o movimento diurno é da terra ou do céu antes de haver compreendido a
natureza da rotação espontânea.
VI
O processo latente de
que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente dos homens, com as
preocupações a que ora se entregam. Não o entendemos, de fato, como medidas,
ou signos ou escalas dos processos visíveis dos corpos, mas como um processo
continuado, que na maior parte escapa aos sentidos.
Por exemplo, em toda geração
ou transformação de corpos, e necessário investigar o que se perde e
volatiliza; o que permanece ou se acrescenta; o que se dilata e o que se
contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e o que se divide; o
que impele e o que retarda; o que domina e o que sucumbe; e muitas outras
coisas.
E essa investigação não se
deve limitar à geração e às transformações dos corpos, mas deve estender-se,
igualmente, ao que antecede e ao que sucede; ao que é mais veloz e ao que é
mais lento; ao que produz e ao que regula o movimento; e assim por diante.
Todas essas coisas são desconhecidas e deixadas intactas pelas ciências, de
textura grosseira e inábil,[27] como as
que se professam. De vez que toda ação natural se cumpre em mínimos graus,[28] ou pelo
menos em proporções que não chegam a ferir os sentidos, ninguém poderá governar
ou transformar a natureza antes de havê-lo devidamente notado e compreendido.
VII
A investigação e a descoberta
do esquematismo latente [29] é
igualmente coisa nova, à semelhança da descoberta do processo latente e da
forma. Ainda nos encontramos nos átrios da natureza e não estamos preparados
para adentrar-lhe os íntimos recessos. E nenhum corpo pode ser dotado de uma
nova natureza, ou ser transformado, com acerto e sucesso, em outro corpo, sem
um completo conhecimento do corpo que se quer alterar ou transformar. Sem o
que, acabarão sendo usados procedimentos vãos, ou pelo menos difíceis e
penosos e impróprios para a natureza do corpo em que se opera. Daí ser necessária
a nova via, adequadamente provida.
Na anatomia dos corpos
orgânicos (como os do homem e dos animais) foram adotados procedimentos
bastante acertados e fecundos; trata-se de tarefa delicada e que efetua um
ótimo escrutínio da natureza. Mas esse gênero de anatomia dependendo do visível
e dos sentidos, em geral, só vige para os corpos orgânicos. E isso é, aliás,
algo óbvio e pronto, em comparação com a verdadeira anatomia do esquematismo
latente dos corpos tidos por similares, especialmente das coisas específicas e
de suas partes, como o ferro e a pedra, nas partes similares da planta e do
animal, como a raiz, a folha, a flor, a carne, o sangue, o osso, etc. E é de se
notar que mesmo nesse gênero não se interrompeu a indústria humana. Assim o
indica a separação dos corpos similares pela destilação, bem como outros modos
de separação, que procuram fazer aparecer a dessemelhança interna, congregando
as partes homogêneas, e isso que é usual atende também ao que buscamos;
conquanto seja algo falaz, uma vez que muitas naturezas são imputadas e
atribuídas à separação, como se antes existissem no composto, na verdade foram
estabelecidas e superinduzidas recentemente [30] pelo
fogo, e pelo calor e por outros métodos de separação. Mas, ademais, esta é uma
pequena parte do trabalho de descoberta do verdadeiro esquematismo do
composto, uma vez que o esquematismo é algo tão sutil e preciso que a ação do
fogo mais confunde que elucida.
Em vista disso, a separação e
solução dos corpos não devem ser feitas pelo fogo, mas pela razão e pela
verdadeira indução, com auxílio de experimentos; e por meio da comparação com
outros corpos e pela redução a naturezas simples e a suas formas que se juntam
e combinam no composto.[31] Enfim,
deve-se deixar Vulcano por Minerva, se se almeja trazer à luz as verdadeiras
contexturas dos corpos e os seus esquematismos, de que dependem todas as
propriedades ocultas e, como se costumam chamar, propriedades e virtudes
específicas das coisas e donde, também, se retiram as normas capazes de
conduzir a qualquer alteração ou transformação.
Por exemplo, é de se
investigar o que em todo corpo corresponde ao espírito [32] e o que
corresponde à essência tangível; e se esse mesmo espírito é copioso e túrgido
ou jejuno e parco; se é tênue ou espesso; se mais próximo do ar ou do fogo; se
é ativo ou apático; se é delgado ou robusto; se em progresso ou em regresso; se
é partido ou continuo; se concorde com as coisas exteriores e com o ambiente ou
em desacordo, etc. O mesmo deve ser feito em relação à essência tangível (que
não é menos passível de diferenciações que o espírito), e seus pêlos, fibras e
sua múltipla contextura, bem como a colocação do espírito na substância do
corpo e seus poros, condutos, veias e células, e os rudimentos ou tentativas
de corpo orgânico. Tudo isso faz parte da mesma investigação. Mas mesmo aqui,
como em toda investigação do esquematismo latente, a luz verdadeira e
clara, que desfaz toda obscuridade e sutileza, só pode provir dos axiomas
primários.
VIII
E nem por isso se deve
recorrer aos átomos que pressupõem o vazio[33] e matéria
estável [34] (ambos
falsos), mas às partículas verdadeiras,[35] tal como
se encontram. Tal sutileza, tampouco, é de causar espanto, como se fosse
inexplicável. Ao contrário, quanto mais a investigação se dirige às naturezas
simples tanto mais se aplainam e se tornam perspicazes as coisas, passando o
objeto do multíplice ao simples, do incomensurável ao comensurável, do
insensível ao calculável, do infinito e vago ao definido e certo, como ocorre
com as letras do alfabeto e com as notas da música. Todavia, a investigação
natural se orienta da melhor forma quando a física é rematada com auxílio da
matemática.[36] E então,
que ninguém se espante com as multiplicações e com os fracionamentos, pois,
quando se trata com números, tanto faz colocar ou pensar em mil ou em um, ou na
milésima parte ou no inteiro.
IX
Das duas espécies de axiomas [37] antes
estabelecidas [38]
origina-se a verdadeira divisão da filosofia e das ciências, devendo-se, bem
entendido, ajustar vocábulos comumente aceitos (os mais apropriados para
indicar o que pretendemos) ao sentido que lhes emprestamos.
Assim, a investigação das
formas que são (pelo seu princípio e lei)[39] eternas e
imóveis constitui a Metafísica.[40] A
investigação da causa eficiente, da matéria, do processo
latente e do esquematismo latente (que dizem respeito ao curso comum
e ordinário da natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a Física.
E a elas subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à
Metafísica, a Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias que
abrem e do maior domínio sobre a natureza que propiciam.
X
Uma vez estabelecido o escopo
da ciência, passamos aos preceitos e na ordem menos sinuosa e obscura possível.
E as indicações acerca da interpretação da natureza compreendem duas partes
gerais: a primeira, que consiste em estabelecer e fazer surgir os axiomas da
experiência; a segunda, em deduzir e derivar experimentos novos dos axiomas.[41] A
primeira parte divide-se em três administrações,[42] a saber,
administração dos sentidos, administração da memória e administração da mente
ou da razão.[43]
Em primeiro lugar, com efeito,
deve-se preparar uma História Natural e Experimental que seja
suficiente e correta (exata), pois é o fundamento de tudo o mais. E não se deve
inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo.
Mas na verdade, a história
natural e experimental é tão vária e ampla que confunde e dispersa o intelecto,
se não for estatuída e organizada segundo uma ordem adequada. Por isso devem
ser preparadas as tábuas e coordenações de instâncias,[44] dispostas
de tal modo que o intelecto com elas possa operar.
Mas, mesmo assim procedendo, o
intelecto abandonado a si mesmo e ao seu movimento espontâneo é incompetente e
inábil para a construção dos axiomas, se não for orientado e amparado. Daí, em
terceiro lugar, deve ser adotada a verdadeira e legítima indução, que é a
própria chave da interpretação. Contudo, devemos começar pelo fim e depois
retroceder em direção ao resto.[45]
XI
A investigação das formas
assim procede: sobre uma natureza dada deve-se em primeiro lugar fazer uma citação
perante o intelecto [46] de todas
as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se
encontrem em matérias dessemelhantes.[47] E essa
coleção deve ser feita historicamente,[48] sem
especulações prematuras ou qualquer requinte demasiado. Como exemplo,
imagine-se uma investigação sobre a forma do calor:[49]
1. Os raios do sol, sobretudo
no verão e ao meio-dia.
2. Os raios do sol refletidos
e condensados, como entre montes ou por muros e sobretudo sobre espelhos.
3. Meteoros ígneos.
4. Raios flamejantes.
5. Erupções de chamas das
crateras dos montes, etc.
6. Chamas de todas as
espécies.
7. Sólidos em combustão.
8. Banhos quentes naturais.
9. Líquidos ferventes ou aquecidos.
10. Vapores e fumaças quentes,
e o próprio ar que adquire um calor fortíssimo e violento, quando fechado, como
nas fornalhas.
11. Certos períodos de seca
causados pela própria constituição do ar, fora de estação.
12. O ar fechado e encerrado
em certas cavernas, sobretudo no inverno.
13. Todos os corpos cobertos
por pêlos, como a lã, os pêlos dos animais, a plumagem, têm sempre alguma
tepidez.
14. Todos os corpos sólidos,
líquidos, densos ou rarefeitos (como o próprio ar) aproximados por algum tempo
do fogo.
15. As faíscas produzidas por
fortes impactos da pedra ou do aço.
16. Todo corpo que tenha um
forte atrito, como a pedra, a madeira, o pano, etc; como os lemes ou os eixos
das rodas que às vezes provocam chamas, ou como costumam fazer fogo os índios
ocidentais, por atrito.
17. As ervas verdes e úmidas,
juntadas e amassadas, como as rosas, comprimidas nos cestos; como o feno que,
guardado úmido, às vezes produz fogo.
18. O ferro pode começar a
dissolver com água forte (ácido) em recipiente de vidro sem uso do fogo; e
mesmo o estanho sob as mesmas condições, mas menos intensamente.
19. A cal viva, aspergida com
água.
20. Os animais, especialmente
nas partes internas, ainda que o calor dos insetos, pela sua pequenez, não seja
percebido pelo tato.
21. O esterco do cavalo e
semelhantes excrementos recentes de animais.
22. O óleo forte do enxofre e
do vitríolo produzem o efeito do calor, queimando linho.
23. O óleo de orégão, e outros
semelhantes, produz os efeitos do calor, queimando a parte óssea dos dentes.
24. O espírito do vinho forte
e bem retificado produz os efeitos do calor, e isso a tal ponto que, se lhe
jogar uma clara de ovo, esta endurece e se torna branca, quase como que ocorre
com o ovo cozido, e também o fato, que fica ressecado e com crosta, como quando
é tostado.
25. Os aromas e as ervas
quentes como o estragão, o mastruz velho, etc., ainda que na mão não pareçam
quentes, nem inteiros ou em pó, mas quando mastigados são quentes e parecem
queimar à língua e ao paladar.
26. O vinagre forte e todos os
ácidos, aplicados a partes sem pele, como o olho, a língua, ou sobre uma parte
ferida, produzem uma dor não muito diferente da produzida pelo calor.
28. Outras instâncias.
A esta chamamos de Tábua de
essência e de presença.
XII
Em segundo lugar, deve-se
fazer uma citação perante o intelecto, das instâncias privadas da natureza
dada, uma vez que a forma, como já foi dito, deve estar ausente quando está
ausente a natureza, bem como estar presente quando a natureza está presente.[52]
Contudo, se se fosse examinar
todas as instâncias, a investigação iria ao infinito.
Por isso, é necessário que se
limite o recolhimento das instâncias negativas em correspondência com as
positivas e considerem-se as privações apenas naqueles objetos muito
semelhantes a aqueles em que elas estão presentes e são manifestas.[53] E a esta
resolvemos chamar de Tábua de desvio (ou declinação) ou de
ausência em fenômenos próximos.[54]
Primeira instância negativa
oposta à primeira instância afirmativa.
1. Os raios da lua, das
estrelas e dos cometas não trazem calor ao tato, mas, ao contrário, é no plenilúnio
que se observam os frios mais rigorosos. Todavia, acredita-se que quando há
conjunção entre o sol e as estrelas fixas maiores, ou quando delas está
próximo, há aumento do calor solar; é o que ocorre quando o sol está no signo
de Leão e nos dias de canícula.[56]
2. (Oposta à segunda
afirmativa.) Os raios solares na chamada região intermediária não produzem
calor; para o que o vulgo dá uma razão não de todo má: esta região não está nem
próxima do sol, donde vêm os raios, nem da terra, que os reflete. É o que se
observa nos picos das montanhas (a não ser quando muito altos), onde se
encontram neves eternas. Por outro lado, observou-se que no pico de Tenerife,
bem como nas cumieiras dos Andes do Peru, os cumes não apresentam neve, que se
fixa nas partes mais baixas. Fala-se ainda que no vértice desses montes o ar
não é frio, mas rarefeito e penetrante, e isso a tal ponto que, nos Andes,
magoa e ofende os olhos, pela sua intensidade, e irrita a boca do estômago e
provoca vômitos. Foi notado pelos antigos que no vértice do Olimpo era tal a
tenuidade do ar que obrigava aos que o escalavam a levarem esponjas embebidas
em água e vinagre, para aplicação na boca e no nariz, por não ser o ar
suficiente à respiração.[57] Relatam,
ainda, aqueles que era tal a serenidade e tranqüilidade do ar e ausência de
chuvas, neves e ventos,[58] que as
letras escritas com o dedo nas cinzas, sobre o altar de Júpiter, pelos fautores
de sacrifícios, duravam todo um ano, sem se alterarem. E ainda hoje os que
sobem aos cimos do pico de Tenerife caminham à noite e não à luz do dia; e ao
surgir do sol os guias os apressam a descer rapidamente, ante o perigo (segundo
parece) de que a rarefação sufoque e dissolva o espírito.
