segunda-feira, 2 de abril de 2012

NOVUM ORGANUM (part. I)


NOVUM
ORGANUM
Francis Bacon

ÍNDICE
Prefácio do Autor
AFORISMOS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I
LIVRO II
Notas


NOVUM ORGANUM

PREFÁCIO DO AUTOR

     Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências. Pois, fazendo valer a sua opinião, concorreram para interromper e extinguir as investigações. Tudo mais que hajam feito não compensa o que nos outros corromperam e fizeram malograr. Mas os que se voltaram para caminhos opostos e asseveraram que nenhum saber é absolutamente seguro, venham suas opiniões dos antigos sofistas, da indecisão dos seus espíritos ou, ainda, de mente saturada de doutrinas, alegaram para isso razões dignas de respeito. Contudo, não deduziram suas afirmações de princípios verdadeiros e, levados pelo partido e pela afetação, foram longe demais. De outra parte, os antigos filósofos gregos, aqueles cujos escritos se perderam, coloca­ram-se, muito prudentemente, entre a arrogância de sobre tudo se poder pronunciar e o desespero da acatalepsia.[1] Verberando com indignadas queixas as dificuldades da investigação e a obscuridade das coisas, como corcéis generosos que mordem o freio, perseveraram em seus propósitos e não se afastaram da procura dos segredos da natureza. Decidiram, assim parece, não debater a questão de se algo pode ser conhecido, mas experimentá-lo. Não obstante, mesmo aque­les, estribados apenas no fluxo natural do intelecto, não empregaram qualquer espécie de regra, tudo abandonando à aspereza da medita­ção e ao errático e perpétuo revolver da mente.
     Nosso método,[2] contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrin­do e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que também divisaram os que tanto concederam à dialética.[3] Tornaram também manifesta a necessidade de escoras para o intelecto, pois colocaram sob suspeita o seu processo natural e o seu movimento espontâneo. Mas tal remédio vinha tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente ocupada pelos usos do convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais vã idolatria.[4] Pois a dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em nada modificando o andamento das coisas, mais serviu para firmar os erros que descerrar a verdade. Resta, como única salvação, reempreender-se inteiramente a cura da mente. E, nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma, mas permanentemente regulada, como que por mecanis­mos. Se os homens tivessem empreendido os trabalhos mecânicos uni­camente com as mãos, sem o arrimo e a força dos instrumentos, do mesmo modo que sem vacilação atacaram as empresas do intelecto, com quase apenas as forças nativas da mente, por certo muito pouco se teria alcançado, ainda que dispusessem para o seu labor de seus extremos recursos.
     Considere-se, por um momento, este exemplo que é como um espelho. Imagine-se um obelisco de respeitável tamanho a ser condu­zido para a magnificência de um triunfo, ou algo análogo, e que devesse ser removido tão-somente pelas mãos dos homens. Não reco­nheceria nisso o espectador prudente um ato de grande insensatez? E esta não pareceria ainda maior se pelo aumento dos operários se con­fiasse alcançar o que se pretendia? E, resolvendo fazer uso de algum critério, se se decidisse pôr de lado os fracos e colocar em ação unica­mente os robustos e vigorosos, esperando com tal medida lograr o propósito colimado, não proclamaria o espectador estarem eles cada vez mais caminhando para o delírio? E, se, ainda não satisfeitos, deci­dissem, por fim, os dirigentes recorrer à arte atlética e ordenassem a todos se apresentarem logo, com as mãos, os braços e os músculos untados e aprestados, conforme os ditames de tal arte: não exclama­ria o espectador estarem eles a enlouquecer, já agora com certo cál­culo e prudência? E se, por outro lado, os homens se aplicassem aos domínios intelectuais, com o mesmo pendor malsão e com aliança tão vã, por mais que esperassem, seja do grande número e da conjunção de forças, seja da excelência e da acuidade de seus engenhos; e, ainda mais, se recorressem, para o revigoramento da mente, à dialética (que pode ser tida como uma espécie de adestramento atlético), parece­riam, aos que procurassem formar um juízo correto, não terem desis­tido ainda de usar, sem mais, o mero intelecto, apesar de tanto esforço e zelo. E manifestamente impraticável, sem o concurso de instrumentos ou máquinas, conseguir-se em qualquer grande obra a ser empreendida pela mão do homem o aumento do seu poder, simples­mente, pelo fortalecimento de cada um dos indivíduos ou pela reunião de muitos deles.