3. (Oposta à segunda
afirmativa.) A reflexão dos raios do sol nas regiões próximas dos círculos
polares é muito fraca e ineficaz em calor, e os belgas que invernaram na Nova
Zembla [59] esperando
a liberação e o desencalhe de sua nave dos gelos (que a aprisionavam), no
início do mês de julho, viram frustradas as suas esperanças e tiveram que
recorrer a botes. Assim os raios do sol diretos parecem de pouco poder, mesmo
sobre terreno plano; nem também os seus reflexos, a não ser quando são
multiplicados e reunidos, o que ocorre quando o sol bate perpendicularmente,
pois, em tal caso, os ângulos formados pelos raios incidentes são mais agudos,
e assim as linhas dos raios ficam mais próximas entre si. E de outro lado, nas
posições muito oblíquas do sol, os ângulos são muito obtusos e por isso as
linhas dos raios estão mais distantes entre si. Mas deve ser notado que muitas
podem ser as operações dos raios do sol, com respeito ao problema da natureza
do calor, que não estão ao alcance do nosso tato, e, mesmo assim, afetam outros
corpos.
4. Faça-se o seguinte
experimento:[60] Tome-se
uma lente,[61] feita de
forma contrária aos espelhos e seja ela colocada entre as mãos e os raios do
sol. Observe-se que nessa posição o calor do sol é diminuído, da mesma forma
que o espelho o aumenta e intensifica. Pois é manifesto que os raios ópticos,
em um espelho que apresenta diferença de espessura entre o centro e as partes
laterais, oferecem imagens [62] mais
difusas ou concentradas. O mesmo deve ocorrer em relação ao calor.
5. Faça-se cuidadosamente o
experimento de se os raios da lua, passando por espelhos ustórios bastante
fortes e bem constituídos, podem produzir algum grande calor, mesmo que
diminuto. Mas como essa grande tepidez é de tal forma sutil e fraca a ponto de
não ser percebida pelo tato, seria necessário recorrer àqueles vidros que
indicam o estado frio ou quente do ar,[63] de modo
que os raios da lua, caindo em um espelho ustório, fossem refletidos sobre a
superfície do vidro, para se verificar a ocorrência do abaixamento do nível da
água, devido ao calor.
6. (À segunda instância.)
Experimente-se colocar um vidro ustório sobre um corpo quente que não seja nem
radiante, nem luminoso, como o ferro ou a pedra aquecidos, mas não em ignição,
ou água fervente e coisas semelhantes, e observe-se se ocorre um aumento ou
intensificação do calor, como nos raios do sol.[64]
7. (À segunda instância.)
Experimente-se ainda colocar um espelho ustório sobre a chama comum.
8. (Em oposição à terceira
instância.)[65] Não se
pode deixar de observar o constante e manifesto efeito dos cometas (se se
reconhece como estando compreendidos entre os meteoros)[66] no
aumento do calor na época de sua oposição, embora tenha sido notado que em
seguida surge um período de seca. Contudo, as traves [67] ou
colunas luminosas e as aberturas do céu [68] e
fenômenos semelhantes parecem mais freqüentes no inverno que no verão e
especialmente em épocas de intensos frios, acompanhados de seca. Mas os raios,
os relâmpagos e os trovões dificilmente ocorrem no inverno, mas na época dos
grandes calores. As chamadas estrelas cadentes supõe-se vulgarmente
constituídas de uma matéria viscosa, resplandecente e acesa, em lugar de
qualquer outra matéria ígnea mais consistente. Mas isso deve ser verificado
posteriormente.
9. (Oposição à quarta
instância.) Há certas coruscações que produzem luz, mas não queimam. E ocorrem
sempre sem (troar) trovão.
10. (Em oposição à quinta
instância.) As ejeções e erupções de chamas ocorrem tanto nas regiões frias
como nas quentes, como na Islândia e Groenlândia. Por outro lado, as árvores
das regiões frias são mais inflamáveis, mais resinosas e de mais pez que as das
regiões cálidas, como é o caso do abeto, pinho e outras. Mas não se investigou
satisfatoriamente em que lugares e em que natureza de solo costumam ocorrer
essas erupções, para que possamos opor a negativa à afirmativa.
11. (Em oposição à sexta
instância.) Toda chama é sempre mais ou menos quente, não havendo assim
instância negativa a se lhe opor; mas fala-se que o chamado fogo-fátuo que às
vezes é observado nas paredes não tem muito calor, assim também a chama do
espírito do vinho que é clemente e suave. Mas ainda mais suave parece ser a
chama que, conforme certas histórias fidedignas e sérias, apareceu em torno da
cabeça de meninos e meninas e que, sem queimar, apenas circulava à sua volta.[69] De
qualquer forma, é absolutamente certo que, em volta do cavalo que sua, durante
viagens noturnas e em épocas de seca, aparece certa fulguração, sem calor
manifesto. Há pouco tempo ficou famoso, e quase tomado como milagre, o fato do
peito de uma menina, depois de algum movimento e fricção ter emitido faíscas.
Isso talvez tenha acontecido devido ao alúmen ou aos sais com que se tinha
tingido a veste e que acabaram colados e incrustados, formando assim uma
espécie de copa, que se abriu. Também é igualmente certo que todo açúcar,
tanto o refinado quanto o natural, quando se encontra endurecido e é quebrado
ou raspado no escuro, produz fulgor.
Da mesma forma, a água marinha
e salgada, à noite, fortemente esbatida pelos remos, pode fulgurar. E também,
durante as tempestades, a espuma do mar, fortemente agitada, produz fulgor
(fachos) e a que os espanhóis costumam chamar de pulmão marinho. Nem foi
adequadamente investigada aquela chama que os antigos navegantes chamavam por
Castor e Pollux e os modernos designam por fogo de Santelmo.[70]
12. (Em oposição à sétima
instância.) Todo corpo (ígneo) incandescente que tenha o rubor do fogo, mesmo
sem chama, é em qualquer caso quente, e para tal instância afirmativa não há
correspondente negativa. Mas o que parece mais se aproximar desse fato é o da
madeira podre, que resplandece à noite e não parece conter calor. As escamas
dos peixes em putrefação também resplandecem à noite e não apresentam calor ao
tato. Da mesma forma, o corpo do vaga-lume ou mosca chamada Lucíola não oferece
calor ao tato.
13. (Em oposição à oitava
instância.) Não foi adequadamente investigado o lugar de origem e a natureza do
solo donde emanam as águas termais e por isso não se lhes contrapõe instância
negativa.
14. (Em oposição à nona
instância.) Aos líquidos ferventes contrapõe-se a instância negativa da
peculiar negativa dos líquidos em geral. Pois não se encontra na natureza que
seja em si mesmo quente e assim permaneça. Ao contrário, o calor ocorre por
tempo determinado, como natureza que lhe é acrescentada. Assim é que os
líquidos que no seu poder e nos seus efeitos são muito quentes, como o espírito
do vinho, os óleos químicos aromáticos, e ainda os óleos do vitríolo e do
enxofre e outros mais, que queimam após certo tempo, são frios ao primeiro
contato. E a água termal, colocada em um recipiente e longe de sua origem,
perde a efervescência, como a água levada ao fogo. De outro lado, é verdade
que os corpos oleosos parecem ao tato menos frios que os aquosos; da mesma
forma o óleo menos que a água, a seda menos que o linho. Mas isso de fato
pertence à Tábua de Graus do Frio.
15. (Em oposição à décima
instância.) De idêntica maneira, ao vapor quente opõe-se a instância negativa
derivada da própria natureza do vapor, tal como é comumente encontrado. As
exalações dos corpos oleaginosos, mesmo sendo facilmente inflamáveis, não são
quentes, quando não são exalações recentes de um corpo quente.
16. (Em oposição à décima
primeira instância.) De idêntica maneira, ao ar quente se opõe a instância
negativa derivada da própria natureza do ar. Não encontramos entre nós ar
quente, a não ser quando encerrado, submetido à fricção ou aquecido pelo sol,
pelo fogo ou por qualquer outro corpo quente.
17. (Em oposição à décima
primeira instância.) A instância negativa das estações frias é oposta mais
devido aos outros períodos do ano, como acontece quando sopram Euro ou Bóreas.[71] O contrário
acontece quando sopra o Austro ou o Zéfiro.[72] Mas uma
tendência para a chuva, especialmente no inverno, vem acompanhada de
temperaturas tépidas, e o gelo, de temperaturas frias.
18. (Em oposição à décima
segunda instância.) Contrapõe-se a instância negativa do ar confinado nas
cavernas no verão. E a respeito desse ar confinado é necessária uma cuidadosa
investigação. Em primeiro lugar, há dúvidas, não sem motivo, a respeito da
natureza do ar relacionado ao frio e ao calor. Pois o ar manifestamente recebe
o calor dos corpos celestes; o frio, ao contrário, talvez por exalação da
terra, e na chamada região intermediária dos vapores das neves. Dessa forma,
não se pode estabelecer um juízo sobre a natureza do ar através do ar a céu
descoberto e exposto, mas é possível um juízo mais seguro a respeito do ar
confinado. Mas é necessário que o ar seja colocado em um recipiente de material
de tal ordem que não venha a impregná-lo de calor ou frio de sua própria
natureza e também que não receba influência do ar exterior. Faça-se, pois, o
experimento com um recipiente de argila, revestido várias vezes com couro para
protegê-lo do ar exterior e mantenha-se bem fechado por três ou quatro dias.
Uma vez aberto o recipiente, verificar-se-á a temperatura com a mão e com o
vidro graduado.[73]
19. (Em oposição à décima
terceira instância.) Subsiste igualmente a dúvida a respeito da tepidez da lã
das peles, das plumas e coisas semelhantes; se é resultante de algum débil
calor que lhe é imanente, devido à sua origem animal ou da matéria graxa e
oleaginosa que por sua própria natureza é afim ao calor ou simplesmente do ar
fechado e separado, já mencionado no parágrafo anterior, O ar separado do ar
externo parece guardar algum calor. Para tanto, faça-se experimentar com
material fibroso de linho, em vez da lã ou pluma ou seda que são de origem
animal. Deve ainda ser observado que todos os pós (manifestamente misturados ao
ar) são menos frios que os corpos íntegros de que provêm. Pelo mesmo motivo,
acreditamos que toda espuma (como tudo que contém ar) seja menos fria que o
liquido que lhe deu origem.
20. (Em oposição à décima
quarta instância.) Não há instância negativa a se lhe opor. Com efeito, não se
encontra entre nós nenhuma coisa tangível ou gasosa que aproximada do fogo não
adquira calor. Contudo, mesmo aí, é necessário distinguir-se entre coisas que
adquirem calor mais rapidamente, como o ar, o azeite e a água, e outras mais
lentamente, como a pedra e os metais. Mas esses fatos pertencem à Tábua de
Grau.
21. (Em oposição à décima
quinta instância.) A esta instância não se opõe qualquer outra negativa,
exceção feita da observação de que não se conseguem cintilações (ou fagulhas)
do sílex ou do aço ou de outra substância dura, a não ser com a fragmentação de
pequenas partículas dessa substância, seja pedra ou metal. Também o ar não pode
produzir cintilações pelo simples atrito, como julga o vulgo. Dessa forma,
essas cintilações, devido ao peso do corpo em ignição, tendem mais para baixo
que para cima, e, depois de extintas, resultam numa espécie de grãos de
fuligem.
22. (Em oposição à décima sexta
instância.) Pensamos não haver negativa a ser oposta a essa instância. Não há
entre nós corpo tangível (ou palpável) que manifestamente não se aqueça
pelo atrito. Tanto que os antigos imaginaram que os corpos celestes não tinham
outro caminho ou possibilidade de aquecimento que o atrito do ar provocado pela
sua rápida rotação.[74] Neste
assunto deve ainda ser investigado se os corpos arruinados por máquinas, como
as balas dos canhões, pela própria percussão contraem algum grau de calor, que
depois de caídas ainda conservam, O ar agitado antes se resfria que aquece,
como se observa nos ventos, com o fole e com o sopro forte da boca. Mas tais
movimentos não são suficientemente rápidos a ponto de provocarem calor e
trata-se de movimentos do todo e não partículas, daí não ser de estranhar por
não haver ocorrência de calor.
23. (Em oposição à décima
sétima instância.) A respeito desta instância, é necessária uma investigação
mais acurada. Com efeito, tudo indica que as ervas e os vegetais verdes e
úmidos encerram uma espécie de calor oculto. Mas é algo tão tênue que em
nenhuma planta isolada é perceptível ao tato, mas só depois de reunidas e
fechadas, e de tal forma que as suas exalações não se comuniquem com o ar exterior,
mas se misturem entre si, é que surge um calor perceptível e às vezes flamas,
se a matéria a tanto se presta.
24. (Em oposição à décima
oitava instância.) Também a respeito desta instância é necessária uma investigação
mais acurada. De fato, parece que a cal viva, quando aspergida de água, produz
calor, ou pela concentração do calor que antes estava disperso (tal como se diz
ocorrer com as ervas abafadas) ou pela irritação ou exasperação do espírito do
fogo, em contato com a água, que provoca uma espécie de conflito e
antiperístase.[75] Para se
saber qual das duas é a verdadeira causa, basta colocar-se óleo no lugar da
água. O óleo vale tanto quanto a água para concentrar o espírito encerrado, mas
não para irritá-lo. E o experimento deve ser ampliado às cinzas e aos resíduos
de diversos corpos e fazendo-se uso de vários líquidos.
25. (Em oposição à décima nona
instância.) A esta instância se opõe a negativa de alguns metais que são mais
moles e instáveis. Assim, as lâminas de ouro dissolvidas pela água-régia [76] não provocam
qualquer calor ao tato quando dessa operação, o mesmo se dando com o chumbo
quando dissolvido em água-forte [77] e, pelo
que recordamos, também com o mercúrio. Mas a prata provoca algum calor e também
o cobre, pelo que me lembro, e ainda de forma mais manifesta o estanho, e os
que vão mais longe são o ferro e o aço, que não só produzem um forte calor ao
se dissolverem como também uma violenta ebulição. Dessa forma, tudo parece
indicar que o calor se produz pelo conflito, graças ao qual a água forte
penetra, funde e desprende as suas partículas, enquanto o corpo, por seu
turno, resiste. Mas, quando os corpos cedem com facilidade, a custo se produz o
calor.
26. (Em oposição à vigésima
instância.) Não se podem opor instâncias negativas ao calor dos animais e nem
tampouco ao dos insetos em vista das reduzidas dimensões de seus corpos, como
antes já foi dito.[78] Com
efeito, os peixes, comparados com animais terrestres, apresentam algum grau de
calor, em lugar de sua absoluta ausência. Nos vegetais e nas plantas não se
observa qualquer grau de calor perceptível ao tato, o mesmo acontecendo em
relação às suas resinas e à sua medula recentemente aberta. Todavia, nos
animais observa-se uma grande variedade de calor, tanto em suas partes (de
fato, não é o mesmo o calor do coração, o do cérebro e o das partes externas do
corpo) quanto em seus estados acidentais, como nos exercícios veementes ou nas
febres.
27. (Em oposição à vigésima
primeira instância.) A esta instância é muito difícil opor-se uma negativa.
Pois mesmo os excrementos animais não recentes têm manifestamente um calor
potencial, como pode ser verificado pelo untamento do solo.
28. (Em oposição à vigésima
segunda e vigésima terceira instâncias.) Os líquidos (chamem-se águas ou
óleos) que têm grande e intensa acidez operam com o calor na fragmentação dos
corpos e queimam-nos depois de algum tempo. Mas em princípio não são quentes
quando em contato com a mão. Agem por analogia [79] e segundo
a porosidade dos corpos com os quais se unem. De fato, a água-régia dissolve o
ouro, mas não a prata; por outro lado, a água-forte dissolve a prata, mas não o
ouro. E nem um nem outro dissolve o vidro. O mesmo acontecendo com os demais.
29. (Em oposição à vigésima
quarta instância.) Faça-se experimento com o espírito do vinho sobre madeira,
ou sobre manteiga, cera ou peixe, para verificar se o seu calor os liquefaz e
até que ponto. De fato, a instância vinte e nove mostra que este espírito tem
um poder análogo ao do calor, em relação às incrustações. Por isso deve ser
feito o mesmo experimento para a liquefação. Proceda-se também com o vidro
graduado,[80] côncavo
na extremidade superior externa. Coloque-se nessa cavidade exterior o espírito
do vinho bem retificado e tampe-se para que melhor retenha o calor e observe-se
se o seu calor faz descer o nível da água.[81]
30. (Em oposição à vigésima
quinta instância.) As ervas aromáticas e as ervas ácidas são cálidas ao paladar
e isso é mais sentido nas partes internas do organismo. Por isso é necessário
que se verifique em quais outras matérias igualmente provocam calor. Contam os
navegantes que quando se abrem subitamente montes ou maços de ervas aromáticas,
guardados durante muito tempo, os primeiros que as movem ou pegam correm
perigo de febres ou de inflamações.[82]
Igualmente poder-se-ia fazer experimento com o pó dessas ervas para verificar
se seca o toucinho e a carne, como a fumaça do fogo.
31. (Em oposição à vigésima
sexta instância.) A acidez ou força penetrante também pode ser encontrada seja
em corpos frios, como o vinagre e o óleo de vitríolo, seja em corpos quentes
como o óleo de orégão e outros semelhantes. Tanto uns como outros provocam dor
nos animais e nos corpos inanimados, fundem e consomem suas partes. A isso não
se opõe instância negativa, pois nos corpos animados não ocorre dor sem alguma
dose de calor.
32. (Em oposição à vigésima
sétima instância.) O frio e o calor têm muitas ações em comum, ainda que em
formas e proporções diferentes. Com efeito, mesmo a neve parece queimar,
depois de algum tempo, as mãos das crianças e o frio preserva as carnes da
putrefação [83] tanto
quanto do fogo. E, tanto quanto o frio, o calor contrai os corpos. Mas na
verdade é mais oportuno tratar deste assunto e de outros semelhantes quando da
investigação do frio.[84]
XIII
Em terceiro lugar, é
necessário fazer-se citações perante o intelecto [85] das
instâncias cuja natureza, quando investigada, está presente em mais ou em
menos, seja depois de ter feito comparação do aumento e da diminuição em um
mesmo objeto, seja depois de ter feito comparação em objetos diversos. Pois
sendo a forma de uma coisa a coisa em si mesma [86] e posto
que a coisa difere da forma tanto quanto difere a aparência da existência, o
exterior do interior e o relativo ao homem do relativo ao universo,[87] segue-se
necessariamente que se não pode tomar uma natureza pela verdadeira forma, a não
ser que sempre decresça quando decresce a referida natureza e, igualmente,
sempre aumente quando aumenta a natureza. A esta tábua denominamos Tábua de
Graus ou de Comparação.
Tábua de Graus ou de Comparação do
Calor
Em primeiro lugar, trataremos
dos corpos que não apresentam qualquer calor ao tato, mas que parecem possuir
um calor potencial ou uma disposição ou preparação para o calor. A seguir,
consideraremos os corpos que são quentes em ato, ou seja, ao tato, sua intensidade
e seus graus.
1. Não há entre os palpáveis e
sólidos nenhum corpo que seja naturalmente quente. Não há uma única pedra, um
único metal, nem enxofre, nem fóssil, nem madeira, nem água, nem cadáver dos
animais, que se apresentem com calor. As águas quentes dos balneários parecem
aquecer-se por acidente, ou por alguma chama ou fogo subterrâneo, como os que
vomitam o Etna e muitas outras montanhas, ou por conflito de corpos, como
ocorre com o calor produzido na dissolução do ferro e do estanho. Dessa forma,
não há qualquer espécie de calor nos corpos inanimados perceptível ao tato do
homem, e esses corpos se diferenciam entre si pelos graus (de frio) de
frigidez. Com efeito, não são iguais o frio da madeira e o do metal. Mas esse
assunto pertence à Tábua de Graus do Frio.
2. Todavia, encontram-se
muitos corpos inanimados com calor potencial e com predisposição à chama, como
é o caso do enxofre, da nafta e do petróleo.[88]
3. O que antes estava quente,
como o esterco eqüino, ou a cal, ou talvez as cinzas, ou a fuligem provocados
pelo fogo, conserva latentes resíduos do calor anterior. Por isso se fazem
certas destilações e separações de corpos, enterrando-os em esterco eqüino, e o
calor da cal pode ser provocado com a aspersão de água.[89]
4. Entre os vegetais não há
qualquer planta ou parte (como resinas ou medula) que se mostre quente ao tato
humano. Mas, como já foi antes dito,[90] as ervas
verdes quando abafadas se aquecem, e parecem quentes ao tato interno, isto é,
ao paladar e ao estômago e mesmo a partes externas, depois de algum tempo, como
ocorre com emplastros e ungüentos vegetais que podem parecer quentes ou frios.
5. Não há qualquer calor nas
partes separadas dos animais mortos perceptível pelo tato humano. Nem mesmo o
esterco eqüino, se não for coberto e abafado, conserva o calor. Contudo, todo
esterco parece possuir potencialmente calor, como se observa nas marcas que
ficam pelos campos. E, igualmente, os cadáveres dos animais parecem possuir
também um calor latente e potencial, e isso a tal ponto que nos cemitérios em
que todos os dias se fazem sepultamentos a terra conserva um calor oculto, que
consome os cadáveres recentes muito mais rapidamente que na terra comum.
Segundo se diz, os orientais usam um certo tipo de tecido tênue e suave, feito
de plumas de aves, que por qualidades próprias dissolve e derrete a manteiga.
quando por ele levemente envolvida.
6. Tudo o que aduba os campos,
como todos os tipos de esterco, a greda, a areia do mar, o sal e coisas
semelhantes, possui alguma disposição ao calor.
7. Todo processo de putrefação
possui traços de um tênue calor. ainda que não alcance ser percebido pelo tato.
Nem mesmo aquelas coisas, que na putrefação se transformam em animálculos,[91] como a
carne e o queijo, chegam a ser perceptíveis ao tato. Nem tampouco a madeira
podre, que brilha à noite, parece quente ao tato. Mas, às vezes, o calor das
coisas em putrefação se faz sentir por meio de odores fortes e repugnantes.
8. Assim, o primeiro grau de
calor, entre as coisas perceptíveis ao tato humano, parece ser o calor animal,
que por sua vez se desdobra em muitos graus. No seu grau mais baixo, como no
caso dos insetos, é muito mal percebido pelo tato, O seu grau mais alto é
atingido pelo calor solar, nas zonas e nos climas tropicais, mas não chega a
ser tão forte a ponto de não ser tolerado pela mão. Contudo, conta-se que
Constâncio [92] e alguns
outros tinham certo tipo de temperamento e hábitos físicos de tal modo secos
que, atacados por febre agudíssima, ficaram quentes a ponto de parecerem
queimar as mãos de quem deles se aproximasse.
9. Os animais aumentam o
próprio calor pelo movimento e pelos exercícios físicos, pelo vinho, pelos
banquetes, pelo sexo, pelas febres ardentes e pela dor.
10. Os animais, durante os
acessos de febres intermitentes, inicialmente são acometidos de frio e
tremores, mas depois adquirem um calor muito intenso. E o mesmo acontece no
início das febres ardentes e nas febres pestilentas.
11. Façam-se ulteriores
investigações sobre o calor em animais diversos, como peixes, quadrúpedes,
serpentes, aves e também em suas diversas espécies, como o leão, o abutre, o
homem. Pois, conforme a opinião vulgar, a parte interna dos peixes é pouco
quente, as aves são mais quentes, especialmente as pombas, os falcões e as
avestruzes.
12. Façam-se ainda
investigações ulteriores acerca dos diversos graus de calor nas partes e nos
membros do mesmo animal. Com efeito, o leite, o sangue, o esperma, os ovos,
são moderadamente quentes e menos quentes que as partes externas de um animal
em agitação e movimento. Ainda não foi feita uma investigação do mesmo teor
para se saber o grau de calor do cérebro e do estômago, do coração, etc.
13. Todos os animais, no
inverno e nas épocas frias, são frios nas partes externas, mas nas partes
internas crê-se encerrarem mais calor.
14. O calor dos corpos
celestes, mesmo na região mais quente e durante a estação e o dia mais quente,
não atinge nunca um grau tal que chegue a incendiar e queimar a madeira bem
seca ou a palha ou um pedaço de trapo, a não ser que seja auxiliado por
espelhos ustórios. Mas pode sempre provocar vapores das coisas úmidas.
15. Segundo a tradição dos
astrônomos, algumas estrelas são mais quentes que outras. Dentre os planetas,
depois do sol, Marte é o mais quente, depois vem Júpiter e depois Vênus.
Estabelecem-se como os mais frios primeiro a Lua e, mais que todos, Saturno.
Entre as estrelas fixas estabelece-se como a mais quente Sírio, vindo depois
Coração de Leão, e a seguir Canícula,[93] etc.
16. O sol mais aquece quanto
mais se inclina na perpendicular ou no zênite; o que também é de se crer
verdadeiro para os demais planetas, em relação ao seu próprio calor. Júpiter,
por exemplo, aquece mais quando se encontra sob Câncer ou Leão que quando sob
Capricórnio ou Aquário.
17. Tudo leva a crer que o sol
e os outros planetas aquecem mais quando atingem o seu perigeu, pela maior
proximidade da Terra, que quando do seu apogeu.[94] E se
acontecer que, em alguma região, o sol esteja ao mesmo tempo no perigeu e mais
próximo à perpendicular, necessariamente será aí mais quente que na região em
que o sol também esteja em seu perigeu, mas em posição oblíqua. Por isso deve
ser notada a situação relativa de altitude dos planetas, nas diversas regiões,
em relação à sua posição vertical ou obliqua.
18. Supõe-se ainda que o sol,
como os outros planetas, aqueça mais quando se aproxima das estrelas fixas
maiores. Assim, quando o sol se encontra em Leão, mais próximo ao Coração de
Leão, à Cauda de Leão, à Espiga da Virgem, a Sírio, à Canícula, aquece mais que
quando se encontra em Câncer, onde, contudo, está mais na posição
perpendicular. E é para se crer que as partes do céu infundem um calor tanto
maior (ainda que não perceptível ao tato) quanto mais são ornadas de estrelas e
especialmente das estrelas maiores.
19. Em suma, o calor dos
corpos celestes pode ser aumentado em vista de três fatores, ou seja, pela
posição perpendicular, pela proximidade ao perigeu e pela conjunção ou
combinação das estrelas.
20. Em verdade, há uma grande
diferença entre o calor dos animais e dos raios dos corpos celestes, tal como
chegam a nós, e o da mais tênue chama, e mais ainda o dos corpos
incandescentes, o dos líquidos e do próprio ar comum aquecido pelo fogo. De
fato, a chama do espírito do vinho, ainda que rarefeita e difusa, pode
incendiar a palha, um pano ou o papel. E tal nunca ocorre com o calor animal ou
solar, sem o emprego de espelhos ustórios.