     Depois de estabelecermos essas premissas, destacamos dois pon­tos de que queremos os homens claramente avisados, O primeiro con­siste em que sejam conservados intactos e sem restrições o respeito e a glória que se votam aos antigos, isso para o bom transcurso de nos­sos fados e para afastar de nosso espírito contratempos e perturbações. Desse modo, podemos cumprir os nossos propósitos e, ao mesmo tempo, recolher os frutos de nossa discrição. Com efeito, se pretendemos oferecer algo melhor que os antigos e, ainda, seguir al­guns caminhos por eles abertos, não podemos nunca pretender esca­par à imputação de nos termos envolvido em comparação ou em con­tenda a respeito da capacidade de nossos engenhos. Na verdade, nada há aí de novo ou ilícito. Por que, com efeito, não podemos, no uso de nosso direito que, de resto, é o mesmo que o de todos —, reprovar e apontar tudo o que, da parte daqueles, tenha sido estabelecido de modo incorreto? Mas, mesmo sendo justo e legítimo, o cotejo não pareceria entre iguais, em razão da disparidade de nossas forças. Todavia, visto intentarmos a descoberta de vias completamente novas e desconhecidas para o intelecto, a proposição fica alterada. Cessam o cuidado e os partidos, ficando a nós reservado o papel de guia ape­nas, mister de pouca autoridade, cujo sucesso depende muito mais da boa fortuna que da superioridade de talento. Esta primeira adver­tência só diz respeito às pessoas. A segunda, à matéria de que nos vamos ocupar.
     É preciso que se saiba não ser nosso propósito colocar por terra as filosofias ora florescentes ou qualquer outra que se apresente, com mais favor, por ser mais rica e correta que aquelas. Nem, tampouco, recusamos às filosofias hoje aceitas, ou a outras do mesmo gênero, que nutram as disputas, ornem os discursos, sirvam o mister dos professores e que provejam as demandas da vida civil. De nossa parte, declaramos e proclamamos abertamente que a filosofia que ofe­recemos não atenderá, do mesmo modo, a essas coisas úteis. Ela não é de pronto acessível, não busca através de prenoções a anuência do intelecto, nem pretende, pela utilidade ou por seus efeitos, pôr-se ao alcance do comum dos homens.
     Que haja, pois talvez seja propício para ambas as partes, duas fontes de geração e de propagação de doutrinas. Que haja igualmente duas famílias de cultores da reflexão e da filosofia, com laços de parentesco entre si, mas de modo algum inimigas ou alheia uma da outra, antes pelo contrário coligadas. Que haja, finalmente, dois mé­todos, um destinado ao cultivo das ciências e outro destinado à desco­berta científica. Aos que preferem o primeiro caminho, seja por impa­ciência, por injunções da vida civil, seja pela insegurança de suas mentes em compreender e abarcar a outra via (este será, de longe, o caso da maior parte dos homens), a eles auguramos sejam bem suce­didos no que escolheram e consigam alcançar aquilo que buscam. Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso presente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que este­jam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação; não em emi­tir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, que se juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciên­cias, por tantos palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios. E, para sermos melhor atendidos e para maior familiaridade, queremos adiantar o sentido dos termos empregados. Chamaremos ao primeiro método ou caminho de Antecipação da Mente e ao segundo de Interpretação da Natureza.
     Para algo mais chamamos a vossa atenção. Procuramos cercar nossas reflexões dos maiores cuidados, não apenas para que fossem verdadeiras, mas também para que não se apresentassem de forma incômoda e árida ao espírito dos homens, usualmente tão atulhado de múltiplas formas de fantasia. Em contrapartida, solicitamos dos homens, sobretudo em se tratando de uma tão grandiosa restauração do saber e da ciência, que todo aquele que se dispuser a formar ou emitir opiniões a respeito do nosso trabalho, quer partindo de seus próprios recursos, da turba de autoridades, quer por meio de demons­trações (que adquiriram agora a força das leis civis), não se disponha a fazê-lo de passagem e de maneira leviana. Mas que, antes, se inteire bem do nosso tema; a seguir, procure acompanhar tudo o que descrevemos e tudo a que recorremos; procure habituar-se à complexidade das coisas, tal como é revelada pela experiência; procure, enfim, eli­minar, com serenidade e paciência, os hábitos pervertidos, já profun­damente arraigados na mente. Aí então, tendo começado o pleno domínio de si mesmo, querendo, procure fazer uso de seu próprio juízo.