21. Contudo, as chamas e as
coisas incandescentes têm calor e múltiplos graus, tanto em intensidade quanto
em tenuidade. Mas sobre o fato ainda não foi feita uma indagação diligente e,
por isso, só é possível tratá-los de passagem. Entre as várias espécies de chamas,
a do espírito do vinho parece ser a mais débil, a não ser que as chamas ou a
luminescência produzidas pelo suor animal sejam ainda mais débeis. A seguir,
segundo nos parece, seria a chama dos vegetais leves e porosos, como a palha, o
junco e as folhas secas, cujas chamas não estão muito longe das produzidas por
pêlos ou penas. A estas seguem-se as chamas das madeiras que não possuem
resinas ou pez. Deve ser observado, porém, que a chama proveniente de madeiras
delgadas, que comumente são juntadas em feixes, é mais fraca que a produzida
por troncos de árvores e por raízes. E isso pode ser facilmente experimentado
nos fornos que fundem ferro, onde o fogo produzido por feixes e ramos de
árvores não tem utilidade. A seguir, assim pensamos, vem a chama produzida por
óleo, sebo, cera e por outras substâncias oleosas e graxas, que não possuem
muita força. Contudo, o calor mais forte é encontrado no pez e na
resina; mais forte ainda no enxofre e na cânfora, na nafta, no petróleo, bem
como nos sais, uma vez eliminada a sua matéria crua, e em seus compostos, como
a pólvora, o fogo grego (conhecido como fogo selvagem)[95] e seus
diferentes tipos, todos portadores de um calor obstinado, que não se extingue
facilmente com água.
22. Cremos também que a chama
produzida por certos metais imperfeitos é sobremaneira forte e aguda. Mas sobre
tudo isso são necessárias investigações ulteriores.
23. A chama dos raios [96] parece
superar todas as demais em potência, a ponto de chegar a fundir o ferro
perfeito, reduzindo-o a gotas, o que os outros tipos de chamas não conseguem
fazer.
24. Há nos corpos
incandescentes diversos graus de calor, que ainda não foram diligentemente
investigados, O calor mais fraco pensamos ser o do pano queimado, usado
comumente para acender o fogo e também o proveniente das madeiras esponjosas e
das cordas secas que servem de rastilho para disparar a artilharia. A seguir
vem o carvão vegetal ou mineral, ou ainda o dos tijolos queimados e coisas
semelhantes. Cremos que, de todos os corpos incandescentes, os mais quentes são
os metais, quando acesos, caso do ferro, do cobre, etc. Também esse caso deve
ser investigado ulteriormente.
25. Entre os corpos
incandescentes, alguns há muito mais quentes que certas chamas. De fato, é
muito mais quente o ferro em brasa que a chama do espírito do vinho.
26. Entre os corpos não
incandescentes, mas aquecidos pelo fogo, como a água fervente e o ar encerrado
nos fomos, há alguns que superam em calor, e em muito, corpos incandescentes e
mesmo inflamados.
27. O movimento aumenta o
calor, como se pode ver pelos foles e pelo sopro; por isso os metais mais duros
não se fundem ou derretem com fogo morto e parado, sendo necessário excitá-lo
com o maçarico.[97]
28. Faça-se com espelhos
ustórios o experimento seguinte, conforme recordamos:[98] coloca-se
o espelho à distância, por exemplo, de um palmo, de um objeto combustível. Não
queimará ou inflamará tanto o objeto quanto se se colocar o espelho a uma
distância de, por exemplo, meio palmo e deslocá-lo gradual e lentamente até a
distância inicial de um palmo. O cone de convergência e o feixe dos raios são
os mesmos e é o próprio movimento que aumenta o efeito do calor.
29. Acredita-se que os
incêndios, quando acompanhados de fortes ventos, mais progridem contra que a
favor do vento. Isso porque as chamas se movem mais rapidamente quando o vento
as rechaça que quando as impele.
30. A chama não brilha, nem se
produz, a menos que alcance algo de côncavo em que se possa movimentar e
dançar; exceção feita das chamas detonantes da pólvora e análogas, caso em que
a compressão e o aprisionamento da chama aumentam o seu furor.
31. A bigorna se torna muito
quente ante os golpes do malho. Se a bigorna fosse feita de um metal mais mole,
acreditamos que chegaria a ficar rubra, por força dos duros e repetidos golpes
do malho. Disso se deve fazer mais experimentos.
32. Nos corpos incandescentes
que são porosos, de tal forma que haja espaço para o movimento do fogo, se o
seu movimento for coibido por forte compressão, logo o fogo se apagará. Assim,
quando um pano queimado, o pavio aceso de uma vela ou lâmpada, um pedaço de carvão
vegetal ou uma brasa, são abafados ou pisados, ou algo semelhante,
interrompe-se subitamente a ação do fogo.
33. A aproximação de um corpo
quente de outro aumenta o calor na própria razão dessa proximidade. Também é o
que ocorre com a luz, pois quanto mais próximo da luz é um objeto mais visível
ele se torna.
34. A união de calores de
origens diversas aumenta o calor, desde que se não misturem com corpos. Com
efeito, um grande fogo e um fogo menor ateados no mesmo local aumentam
igualmente o calor tanto de um quanto de outro; mas água morna misturada à água
fervente esfria-a.
35. A permanência do calor em
um corpo aumenta o calor. Pois o calor que constantemente circula e emana
mistura-se ao calor preexistente e assim multiplica o calor. Por isso, o fogo
aceso durante meia hora, em um cômodo, não o aquece da mesma forma que um que
dura uma hora inteira. Mas não se dá o mesmo com a luz, já que uma lâmpada ou
uma vela acesa não ilumina mais determinado lugar durante um dia inteiro que
logo no inicio.
36. A irritação produzida por
um ambiente frio aumenta o calor,[99] como se
observa no fogo aceso durante uma forte nevasca. Supomos que tal sucede não
apenas devido à concentração e contração do calor, que é uma espécie de união,
mas devido à exasperação, como ocorre com o ar muito comprimido ou um bastão
violentamente desviado de sua posição natural anterior, que não retornam ao
mesmo ponto em que estavam, mas muito além dele, em uma posição oposta. Faça-se
um diligente experimento com um bastão, ou com algo semelhante, colocando-o no
fogo, para verificar se não se consome mais rapidamente nas extremidades que
no meio da chama.
37. Há grande diversidade de
graus de suscetibilidade ao calor. Sobre isso note-se, em primeiro lugar, que o
calor, mesmo pequeno e fraco, sempre acaba por afetar e aquecer um pouco até os
corpos a ele mesmo receptivos. Assim é que o mesmo calor da mão que aquece um
pouco uma bola de chumbo ou de outro metal qualquer, por ela segurada por
algum tempo, facilmente se transmite e se provoca o calor, sem que haja
aparência de modificação nos corpos.
38. De todos os corpos
conhecidos, o ar é o que mais facilmente recebe e transmite o calor, o que é
bem visível pelos termômetros, [100] cuja
confecção é a seguinte: toma-se um tubo de vidro delgado e oblongo. Submerge-se
o tubo com a boca para baixo em outro recipiente de vidro, com água, de modo
que o seu orifício alcance o seu fundo, apoiando-se o seu gargalo na sua borda.
Para mantê-lo nessa posição, coloca-se um pouco de cera nas bordas internas do
recipiente, sem, contudo, obstrui-lo, evitando-se, dessa forma, que falte o ar
que é indispensável ao movimento sumamente sutil e delicado de que vamos falar.
Deve-se, porém, aquecer ao
fogo, antes de submergi-lo, a parte superior do tubo. Depois de colocado o
vidro, na forma indicada, o ar que foi aquecido vai-se pouco a pouco
contraindo, durante o tempo necessário para a completa eliminação do calor
adquirido do exterior, até alcançar as mesmas dimensões do ar circunstante no
momento em que foi submergido na água, o que provocará a subida da água, na
mesma proporção. Deve-se ainda fixar ao longo do tubo uma tira de papel
comprida e estreita e graduada, conforme se queira. Verificar-se-á então que,
quando a temperatura do dia é fria, o ar se contrai em menor espaço, e quando é
quente, ele se expande. E isso será percebido através da água que sobe, quando
o ar se contrai, ou desce, quando o ar se dilata. A sensibilidade do ar, tanto
para o frio quanto para o calor, é sutil e delicada a ponto de superar de muito
a capacidade do tato. Pois um raio de sol ou o calor da respiração ou o calor
da mão, dirigido para a extremidade do tubo, faz baixar a água de modo
manifesto. Pensamos, todavia, que o espírito dos animais possui uma
sensibilidade ainda mais sutil, em relação ao calor ou ao frio, desde que não
seja impedida ou embotada pela massa do corpo.[101]
39. Depois do ar, acreditamos
que os corpos mais sensíveis ao calor sejam os que foram há pouco modificados e
contraídos pelo frio, como a neve e o gelo, pois, com apenas uma leve tepidez
começam a dissolver e liqüefazer-se. A seguir, vem o mercúrio. Em seguida, os
corpos graxos, como o óleo, a manteiga e similares; depois a madeira, depois a
água e, por fim, as pedras e os metais, que se não aquecem com facilidade,
especialmente na parte interior. Mas estes, depois de contraído o calor,
conservam-no por muito tempo, como é o caso do tijolo, da pedra, ou do ferro
incandescentes colocados ou mergulhados na água fria, que retêm o calor durante
perto de um quarto de hora, a ponto de não poderem ser tocados.
40. Quanto menor é a massa de
um corpo tanto mais rapidamente se aquece pela aproximação de um corpo quente;
o que demonstra que todo calor conhecido é infenso aos corpos tangíveis.
41. O calor, em relação ao
tato e aos demais sentidos humanos, é coisa variável e relativa. Por isso a
água tépida, se a mão que a toca está fria, parece quente; se a mão está
quente, parece fria.[102]
XIV
O quanto é pobre a nossa
história natural, qualquer um pode facilmente perceber pelo fato de que nas
tábuas precedentes inserimos simples tradições e relatos de terceiros (mas
sempre acrescentando e pondo em dúvida mesmo a mais segura autoridade), em
lugar da história provada e das instâncias certas. E ainda tivemos que nos
servir muitas vezes de locuções como a seguinte: “É necessário fazer o
experimento”, “é necessário comprová-lo com ulterior experimento”.
XV
Objetivo e oficio destas três
tábuas é o de fazer uma citação de instância perante o intelecto [103] (como
usualmente as designamos). Uma vez feita a citação, é necessário passar-se à
prática da própria indução. É necessário, com efeito, descobrir-se,
considerando atentamente as tábuas e cada uma das instâncias, uma natureza tal
que sempre esteja presente quando está presente a natureza dada, ausente
quando aquela está ausente, e capaz de crescer e decrescer acompanhando-a; e
seja, como já se disse antes, uma limitação da natureza mais comum.[104] Assim, se
a mente procura desde o início descobrir essa natureza afirmativamente, como
ocorre quando abandonada a si mesma, ocorrem fantasias, meras opiniões e noções
mal determinadas, e axiomas carentes de contínuas correções, se não se quiser,
segundo o costume das escolas, combater em defesa de falsidade.[105] Mas
certamente os resultados serão melhores ou piores conforme a capacidade e a
força do intelecto que opera. Contudo, só a Deus, criador e introdutor das
formas,[106] ou talvez
aos anjos e às inteligências celestes compete a faculdade de apreender as
formas imediatamente por via afirmativa, e desde o início da contemplação.
Certamente essa faculdade é superior ao homem, ao qual é concedida somente a
via negativa de procedimento, e só depois no fim, depois de um processo
completo de exclusões, pode passar às afirmações.[107]
XIV
Em vista disso, é necessário
analisar e decompor, de forma completa, a natureza, não certamente pelo fogo,
mas com a mente, que é uma espécie de centelha divina.[108] A
primeira obra da verdadeira indução, para a investigação das formas, é a
rejeição ou exclusão das naturezas singulares que não são encontradas em
nenhuma instância em que está presente a natureza dada, ou encontram-se em
qualquer instância em cuja natureza dada não está presente, ou cresçam em
qualquer instância em cuja natureza dada decresce, ou decrescem quando a
natureza dada cresce. Depois de ter feito as convenientes rejeições ou
exclusões na forma devida, restará no fundo, como resíduo donde se evolaram
como fumaça as opiniões, a forma afirmativa, sólida, verdadeira e bem
determinada. Tudo isso é breve para ser dito, mas é conseguido depois de muitas
tentativas. De nossa parte, acreditamos nada negligenciar do que é necessário
ao nosso propósito.
XVII
Devemos, no entanto, prevenir
sem demora os homens de que se acautelem de confundir as formas, de que
falamos, com as que as suas especulações e reflexões tratam habitualmente,[109] o que
pode ocorrer em vista da importância que reconhecem às formas.
Em primeiro lugar, e por esse
motivo, não nos ocuparemos das formas compostas,[110] que são,
como já se disse, combinações das naturezas simples conforme o curso comum do
universo, como a do leão, da águia, da rosa, do ouro, e de muitas outras. Elas
serão devidamente consideradas quando nos ocuparmos dos processos latentes, dos
esquematismos latentes e de sua descoberta, na medida em que se encontram nas
chamadas substâncias ou naturezas concretas.
De outra parte, mesmo em
relação às naturezas simples, não se devem confundir as formas de que tratamos
com as idéias abstratas, ou seja, com as idéias mal ou não determinadas na
matéria.[111] Com
efeito, quando falamos das formas, mais não entendemos que aquelas leis e
determinações do ato puro, que ordenam e constituem toda e qualquer natureza
simples, como o calor, a luz, o peso, em qualquer tipo de matéria ou objeto a
elas suscetível. Falar em forma do calor ou da luz é o mesmo que falar da lei
do calor ou da luz;[112] não nos
afastamos ou abstraímos do aspecto operativo das coisas. Assim, por exemplo,
quando falamos na investigação da forma do calor: rechace-se a tenuidade
ou a tenuidade não é a forma do calor; é como se disséssemos: o homem
pode introduzir o calor em um corpo denso ou o homem pode retirar ou
colocar à parte o calor de um corpo tênue.