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA E O REINO DO HOMEM
LIVRO I
AFORISMOS

I
     O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais.
II
     Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxi­liares, de que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm.
III
     Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática.
IV
     No trabalho da natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria natureza, em si mesma.
V
     No desempenho de sua arte, costumam imiscuir-se na natureza o tísico, o matemático, o médico, o alquimista e o mago. Todos eles, con­tudo — no presente estado das coisas —, fazem-no com escasso empenho e parco sucesso.
VI
     Seria algo insensato, em si mesmo contraditório, estimar poder ser realizado o que até aqui não se conseguiu fazer, salvo se se fizer uso de procedimentos ainda não tentados.
VII
     As criações da mente e das mãos parecem sobremodo numero­sas, quando vistas nos livros e nos ofícios. Porém, toda essa variedade reside na exímia sutileza e no uso de um pequeno número de fatos já conhecidos e não no número dos axiomas.[5]
VIII
     Mesmo os resultados até agora alcançados devem-se muito mais ao acaso e a tentativas que à ciência. Com efeito, as ciências que ora possuímos nada mais são que combinações de descobertas anteriores. Não constituem novos métodos de descoberta nem esquemas para novas operações.
IX
     A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciên­cias é uma única: enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados.
X
     A natureza supera em muito, em complexidade, os sentidos e o intelecto. Todas aquelas belas meditações e especulações humanas, todas as controvérsias são coisas malsãs. E ninguém disso se apercebe.
XI
     Tal como as ciências, de que ora dispomos, são inúteis para a invenção de novas obras, do mesmo modo, a nossa lógica atual é inútil para o incremento das ciências.
XII
     A lógica tal como é hoje usada mais vale para consolidar e per­petuar erros, fundados em noções vulgares, que para a indagação da verdade, de sorte que é mais danosa que útil.
XIII
     O silogismo não é empregado para o descobrimento dos princí­pios das ciências; é baldada a sua aplicação a axiomas intermediá­rios, pois se encontra muito distante das dificuldades da natureza. Assim é que envolve o nosso assentimento, não as coisas.
XIV
     O silogismo consta de proposições, as proposições de palavras, as palavras são o signo das noções. Pelo que, se as próprias noções (que constituem a base dos fatos) são confusas e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas depende pode pretender solidez. Aqui está por que a única esperança radica na verdadeira indução.
XV
     Não há nenhuma solidez nas noções lógicas ou físicas. Substân­cia, qualidade, ação, paixão, nem mesmo ser, são noções seguras. Muito menos ainda as de pesado, leve, denso, raro, úmido, seco, gera­ção, corrupção, atração, repulsão, elemento, matéria, forma e outras do gênero. Todas são fantásticas e mal definidas.
XVI
     As noções das espécies inferiores, como as de homem, cão, pomba, e as de percepção imediata pelos sentidos, como quente, frio, branco, negro, não estão sujeitas a grandes erros. Mas mesmo estas, devido ao fluxo da matéria e combinação das coisas, também por vezes se confundem. Tudo o mais que o homem até aqui tem usado são aberrações, não foram abstraídas e levantadas das coisas por procedimentos devidos.
XVII
     Não é menor que nas noções o capricho e a aberração na consti­tuição dos axiomas. Vigem aqui os mesmos princípios da indução vulgar. E isso ocorre em muito maior grau nos axiomas e proposições que se alcançam pelo silogismo.
XVIII
     Os descobrimentos até agora feitos de tal modo são que, quase só se apoiam nas noções vulgares. Para que se penetre nos estratos mais profundos e distantes da natureza, é necessário que tanto as noções quanto os axiomas sejam abstraídos das coisas por um méto­do mais adequado e seguro, e que o trabalho do intelecto se torne me­lhor e mais correto.
XIX
     Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a des­coberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a seguir, descobri­rem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado.
XX