Por conseguinte, se as nossas
formas parecerem a alguém com algo de abstrato, pelo fato de misturarem e
combinarem coisas heterogêneas (pois parecem, sem dúvida, heterogêneos o calor
dos corpos celestes e do fogo; o vermelho fixo da rosa ou similares, e o
que aparece no arco-íris ou nos sais da opala ou do diamante; a morte por
submersão e a por cremação, a por um golpe de espada e a por apoplexia e a por
atrofia; e isso apesar de todos esses caracteres pertencerem à natureza do
calor, do vermelho e da morte), reconheça ele que seu intelecto está
inteiramente preso e estacado pelo hábito, pelas coisas como um todo [113] e pelas
opiniões.
Está fora de dúvida que tais
coisas, ainda que heterogêneas e diversas entre si, coincidem na forma ou lei
que ordena o calor, o vermelho ou a morte; e que ao homem não é dado o poder
de se emancipar e liberar-se do curso da natureza e aventurar-se a novas
causas eficientes e a novas de operar, afora da revelação e da descoberta de
tais formas. Porém, depois de haver considerado a natureza em sua unidade, que
é o principal, depois no seu devido lugar, tratar-se-á das divisões e
ramificações da natureza, tanto das ordinárias quanto das internas e mais
verdadeiras.
XVIII
É agora oportuna a
apresentação de um exemplo de exclusão ou de rejeição de naturezas, que nas
tábuas de presença aparecem como não pertencendo à forma do calor; mas também
não deixando de se ter em mente que não apenas é suficiente uma das tábuas de
exclusão de uma natureza qualquer, mas que é suficiente apenas uma das
instâncias singulares nelas contidas. De fato, é manifesto, pelo que já se
disse, que mesmo apenas uma só instância que contradiga destrói qualquer
conjetura sobre a forma. De qualquer maneira, sempre que necessário, para maior
evidência e para a demonstração clara do uso das tábuas, repetiremos e
duplicaremos as exclusões.
Exemplo da Exclusão, ou
Rejeição de Naturezas da Forma do Calor
1. Pelos raios do sol
exclua-se a natureza elementar.
2. Pelo fogo comum e, mais
ainda, pelos fogos subterrâneos, que estão muito longe e muito distantes dos
raios dos corpos celestes, exclua-se a natureza dos corpos celestes.
3. Pela propriedade de se
aquecerem que têm todos os corpos (minerais, vegetais, as partes externas dos
animais, água, azeite, ar e similares) pela simples proximidade do fogo de
outro corpo quente, exclua-se toda variedade e delicadeza de textura dos
corpos.
4. Pelo ferro e pelos metais
incandescentes que aquecem todos os outros corpos, sem, contudo, diminuírem de
peso ou de substância, exclua-se a comunicação ou a mescla de outro corpo
quente.
5. Pela água fervente e pelo
ar e ainda pelos metais e outros sólidos aquecidos, mas não até a ignição e a
incandescência, excluam-se a luz ou o lume.[114]
6. Pelos raios da lua e de
outras estrelas (com exceção do sol), excluam-se ainda a luz e o lume.
7. Pela tábua comparativa do
ferro incandescente e da chama do espírito do vinho (que conclui que o ferro
incandescente tem mais calor, mas menos luz, e a chama do espírito do vinho,
mais luz e menor calor), excluam-se também a luz e o lume.
8. Pelo ouro e por outros
metais incandescentes, que são corpos de grande densidade, quando considerados
como um todo, exclua-se a tenuidade.
9. Pelo ar, mais comumente
encontrado frio, mas sempre permanecendo tênue, exclua-se também a tenuidade.
10. Pelo ferro incandescente,
cuja massa não se dilata, mas permanece em sua dimensão visível, exclua-se o
movimento local ou expansivo do todo.
11. Pela dilatação do ar nos
termômetros [115] e coisas
semelhantes, onde o ar manifestamente tem um movimento local e expansivo, mas
nem por isso contrai qualquer manifesto aumento de calor, exclua-se também o
movimento local e expansivo do todo.
12. Pela facilidade com que
todos os corpos se aquecem, sem qualquer destruição ou alteração digna de
nota, exclua-se a natureza destrutiva ou a introdução violenta de qualquer
natureza nova.
13. Pelo consenso e
conformidade dos efeitos semelhantes produzidos pelo calor e pelo frio,
exclua-se o movimento, tanto de expansão quanto o de contração do todo.
14. Pelo aumento do calor
oriundo do atrito dos corpos, exclua-se a natureza principal.[116] Chamamos
de natureza principal a que se encontra positivamente na natureza e não é
causada por uma natureza precedente.
Há ainda outras naturezas (a
serem excluídas), pois não fizemos tábuas perfeitas, mas apenas exemplos.
Todas, e cada uma das
naturezas enumeradas, não estão compreendidas na forma do calor. E de todas
essas naturezas mencionadas, o homem deve estar livre ao operar sobre o calor.
XIX
Com as tábuas das exclusões
estão colocados os fundamentos da verdadeira indução; que, contudo, não será
perfeita se não se apoiar na afirmativa. Mas nem a própria exclusiva
está completa, mormente logo de início. Com efeito, a exclusiva (como é evidente)
representa a rejeição das naturezas simples; mas se ainda não possuímos noções
justas e verdadeiras das naturezas simples,[117] como pode
o procedimento exclusivo ser correto? Algumas das noções antes mencionadas
(como a noção da natureza elementar, como a noção da natureza celeste, como a
noção de tenuidade)[118] são
noções vagas e não bem determinadas. Por isso, de vez que não ignoramos, nem
nos esquecemos da magnitude da obra que empreender (qual seja, a de colocar o
intelecto humano ao nível da natureza e das coisas), de nenhum modo nos podemos
contentar com o que até agora preceituamos; ao contrário, intentamos oferecer
e subministrar ao intelecto os mais poderosos auxílios, que é o que passaremos
a indicar. E, certamente, na interpretação da natureza deve-se formar e
preparar o ânimo na interpretação da natureza, de modo que, de um lado, detenha-se
devidamente nos vários graus de certeza e, de outro, pense também,
especialmente no início, que o que lhe é permitido examinar depende
sobremaneira do que ainda está para ser examinado.
xx
Contudo, como a verdade emerge
mais rapidamente do erro que da confusão, reputamos ser útil permitir-se ao
intelecto [119], depois
de elaboradas e devidamente consideradas as três tábuas de primeira citação
(ou comparecimento ou de apresentação, tal como o fizemos), o empreendimento da
obra de interpretação da natureza na afirmativa,[120] a partir
das instâncias contidas nas tábuas, ou das que ocorrerem fora delas. A
essa espécie de tentativa continuamos a chamar de Permissão ao Intelecto
ou de Interpretação Inicial ou ainda de Primeira Vindima.[121]
Primeira Vindima da Forma do Calor
Deve ter-se presente que a
forma é inerente (o que deve ter ficado claro pelo que antes foi dito) a todas
e a cada uma das instâncias particulares, nas quais se encontra a própria
coisa; de outra maneira não seria forma, pois não pode ocorrer nenhuma instância
contraditória. Todavia, a forma é muito mais visível em algumas instâncias que
em outras; ou seja, nas que a natureza da forma está menos coibida e impedida
pelas outras naturezas e reduzida à sua ordem. A estas instâncias costumamos
chamar de instâncias luminosas ou instâncias ostensivas.[122]
Em todas e em cada uma das
instâncias em que a limitação é o calor, a natureza parece ser o movimento.
Isso é manifesto na chama, no seu perpétuo mover, nos líquidos aquecidos ou
ferventes, também sempre em movimento. Fica igualmente claro, quando se excita
o calor pelo movimento, como acontece com os foles e com o vento (veja-se
instância 29, tábua 3). O mesmo pode ser dito de outros tipos de movimento, a
cujo respeito veja instâncias 28 e 31, tábua 3. Isso também se observa na
extinção do fogo e do calor, por qualquer forte compressão que refreia e
interrompe o movimento (veja instâncias 30 e 32, tábua 3). Fica igualmente claro
que todos os corpos se destroem ou, pelo menos, se alteram consideravelmente,
por qualquer fogo ou calor forte e veemente, daí se seguindo que o calor produz
um movimento forte, um tumulto ou perturbação nas partes internas do corpo, que
gradualmente caminham para a dissolução.
O que dissemos a respeito do
movimento (ou seja, que é como o gênero em relação ao calor) não deve ser
entendido como significando que o calor gera o movimento ou que o movimento
gera o calor (embora nisso haja alguma verdade), mas que o calor é em si,[123] ou que a
própria qüididade do calor [124] é
movimento e nada mais; observando-se, porém, as diferenças específicas que a
seguir enumeraremos, depois de indicar algumas precauções contra os equívocos.
O calor, enquanto coisa
sensível, é algo relativo ao homem e não ao universo, e é corretamente
estabelecido como sendo efeito (do calor) sobre o espírito animal. Pelo que, em
si mesmo, é coisa variável, pois em um mesmo corpo (conforme a disposição dos
sentidos) produz tanto sensação de calor quanto de frio, o que deve ter ficado
patente pela instância 41, tábua 3.
Contudo, não se pode confundir
a comunicação do calor, ou seja, a sua natureza transitiva, graças à qual um
corpo aproximando-se de outro quente, também se aquece, com a forma do calor.
Pois uma coisa é o quente e outra é o que esquenta. E, como, com um movimento
de atrito, se produz calor sem a existência de um calor precedente, é
necessário que se exclua o que se aquece da forma do quente. É mesmo quando o
calor sobrevém, pela aproximação de algo quente, isso não se deve à forma do
quente, mas resulta inteiramente de uma natureza mais alta e comum, isto é, da
natureza da assimilação ou da multiplicação de si mesmo, o que deve ser
investigado separadamente.[125]
A noção de fogo é vulgar e de
nada vale; é composta de combinação do calor e da luz de um corpo, como na
chama e nos corpos aquecidos até a incandescência.
Uma vez afastado todo
equívoco, passemos às diferenças verdadeiras, que limitam o movimento e
constituem-no na forma do calor.[126]
A primeira diferença é
a seguinte: o calor é movimento expansivo, pelo qual o corpo se dilata e tende
a dilatar-se ou a passar para uma esfera ou dimensão maior que a antes ocupada.
Esta diferença se mostra sobretudo na chama, onde o fumo e o vapor espesso se
dilatam e convertem-se em chama.
O mesmo se observa em todo
líquido fervente que se intumesce, de maneira manifesta, eleva-se e emite
borbulhas, e o processo de expansão se estende até alcançar uma extensão muito
superior e muito mais ampla que a do próprio líquido, quer dizer, convertendo o
líquido em vapor, fumo ou ar.
Observa-se também em toda
madeira ou matéria combustível, em que às vezes ocorre exsudação e sempre
evaporação.
Observa-se ainda na fusão dos
metais que como corpos muito compactos que são) não se intumescem nem se
dilatam com facilidade, porém, o seu espírito, depois de se ter dilatado,
tendendo dessa forma a uma maior expansão, força e leva as partes mais graxas
ao estado liquido. E se for aumentado em muito o calor, dissolve e torna
volátil grande parte delas.
Observa-se igualmente no ferro
e nas pedras: que, embora não se liqüefaçam ou fundam, tornam-se mais moles. O
que também ocorre com varas de madeira, que se tornam flexíveis quando
aquecidas em cinza quente. E esse movimento se observa de modo mais evidente
possível no ar, que com pouco calor se dilata de modo continuo e manifesto,
como se pode ver pela instância 38, tábua 3.
Observa-se, ainda, na natureza
contrária, que é o frio. Com efeito, o frio contrai todos os corpos e leva-os
a se encolherem. Isso vai ao ponto de, por ocasião de intenso frio, os pregos
caírem das paredes, o bronze se dessoldar, e o vidro aquecido, e subitamente
colocado no frio, arquear-se e quebrar. Igualmente o ar, submetido a um
ligeiro resfriamento, se contrai em volume mais restrito, como aparece na
instância 38, tábua 2. Mas, sobre esse assunto, alongar-nos-emos mais quando da
investigação do frio.
Não é de estranhar que o calor
e o frio produzam muitas ações comuns (a respeito, veja-se instância 32, tábua
32), pois duas das diferenças que vêm a seguir pertencem igualmente às duas
naturezas; ainda que nesta diferença (a de que estamos tratando) as ações sejam
diametralmente opostas — pois o calor engendra um movimento expansivo e
dilatador, e o frio, ao contrário, engendra um movimento de contração e de
condensação.
A segunda diferença é
uma modificação da precedente e reza que o calor é um movimento expansivo ou
orientado para a circunferência, mas com a condição de que, ao mesmo tempo, o
corpo tenda para o alto. Não há dúvida de que se podem produzir muitos movimentos
mistos. Por exemplo, uma seta ou um dardo gira enquanto caminha e caminha
enquanto gira. Da mesma maneira, o movimento do calor é expansivo e ao mesmo
tempo voltado para o alto.
Esta diferença fica bastante
evidente ao serem colocadas tenazes ou atiçadores de ferro no fogo. Se são
colocados perpendicularmente, segurando-se na outra extremidade, o calor
rapidamente queimará as mãos, mas se são colocados horizontalmente ou em nível
inferior ao do fogo, as mãos se vão aquecer muito depois.
É também evidente nas
destilações, per discensorium, que são usadas pelos homens para flores
muito delicadas cujos aromas rapidamente se evolam. De fato, a indústria
humana descobriu uma maneira de colocar o fogo não por baixo, mas por cima,
para aquecimento mais lento. Não apenas a chama mas também toda espécie de
calor tende para o alto.
Faça-se um experimento disso,
na natureza contrária do frio, para se verificar se o frio não provoca a
contração dos corpos para baixo, da mesma maneira que o calor dilata os corpos
para o alto. Para isso, tomem-se duas barras de ferro, ou dois tubos de vidro,
iguais em todos os outros aspectos, e levem-nos ao fogo para se aquecerem um
pouco; coloque-se uma esponja embebida em água fria ou neve, em cima de uma e
embaixo de outra respectivamente. Supomos que o resfriamento no sentido das
extremidades será mais rápido na barra em que a neve esteja em cima do que
naquela em que a neve venha colocada embaixo, ou seja, exatamente o contrário
do que ocorre com o calor.
A terceira diferença é
a seguinte: o calor é um movimento expansivo, não uniforme segundo o todo, mas
segundo as menores partículas do corpo, e ao mesmo tempo reprimido, repelido e
afastado, de maneira que adquire um movimento alternado e continuamente trêmulo
e irritado pela repercussão [127] e do qual
se origina o furor do fogo e do calor.
Esta diferença aparece
sobretudo na chama e nos líquidos ferventes, que continuamente tremem e nas
menores partes se intumescem e repentinamente esmorecem.
Ocorre ainda nos corpos que
têm tal densidade que aquecidos ou incandescentes não se intumescem, nem se
dilatam em sua massa; esse é o caso do ferro candente, em que o calor é muito
intenso.
Ocorre ainda no fato de o fogo
arder mais intensamente por ocasião da estação fria.
Ocorre ainda no fato de que,
quando o ar se dilata, no termômetro, sem qualquer impedimento ou força
repulsiva, isto é, com uniformidade e conformidade, não se percebe qualquer
calor. Ainda nos ventos fechados, mesmo irrompendo com a máxima força, mesmo
assim não se percebe um calor significativo; isso porque o movimento ocorre
segundo o todo e não alternadamente nas partículas. Faça-se um experimento a
esse respeito para se verificar se a chama não queima mais fortemente nos
lados que no centro.
Ocorre também de forma clara
no fato de que toda a combustão penetra pelos diminutos poros do corpo, que se
queima; de modo que a combustão o abate, penetra, atravessa e perfura como se
possuísse infinitas pontas de agulha. É por isso que também todas as
águas-fortes (se são adequadas ao corpo sobre o qual agem) produzem os efeitos
do fogo, devido à sua natureza corrosiva e penetrante.
Esta diferença (a de que
estamos falando) é comum à natureza do frio, no qual o movimento de contração é
contido pela força expansiva; do mesmo modo que no calor é reprimido o
movimento expansivo pela força de contração.
Por isso, tanto faz se as
partículas do corpo o penetrem para dentro ou no sentido do exterior, o
processo é o mesmo, embora o grau de intensidade seja muito diferente, pois,
mesmo aqui bem perto de nós, na superfície da Terra, nada temos que seja
puramente frio (veja-se instância 27, tábua 1).
A quarta diferença é
uma modificação da anterior, ou seja, o movimento estimulante ou penetrante
deve ser rápido, e não lento, e provir por partículas não extremamente
pequenas, mas um pouco maiores.
Observa-se esta diferença no
confronto dos resultados que produz o fogo com os resultados que produz o
tempo ou a idade. O tempo tanto quanto o fogo queima, consome, alui e reduz a
cinzas, mas de forma sutil e delicada, isso porque trata-se de um movimento
muito lento, que procede por partículas minúsculas e onde não se percebe o
calor.
Ocorre também na comparação
entre a dissolução do ferro e do ouro. O ouro de fato dissolve sem provocar
calor, enquanto o ferro produz um calor fortíssimo, mesmo durante um tempo mais
ou menos igual. Tal ocorre porque, com a introdução da água, a solução se processa
mais naturalmente e a dissolução das partes advém sem esforço, mas com o ferro,
ao contrário, a presença da água é áspera e contrastante, porque as partes do
ferro opõem uma maior resistência.
Ocorre ainda até certo ponto
em certas gangrenas ou decomposições da carne que não produzem grande calor,
nem dor, mas cumprem-se pelo processo sutil da putrefação.
Seja esta, pois, a primeira vindima
ou interpretação inicial da forma do calor, obtida por permissão do
intelecto.
Desta primeira vindima,
obtêm-se a forma ou verdadeira definição do calor (o calor em relação ao
universo e não apenas em relação aos sentidos), que pode ser expressa brevemente
do seguinte modo: O calor é um movimento expansivo, reprimido e que atua
sobre as partículas menores. A expansão pode ser definida: Pela natureza
de expandir-se em todas as direções, mas que, apesar disso, se inclina um
pouco mais para o alto. E o esforço sobre as partículas se define dizendo: Que
não se trata de algo lento, mas apressado e impetuoso.
Em relação à parte operativa,
é a mesma coisa. De fato, o seu enunciado é o seguinte: Se em algum corpo
natural pode produzir-se um movimento de dilatação e expansão e se se puder
reprimi-lo e fazê-lo voltar sobre esse movimento, de modo que a dilatação não
transcorra uniformemente, mas por partes e que seja em parte repelida, nesse
caso, sem dúvida, se engendrará calor. É indiferente se se trata de corpo
elementar (como se diz) ou se recebe as suas qualidades dos corpos celestes;
se é luminoso ou opaco; se é tênue ou denso; se aumentado em seu volume ou
contido nos limites da primeira dimensão; se tendente a dissolver-se ou a
permanecer no seu estado; se animal, vegetal ou mineral; se água, óleo ou ar;
ou de qualquer outra substância suscetível do movimento mencionado. O calor
sensível é, pois, a mesma coisa que o calor em si, mas em relação aos nossos
sentidos.[128] Mas agora
é necessário passar aos outros auxílios do intelecto.
XXI
Depois das tábuas de primeira
citação, depois da rejeição ou exclusão e depois da primeira vindima, feita
segundo aquelas tábuas, é necessário passar aos outros auxílios do intelecto na
interpretação da natureza, bem como à indução verdadeira e perfeita. Nessa
exposição, se se fizer necessário o uso das tábuas, retomaremos as do calor e
do frio. Mas quando houver necessidade de apenas alguns poucos exemplos, esses
serão recolhidos aqui ou ali, para que não se torne confusa a investigação e a
exposição muito restrita.
Em primeiro lugar, trataremos
das instâncias prerrogativas;[129] em
segundo lugar, dos adminículos da indução;[130] em
terceiro lugar, da retificação da indução;[131] em quarto
lugar, da variação da investigação segundo a natureza do assunto;[132] em quinto
lugar, das prerrogativas da natureza [133] em
relação à investigação, ou seja, daquilo que se deve investigar antes e depois;
em sexto lugar, dos limites da [134] investigação
ou sinopse de todas as naturezas do universo; em sétimo lugar, da dedução à
prática,[135] ou seja,
daquilo que está relacionado como o homem; em oitavo lugar, dos preparativos
para a [136] investigação;
em último lugar, da escala ascendente e descendente dos axiomas.[137]
XXII
Entre as instâncias
prerrogativas, em primeiro lugar, proporemos as instâncias solitárias.
Solitárias são aquelas instâncias que apresentam a natureza que se investiga,
em coisas que nada têm em comum com outras, a não ser aquela natureza; ou que
não apresentam a natureza que se investiga em coisas que são semelhantes a outras
em tudo, exceto em relação a essa natureza. É claro que estas instâncias
eliminam palavras inúteis e aceleram e reforçam a exclusão; bem por isso algumas
poucas valem por muitas.
Assim, por exemplo, na
investigação da natureza da cor, as instâncias solitárias são os prismas e os
cristais que fazem aparecer a cor, não somente em si mesma, mas também a
refletem sobre paredes externas, sobre o orvalho, etc. Tais instâncias nada têm
em comum com as cores fixas nas flores, com as cores das gemas, dos metais, das
madeiras, etc.; exceção feita da própria cor. Daí facilmente se estabelece que
a cor nada mais é que uma modificação da imagem luminosa introduzida no corpo e
recebida, no primeiro caso, com diversos graus de incidência, no segundo como
efeito de estrutura e esquematismos diversos. Estas instâncias são solitárias
por semelhança.
Ainda, na mesma investigação,
os veios do branco e do negro e as variações de cor, em flores da mesma
espécie, constituem instâncias solitárias. Efetivamente, o branco e o negro do
mármore e as manchas de branco e de vermelho de certas espécies de cravo parecem-se
em quase tudo, exceto na cor. Daí facilmente se conclui que a cor não tem muito
em comum com as naturezas intrínsecas dos corpos, mas que consiste tão-somente
na disposição tosca e quase mecânica das partes. A estas instâncias que são
solitárias, por diferença a um e outro gênero, chamamos de instância solitária,
ou Ferinos,[138] usando o
termo astronômico.
XXIII
Entre as instâncias
prerrogativas, colocaremos em segundo lugar as instâncias migrantes.[139] São
aquelas em que a natureza investigada migra ou passa a um processo de
existência [140] se antes
não existia, ou, ao contrário, migra no sentido da corrupção, se antes existia.
Em ambos os casos, simétricos da alternância, as instâncias são duplas, ou uma
única instância em movimento ou trânsito, que se estende ao ciclo contrário. As
instâncias desse tipo não apenas aceleram e reforçam o processo de exclusão
como também delimitam o afirmativo, isto é, a própria forma investigada. É
necessário, com efeito, que a forma da coisa seja algo que, por meio das
migrações, de um lado manifeste-se, de outro, destrua-se e seja eliminada. E
ainda que toda exclusão promova a afirmação, isso se cumpre mais diretamente
considerando-se um mesmo objeto, em vez de muitos. A forma (como deve ter
ficado claro por tudo o que foi dito), depois de observada em um único,
estende-se a todos os objetos. Quanto mais simples é a migração tanto mais
significativa é a instância. Além disso, as instâncias migrantes são de grande
utilidade na parte operativa (ou prática) do saber; isso porque, mostrando a
forma juntamente com a causa que a faz ser ou não ser,[141] indicam
de forma mais evidente a prática a ser seguida em certos casos, dos quais é
fácil passar a outros, mas há ai um perigo a ser evitado que exige cautela, ou
seja, tais instâncias conectam muito estreitamente a forma à causa eficiente,[142] confundindo
assim o intelecto, ou pelo menos iludindo-o com uma falsa opinião da forma, ao
divisar a causa eficiente. E esta, para nós, nada mais é que o veículo ou o
condutor da forma. Mas se o procedimento de exclusão é feito de maneira
legítima, o remédio será facilmente encontrado.
Exporemos agora um exemplo de
instância migrante. Seja a natureza a ser investigada o candor ou a brancura: a
instância migrante para a produção é o vidro inteiro e o vidro pulverizado.
Também a água comum e a água agitada, até transformar-se em espuma. De fato, o
vidro inteiro e a água comum são transparentes, mas não são brancos; o vidro
pulverizado e a água transformada em espuma são brancos, mas não são
transparentes. Por isso torna-se necessário descobrir o que aconteceu ao vidro
e à água por força dessa migração. É claro que a forma do branco é comunicada e
introduzida pela pulverização, no caso do vidro, e pela agitação, no caso da
água. Constatamos, então, que o que ocorreu foi a comunicação das partículas
do vidro e da água e a penetração do ar. E não foi pouco o já alcançado, com
isso, para o descobrimento da forma do branco, ao isolar o fato de que dois
corpos em si transparentes, sendo um mais e outro menos (ou seja, o ar e a
água, o ar e o vidro), colocados juntos em minúsculas partículas, produzem a
brancura, devido à refração desigual dos raios de luz.
Mas, a esse respeito, devemos
ainda expor um exemplo do perigo antes mencionado, bem como a forma de
evitá-lo. Ao intelecto corrompido pelas causas eficientes, facilmente pode
ocorrer o pensamento de que a forma do branco é sempre necessária ao ar, e que
a brancura é engendrada unicamente por corpos transparentes. O que é
inteiramente falso e demonstrado por muitas exclusões. Ver-se-á, por outro lado
(deixando de lado o ar e coisas análogas), que corpos inteiramente iguais, nas
partículas visíveis, produzem a transparência; que corpos desiguais, com
estrutura simples, engendram o branco; que os corpos desiguais, com estrutura
complexa, mas ordenada, engendram outras cores, com exceção do negro; que os
corpos desiguais, com uma estrutura complexa, mas desordenada e confusa,
engendram o negro. Assim apresentamos o exemplo de instância migrante, na
geração da natureza do branco. A instância migrante, para a corrupção da
própria natureza do branco, obtém-se com a espuma ou com a neve em dissolução.
De fato, a água perde o branco e retoma a transparência quando retorna ao seu
estado íntegro, sem ar.
De modo algum pode deixar de
ficar bem explícito que, sob o nome de instância migrante, compreendem-se não
apenas as que migram passando à geração ou à privação, mas ainda as que migram
passando ao aumento ou à diminuição, uma vez que também tais instâncias levam à
descoberta da forma, como se observa manifestamente pela, antes enunciada,
definição da forma e pela tábua de graus. Por isso o papel, quando seco, é
branco; mas quando é molhado (ou seja, quando se elimina o ar e se introduz a
água), é menos branco e mais próximo da transparência. O seu comportamento é
semelhante aos indicados nas instâncias anteriores.
XXIV
Entre as instâncias
prerrogativas, colocaremos em terceiro lugar as instâncias ostensivas,
de que já fizemos menção na primeira vindima do calor e a que também chamamos
de luminosas ou instâncias libertadas e predominantes.[143] São as
que mostram a natureza investigada nua e por si subsistente,[144] e
ostentam-na no mais alto grau de sua potência, ou seja, emancipada e liberta de
impedimentos, ou pelo menos a eles se impondo pela força de sua virtude,
suprimindo-os e contendo-os. Pelo fato de todo corpo conter muitas formas de
naturezas combinadas e unidas no concreto, ocorre que cada uma entorpece,
deprime, quebranta e submete a outra, e com isso as formas singulares se
obscurecem. Mas objetos há em que a natureza investigada é predominante em
relação a outras naturezas, seja pela falta de impedimento, seja pela
predominância de sua própria virtude. Estas são as instâncias mais ostensivas
da forma.[145] Mas,
mesmo neste caso, é necessário o uso de cautela e da moderação do ímpeto do
intelecto. Com efeito, tudo o que apresenta uma forma, e ostenta-a diretamente
ao intelecto, deve ser tido por suspeito e deve ser submetido a um rigoroso e
diligente procedimento de exclusão.
Por exemplo, seja o calor a
natureza a ser investigada. A instância ostensiva do movimento de expansão,
que (como se disse antes) é propriedade específica do calor, é a do termômetro
de ar. De fato, a chama, ainda que manifestamente apresente expansão, contudo,
pela sua grande facilidade de extinção, não apresenta bem o processo dessa
expansão. E a água fervente, pela sua facilidade de se transformar em vapor e
ar, não revela a expansão da água na sua própria massa. Mesmo o ferro candente,
assim como outros corpos semelhantes, está muito longe de mostrar a expansão,
porque o espírito é submetido pelas partes compactas e densas, a ponto de
refrear, conter o movimento expansivo, e assim o processo não é perceptível
pelos sentidos. Contudo, o termômetro mostra claramente a expansão do ar de
modo visível, progressivo, durável e ininterrupto.
Por exemplo, seja o peso a
natureza da instância investigada. A instância ostensiva do peso é o mercúrio.
Este supera de longe em peso todas as outras substâncias, com exceção do ouro;
e mesmo o ouro não é muito mais pesado que ele. Mas a instância que melhor indica
a forma do peso é o mercúrio e não o ouro. Pois o ouro é sólido e consistente,
e tais qualidades se relacionam com a densidade; enquanto o mercúrio é líquido
e prenhe de espírito, e mesmo assim tem peso muitos graus acima do diamante, e
de todos os sólidos que se conhecem. Daí se depreende claramente que a forma do
peso predomina simplesmente na quantidade da matéria e não em uma dimensão
restrita.
XXV
Entre as instâncias
prerrogativas, colocaremos em quarto lugar as instâncias clandestinas,[146] a que
também costumamos chamar de instâncias do crepúsculo.[147] São, por
assim dizer, as instâncias opostas às ostensivas; exibem, de fato, a natureza
investigada na sua ínfima força e, por assim dizer, em estado de incubação e
nos seus rudimentos; mostram-na nas suas primeiras tentativas e ensaios, mas
obscurecida e submetida por uma natureza contrária. Tais instâncias são de
grande importância para a descoberta da forma, pois, se as ostensivas orientam
facilmente a identificação das diferenças específicas, de sua parte as
instâncias clandestinas conduzem e facilitam a identificação dos gêneros, ou seja,
das naturezas comuns de que as naturezas investigadas são simples limitações.
Por exemplo, seja a
consistência a natureza a ser investigada: ou seja, aquilo que fixa os limites
do corpo e cujo contrário é a liquidez ou a fluidez. As instâncias clandestinas
são aquelas que mostram um grau ínfimo de consistência em um fluido; é o caso
da bolha de água que é uma espécie de película consistente e delimitada, feita
de água. O mesmo ocorre com as goteiras que, quando há água suficiente para
correr, formam um fio muito tênue e de tal modo que a água não se interrompe;
mas quando não há água suficiente para cair numa sucessão continua a água cai
em gotas redondas, a figura que melhor se presta para evitar qualquer
descontinuidade da água. Contudo, no exato instante em que cessa o fio de água
e tem inicio a queda das gotas, a água se retrai em relação a si mesma para
evitar a descontinuidade. Mesmo nos metais que, em fusão, são líquidos mais
espessos, muitas vezes as próprias gotas se retraem em si mesmas e assim
ficam. E semelhante à instância representada pelos pequenos espelhos que as
crianças costumam fazer com dois juncos, unidos pela saliva, no meio dos quais
se pode notar uma película consistente feita de água. O mesmo fato pode melhor
ser observado em outro brinquedo infantil em que se usa a água (tornada mais
consistente pelo sabão) e, com um canudo, sopra-se, fazendo com essa água um
verdadeiro castelo de bolhas; e estas, pela intromissão do ar, conservam um
grau de consistência capaz de manter certa continuidade, mesmo que muitas
bolhas se rompam. Isso é ainda bem visível na espuma e na neve, que adquirem
tal consistência que chegam quase a ser passíveis de cortes, mesmo sendo corpos
formados de ar e de água, ambos líquidos. Todos esses exemplos indicam de
maneira nada obscura que o líquido [148] e a
consistência são noções vulgares e relativas aos sentidos;[149] mas
também que em todos os corpos está presente a fuga ou a tendência no sentido
de evitar a própria descontinuidade e que tal tendência nos corpos homogêneos,
como nos líquidos, é débil e frouxa; enquanto que nos corpos compostos de
partes heterogêneas é muito mais forte e viva. E isso porque a presença de um
corpo heterogêneo une os corpos, enquanto a introdução de um corpo homogêneo os
dissolve e relaxa.
Da mesma maneira, procure-se
investigar, por exemplo, a natureza da atração ou coesão dos corpos.[150] A mais
notável instância ostensiva dessa forma é o magneto. A natureza contrária à
atração é a não-atração, como a que existe em substâncias semelhantes. O ferro
não atrai o ferro, o chumbo não atrai o chumbo, a madeira não atrai a madeira,
a água não atrai a água, etc. Mas a instância clandestina é o magneto armado de
ferro, ou melhor, o ferro armado em um magneto. A natureza é tal que o
magneto, armado a uma certa distância, não exerce mais atração sobre o ferro
que o magneto desarmado. Mas se o ferro é aproximado do magneto, armado até
tocá-lo, então o magneto armado sustentará um peso de ferro muito maior que um
magneto simples e sem armação, em vista da semelhança da substância do ferro
com o ferro. Essa propriedade de operar era completamente clandestina ou
latente no ferro, antes que o magneto dele fosse aproximado. Daí fica claro que
a forma de coesão dos corpos é algo de vivo e intenso no magneto, fraco e
latente no ferro. Deve, ainda, ser notado que pequenas flechas de madeira, sem
ponta de ferro, disparadas por bestas grandes, penetram mais a madeira (como
os flancos do navio ou coisas semelhantes) que essas mesmas flechas armadas com
a ponta de ferro; isso devido à semelhança da substância da madeira com a
madeira, embora essa propriedade já antes estivesse latente na madeira. Da
mesma maneira, apesar de o ar manifestamente não atrair o ar e a água, água,
uma bolha aproximada de outra bolha dissolve-se mais facilmente que se tal não
tivesse ocorrido, isso devido ao apetite de coesão que tem a água para com a
água e o ar para com o ar. Tais instâncias clandestinas (que são de notável
utilidade, como já foi dito) tornam-se visíveis sobretudo em porções pequenas e
sutis dos corpos. As massas maiores seguem formas mais gerais e universais,
como se dirá no devido lugar.
XXVI
Entre as instâncias
prerrogativas, colocamos em quinto lugar as instâncias constitutivas,[151] a que
também costumamos chamar de manipulares.[152] São as
que se constituem numa espécie da natureza investigada, à maneira de forma
menor. Com efeito, como as formas legítimas (que são sempre conversíveis nas
naturezas investigadas) são muito latentes e não são facilmente descobertas, a
vacilação e a fragilidade do intelecto humano requerem que as formas
particulares, que reúnem alguns punhados de instâncias, mas não todas em uma
noção comum, não sejam negligenciadas, antes notadas com toda diligência. Pois
tudo o que serve para conferir unidade à natureza, ainda que de modo
imperfeito, abre caminho à descoberta das formas. Portanto, as instâncias que
são úteis a esse propósito não podem ser desprezadas quanto à sua força e têm
até certas prerrogativas.
Mas o seu emprego deve ser
feito com diligente cautela, para se evitar que o intelecto humano, depois de
ter descoberto muitas dessas formas particulares e de ter estabelecido as
partições ou divisões da natureza investigada, acabe se contentando apenas com
isso e não prossiga na investigação legítima da forma grande;[153] mas acabe
supondo que a natureza, na sua própria raiz, é múltipla e dividida, e descure e
suponha a ulterior unidade da natureza como uma sutileza vã, que conduz a meras
abstrações.
Estabeleça-se, por exemplo,
que a natureza a ser investigada seja a memória ou aquilo que excita e ajuda a
memória. As instâncias constitutivas são a ordem ou a distribuição que
manifestamente ajudam a memória, como também é o caso dos tópicos [154] da
memória artificial,[155] que podem
ser lugares, no seu significado verdadeiro e próprio, como a porta, o ângulo, a
janela e coisas parecidas, e podem ser pessoas, familiares e conhecidas; podem
ser, ainda, outras coisas (desde que dispostas em uma determinada ordem), como
animais ou ervas; podem ser, ainda, palavras, letras, caracteres, personagens
históricas, etc. Para cada caso devem ser verificados os que são mais ou menos
aptos e cômodos. Tais tópicos ajudam significativamente a mente e predispõem-na
em relação a forças naturais. Por essa razão os versos permanecem e prendem
mais facilmente a memória que a prosa. O conjunto ou manípulo dessas três
instâncias, ou seja, a ordem, os tópicos da memória artificial e os versos,
constitui uma só espécie de ajuda à memória de tal espécie que pode chamar-se
justamente de corte do infinito.[156] Com
efeito, quando se procura recordar alguma coisa ou buscá-la na memória, se não
se conta com nenhuma prenoção ou percepção do que se busca, a procura se cumpre
de maneira errante, indo-se aqui e ali, e assim quase ao infinito. Mas, se se
dispõe de alguma prenoção segura, subitamente é interrompido o vagar ao
infinito e o discurso da memória se torna mais próximo. Pois bem, na três
instâncias supracitadas a prenoção é evidente e certa: na primeira, trata-se de
algo que retoma certa ordem; na segunda, trata-se de uma imagem que tem alguma
relação ou conveniência com os tópicos estabelecidos; na terceira, trata-se de
palavras que formam um verso. E assim é que se interrompe o vagar ao infinito.
Outras instâncias nos oferecerão a seguinte segunda espécie: tudo o que conduz
o que é do intelecto à impressão dos sentidos [157] ajuda a
memória (conforme uma regra muito seguida pela memória artificial). Outras
instâncias oferecerão esta terceira espécie: tudo o que provoca uma impressão,
sob um intenso afeto,[158] ou seja,
o que infunde medo, admiração, vergonha, deleite, ajuda a memória. Outras
instâncias oferecerão esta quarta espécie: tudo o que se imprime na mente pura
ou antes de estar ocupada ou despreocupada de algo, como o que se aprende na
infância ou o que se pensa antes do sono e ainda o que acontece pela primeira
vez, melhor se fixa na memória. Outras instâncias oferecerão esta quinta
espécie: o grande número de circunstâncias e de ocasiões ajuda a memória como o
hábito de escrever-se por partes descontínuas e a leitura e recitação em voz
alta. Outras instâncias, finalmente, oferecerão esta sexta espécie: tudo o que
se espera e que excita a atenção grava-se na mente muito mais que o que
transcorre sem preocupação. Por isso, se se ler um escrito vinte vezes, não
será aprendido de memória com a facilidade resultante de dez leituras, nas
quais se procure dizer o texto de memória, apenas retomando o escrito quando
aquela falhar.
Assim, seis são as formas
menores de ajuda à memória: a interrupção ou corte do vagar ao infinito, a
redução do intelectual ao sensível, a impressão recebida sob intensa vibração
de ânimo, a impressão feita em uma mente pura, a multidão de ocasiões, a
expectativa prévia.
Da mesma maneira, tome-se, por
exemplo, para a investigação, a natureza do gosto ou da degustação. As
instâncias que se seguem são constitutivas: os indivíduos que por natureza são
destituídos do olfato são também providos do gosto, assim não distinguem o
alimento rançoso ou podre, como também não distinguem o cheiro do alho ou da
rosa e coisas semelhantes. Mesmo os indivíduos que ficam com o nariz obstruído
por catarro não distinguem nem percebem o podre, o rançoso ou o odor da água de
rosas aspergida sobre algo. Porém, se se provocar a desobstrução do nariz com
violento sopro, no mesmo instante terão a percepção do mau cheiro ou do odor de
qualquer coisa que tenham na boca. Estas instâncias darão e constituirão esta
espécie ou parte do gosto, tornando claro que o sentido do gosto nada mais e,
em parte, que um olfato interno que passa e desce, dos canais superiores do
nariz à boca, e ao paladar, e, em contrapartida, o salgado, o doce, o acre, o
ácido, o seco, o amargo e semelhantes, tais sabores, todos eles são totalmente
percebidos pelos que são desprovidos do olfato ou o tenham obstruído. Assim,
torna-se evidente que o sentido do gosto é algo composto do olfato interno e
de uma espécie de tato delicado, do qual não cabe tratar aqui.
Ainda, do mesmo modo, tome-se,
por exemplo, a investigação da natureza da comunicação sem mescla de
substância. A instância das luzes oferecerá ou constituirá uma espécie de
comunicação; o calor e o magneto uma outra. Com efeito, a comunicação das luzes
é momentânea e, subitamente, se desvanece quando se tolda sua fonte de irradiação.
Por seu turno, o calor e a força magnética depois de transmitidos, ou melhor,
excitados em corpo, aderem a ele e nele permanecem por algum tempo, mesmo na
falta do objeto que originou o movimento.
Em suma, é sobremaneira grande
a prerrogativa das instâncias constitutivas, por serem de grandíssima valia no
estabelecimento das definições (especialmente particulares) e nas divisões ou
partições da natureza, e a cujo respeito disse com acerto Platão “que se deve
considerar como um Deus o que bem souber definir e dividir”.[159]
XXVII
Entre as instâncias
prerrogativas, colocaremos em sexto lugar as instâncias conformes ou
proporcionadas,[160] a que
costumamos também chamar de paralelas ou semelhanças físicas.[161] E são as
instâncias que ostentam as semelhanças e as conjunções das coisas, não nas
formas menores, como as instâncias constitutivas, mas simplesmente no concreto.
Constituem por isso como que os primeiros e mais baixos graus de unificação da
natureza. Não constituem imediatamente, logo de início, um axioma, mas
tão-somente indicam e observam certa conformidade entre os corpos. Mesmo não
sendo de grande valia para o descobrimento das formas, revelam, contudo, de
maneira útil, as estruturas das partes do universo, perfazendo quase a anatomia
de seus membros; por isso, dirigem-se quase pelas mãos aos axiomas nobres e
sublimes e especialmente àqueles que se relacionam com a configuração do mundo,
e muito pouco servem para se chegar às naturezas ou formas simples.
Por exemplo, são instâncias
conformes as seguintes: o espelho e o olho; a estrutura do ouvido e dos lugares
que produzem eco. A partir dessa conformidade, deixando-se de lado a mera
observação da semelhança, bastante útil para muitas coisas, é fácil recolher e
estabelecer o axioma de que os órgãos dos sentidos e os corpos que comportam
os reflexos sobre os sentidos são semelhantes por natureza. Com isso em conta,
o intelecto se eleva sem dificuldade a um axioma mais alto e nobre, que é o
seguinte: não há, entre os consensos ou simpatias dos corpos dotados de
sensação e os inanimados e privados de sensação, outra diferença que a que os
primeiros possuem um corpo disposto de tal forma a poder receber o espírito
animal, os segundos não. Assim, quantos sejam os consensos nos corpos inanimados
outros tantos poderão ser os sentidos nos corpos dos animais, desde que para
isso haja espaço no corpo animado, suficiente para o espírito animal em um
membro adequadamente ordenado como um órgão idôneo. E, ainda, tantos sejam os
sentidos dos animais quantos serão, sem dúvida, os movimentos em um corpo
inanimado, desprovido do espírito animal. Mas é necessário que os movimentos
nos corpos inanimados sejam em muito maior número que os dos sentidos nos
corpos animados, em vista da pequenez dos órgãos dos sentidos. E disso há um
exemplo bastante manifesto nas dores. Pois, existindo muitos gêneros de dores
nos animais e, por assim dizer, distintos caracteres delas (uma é a dor da
queimadura, outra a do frio intenso, outra a de uma pontada, outra a de uma distensão
e outras do mesmo tipo), é absolutamente certo que todas ocorram em corpos
inanimados, em relação ao movimento. E o caso, por exemplo, da madeira e da
pedra, quando queimadas, ou quando contraídas pelo gelo, ou quando furadas, ou
quando partidas, ou quando dobradas, ou quando golpeadas, e assim por diante;
embora não haja sensação, devido à ausência do espírito animal.
Do mesmo modo (embora estranho
para ser dito), as instâncias conformes são as raízes e os ramos da planta. De
fato, todo vegetal, crescendo, aumenta de volume e tende a estender suas partes
em círculo, tanto para cima quanto para baixo. Não há outra diferença entre as
raízes e os ramos que o fato de as raízes estarem sob a terra, enquanto os
ramos se estenderem pelo ar e ao sol. Tome-se um ramo tenro e verde e
coloque-se em uma pequena porção de terra; mesmo antes de se fixar ao terreno,
o que logo aparece não é um ramo mas uma raiz. E vice-versa, se se coloca terra
na parte superior e por meio de uma pedra ou de uma substância dura se arruma a
planta de tal forma que ela fique comprimida e não possa brotar para cima, ela
soltará ramos no ar existente na parte de baixo.
Do mesmo modo, são instâncias
conformes a resina das árvores e muitas gemas de rubi. Umas e outras, de fato,
são exsudações e filtrações de sucos, no primeiro caso de árvores, no segundo,
de seixos. Daí a existência em ambos do esplendor e brilho causados, sem
dúvida, pela filtração delicada e perfeita. Daí procede também o fato de os
pêlos dos animais não serem tão belos e de cores tão vivas como as penas das
aves — pois os sucos não se filtram pela pele com a mesma delicadeza que pelos
pequenos tubos das penas.
Do mesmo modo, são instâncias
conformes o escroto nos animais masculinos e a matriz nas fêmeas. Pois a
notável estrutura que permite ao sexo se diferenciar (pelo menos os animais
terrestres) não parece ser outra coisa que a diferença entre o interno e o
externo; ou seja, o calor, que tem maior força no sexo masculino, impele para
fora as partes genitais; ao passo que nas fêmeas tal não ocorre, porque o
calor é mais fraco e as partes genitais ficam contidas no interior.[162] Do mesmo
modo, são instâncias conformes as barbatanas dos peixes, os pés dos
quadrúpedes, os pés e as asas das aves, ao que Aristóteles acrescenta as
quatros flexões que fazem as serpentes.[163] Assim, na
estrutura do universo o movimento dos seres vivos parece poder ser explicado
com dois pares de artelhos ou membros flexíveis.
E do mesmo modo são instâncias
conformes os dentes dos animais terrestres e o bico das aves: em vista do que
se torna claro que todos os animais perfeitos têm algo de duro na boca.
Do mesmo modo, não é absurda a
semelhança e conformidade graças às quais o homem parece uma planta invertida.
De fato, a raiz dos nervos e das faculdades dos animais é a cabeça; as partes
seminais são as mais baixas, sem se levar em conta as extremidades das pernas
e dos braços. Na planta, ao contrário, é a raiz que está no lugar da cabeça,
que está situada na parte mais baixa, e as sementes na parte mais alta.
Finalmente deve ser sempre
lembrado que todas as investigações diligentes e toda coleta de fatos
empreendidas pela história natural devem mudar de direção e voltarem-se para um
fim contrário àqueles para os quais ora são dirigidas. Até agora os homens
tiveram grande curiosidade por conhecer a verdade das coisas e por explicar de
modo apurado as diferenças existentes entre os animais, entre as ervas e entre
os fósseis. Tais diferenças, na sua maior parte, são como que caprichos da
natureza e não coisas de alguma utilidade para a ciência. Prestam-se, certamente,
ao divertimento, às vezes servem à prática, mas muito pouco ou nada para a
prospecção da natureza. Por isso toda obra deve voltar-se inteiramente para a
investigação e a observação das semelhanças e das analogias, seja no todo ou
nas partes. Estas são, com efeito, as que conferem unidade à natureza e dão início
à constituição da ciência.
Mas em tudo é absolutamente
necessário observar-se uma grave e severa cautela, pois se aceitam como
instâncias conformes e proporcionadas apenas as que denotam, como antes foi
dito, semelhanças físicas, isto é, reais e substanciais e fundadas na
natureza, e não as meramente casuais e especiosas, como as que exibem os
escritores de magia natural (homens levianos que não mereciam ser mencionados
nos assuntos graves de que tratamos), os quais, com grande vaidade e
ignorância, descrevem imaginárias semelhanças e fictícia simpatia entre as
coisas, que eles mesmos inventam.
Mas, deixando isso de lado,
acrescentamos que nem mesmo na configuração do mundo, nos seus mais amplos
espaços, devem-se negligenciar as instâncias conformes. A África e a região do
Peru, com seu continente que se estende até o estreito de Magalhães, apresentam
istmos e promontórios semelhantes, o que não pode ocorrer por acaso.
Também o Novo e o Velho Mundo
se correspondem no fato de que ambos se alargam no sentido setentrional e, ao
contrário, nos meridianos são estreitos e terminam em ponta.
Do mesmo modo, notáveis
instâncias conformes são os frios intensos que reinam na chamada região média
do ar, bem como os fogos fortíssimos que muitas vezes irrompem das regiões
subterrâneas; duas coisas que são limites e extremas, ou seja, a natureza do
frio que tende para a região do céu, e a natureza do calor, que tende para as
entranhas da terra. Isso ocorre por antiperístase ou repulsão da natureza
contrária.
Finalmente, é digna de nota,
nos axiomas das ciências, a conformidade das instâncias. Assim o tropo da
retórica chamado Praeter Expectatum [164] está de
acordo com o tropo musical chamado Declinatio Cadentiae.[165] Da mesma
maneira, o postulado matemático de que “os ângulos iguais a um terceiro são
iguais entre si” é conforme à estrutura lógica do silogismo, que une as coisas
que concordam ou convêm a um termo médio. É de muita utilidade, em numerosas
investigações, a sagacidade no descobrir e no indagar as conformidades e as
semelhanças físicas.
XXVIII
Entre as instâncias
prerrogativas, colocamos em sétimo lugar as instâncias monádicas,[166] a que
também costumamos chamar de irregulares ou heteróclitas,[167] tomando o
vocábulo dos gramáticos. São aquelas que mostram ao concreto os corpos que
parecem extravagâncias ou quase inesperados na natureza e que não estão de
acordo com as outras coisas do mesmo gênero. Enquanto as instâncias conformes
são semelhantes umas às outras, as instâncias monádicas só são semelhantes a si
mesmas. O seu uso é idêntico ao das instâncias clandestinas, ou seja, servem
para ressaltar e unir a natureza, na identificação dos gêneros ou naturezas
comuns, que depois devem ser delimitados pelas diferenças verdadeiras. Não se
deve desistir da investigação enquanto as propriedades e as qualidades que se
encontram nas coisas, e podem ser consideradas espantosas na natureza, não
fiquem reduzidas ou compreendidas segundo alguma forma ou lei certa, de maneira
a ficar indicado que todo fenômeno irregular e singular depende de alguma forma
comum; e que o milagre, enfim, seja colocado na dependência de apenas algumas
diferenças específicas bem determinadas, e num grau e numa proporção
raríssimos, e não na dependência da própria espécie. Mas atualmente as
preocupações dos homens não vão mais longe que a determinação de tais coisas,
como se fossem segredos e significativas manifestações da natureza,[168] como se
se tratasse de fatos sem causa, e assim acabam sendo consideradas como exceções
das regras gerais.
São exemplos de instâncias
monádicas, entre os astros, o sol e a lua; o magneto, entre as pedras; o
mercúrio, entre os metais; o elefante, entre os quadrúpedes; a sensibilidade
erótica, entre as espécies de tato; o faro da caça nos cães, entre os gêneros
de olfato. Também a letra S entre os gramáticos é tomada como uma letra
monádica pela facilidade que tem de se combinar, seja com duas outras, com
outras três consoantes, o que não ocorre com nenhuma outra letra. As instâncias
deste tipo devem ser levadas em grande conta, porque aguçam e estimulam a
investigação e corrigem o intelecto depravado pelo hábito e pelas ocorrências
rotineiras.
XXIX
Entre as instâncias
prerrogativas, colocamos em oitavo lugar as instâncias desviantes,[169] ou seja,
os erros da natureza, as coisas vagas e monstruosas, nos quais a natureza rompe
e se desvia do seu curso natural. Os erros da natureza e as instâncias monádicas
diferem no fato de que os primeiros são milagres dos indivíduos enquanto que as
segundas são milagres da espécie. Mas o seu uso é quase o mesmo, pois retificam
o intelecto da experiência habitual e revelam as formas comuns. Também aqui não
se deve abandonar a investigação até que se descubra a causa do desvio. Na
verdade, essas causas não alcançam propriamente qualquer forma, mas chegam até
ao processo latente que conduz à forma; e quem conhece com familiaridade os
caminhos da natureza facilmente observará os seus desvios. Por outro lado,
aquele que está familiarizado com os desvios mais acuradamente descreverá
aqueles caminhos. As instâncias monádicas também se diferenciam pelo fato de
serem muito mais instrutivas para a prática e para a parte operativa. De fato,
seria algo muito difícil o surgimento de novas espécies; mas a variação das
espécies já conhecidas e, com isso, a produção de uma infinidade de coisas
raras inusitadas, seria tarefa menos árdua. Com efeito, fácil é o passo dos
milagres da natureza aos milagres da arte.[170] Uma vez
que se surpreenda a natureza em uma variação, e se indique claramente a sua
razão, será depois fácil, pela arte, repará-la em seu descaminho acidental. E
não apenas em relação a este erro, mas ainda em relação a outros; pois os erros
em um determinado passo abrem caminho a erros e desvios por toda parte. E aqui
não é o caso de se indicar exemplos, dada a sua grande abundância: deve-se
proceder a uma coleta ou a uma história natural de todos os monstros e partos
prodigiosos da natureza; de tudo o que na natureza é novo, raro e excepcional.
Mas a escolha deve ser muito severa para que mereça fé. Sobretudo devem
considerar-se como suspeitos os milagres que se originam de alguma maneira das
superstições, como os prodígios relatados por Tito Lívio, como também os que se
encontram nos escritores de magia natural e de alquimia, e pessoas do gênero,
que são próceres e amantes das fábulas. Os referidos fatos devem ser buscados
em histórias sérias e em tradições seguras.
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