     Na primeira das vias o intelecto deixado a si mesmo acompanha e se fia nas forças da dialética. Pois a mente anseia por ascender aos princípios mais gerais para aí então se deter. A seguir, desdenha a experiência. E tais males são incrementados pela dialética, na pompa de suas disputas.
XXI
     O intelecto, deixado a si mesmo, na mente sóbria, paciente e grave, sobretudo se não está impedida pelas doutrinas recebidas, tenta algo na outra via, na verdadeira, mas com escasso proveito. Porque o intelecto não regulado e sem apoio é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas.
XXII
     Tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e terminam nas formulações da mais elevada generali­dade. Mas é imenso aquilo em que discrepam. Enquanto que uma per­passa na carreira pela experiência e pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como cumpre. Aquela, desde o início, esta­belece certas generalizações abstratas e inúteis; esta se eleva gradual­mente àquelas coisas que são realmente as mais comuns na natureza.
XXIII
     Não é pequena a diferença existente entre os ídolos da mente hu­mana e as idéias [6] da mente divina, ou seja, entre opiniões inúteis e as verdadeiras marcas e impressões gravadas por Deus nas criaturas. tais como de fato se encontram.
XXIV
     De modo algum se pode admitir que os axiomas constituídos pela argumentação valham para a descoberta de novas verdades, pois a profundidade da natureza supera de muito o alcance do argumento. Mas os axiomas reta e ordenadamente abstraídos dos fatos particulares, estes sim, facilmente indicam e designam novos fatos particulares e, por essa via, tornam ativas as ciências.
XXV
     Os axiomas ora em uso decorrem de experiência rasa e estreita e a partir de poucos fatos particulares, que ocorrem com freqüência; e estão adstritos à sua extensão. Daí não espantar que não levem a novos fatos particulares. Assim, se caso alguma instância [7] não antes advertida ou cogitada se apresenta, graças a alguma distinção frívola procura-se salvar o axioma, quando o mais verdadeiro seria corrigi-lo.
XXVI
     Para efeito de explanação, chamamos à forma ordinária da ra­zão humana voltar-se para o estudo da natureza de antecipações da natureza (por se tratar de intento temerário e prematuro). E à que procede da forma devida, a partir dos fatos, designamos por interpretação da natureza.
XXVII
     As antecipações são fundamento satisfatório para o consenso,[8] pois, se todos os homens se tornassem da mesma forma insanos, poderiam razoavelmente entender-se entre si.
XXVIII
     Ainda mais, as antecipações são de muito mais valia para lograr o nosso assentimento, que as interpretações; pois, sendo coligidas a partir de poucas instâncias e destas as que mais familiarmente ocor­rem, desde logo empolgam o intelecto e enfunam a fantasia; enquanto que as interpretações, pelo contrário, sendo coligidas a partir de múl­tiplos fatos, dispersos e distanciados, não podem, de súbito, tocar o intelecto, de tal modo que, à opinião comum, podem parecer quase tão duras e dissonantes quanto os mistérios da fé.
XXIX
     Nas ciências que se fundam nas opiniões e nas convenções é bom o uso das antecipações e da dialética, já que se trata de submeter o assentimento e não as coisas.
XXX
     Mesmo que se reunissem, se combinassem e se conjugassem os engenhos de todos os tempos, não se lograria grande progresso nas ciências, através das antecipações, porque os erros radicais perpe­trados na mente, na primeira disposição, não se curariam nem pela excelência das operações nem pelos remédios subseqüentes.
XXXI
     Vão seria esperar-se grande aumento nas ciências pela superpo­sição ou pelo enxerto do novo sobre o velho. É preciso que se faça uma restauração da empresa a partir do âmago de suas fundações, se não se quiser girar perpetuamente em círculos, com magro e quase desprezível progresso.
XXXII
     A glória dos antigos, como a dos demais, permanece intata, pois não se estabelecem comparações entre engenhos e capacidades, mas de métodos. Não nos colocamos no papel de juiz, mas de guia.
XXXIII
     Seja dito claramente que não pode ser formulado um juízo corre­to nem sobre o nosso método nem sobre as suas descobertas pelo cri­tério corrente — as antecipações; pois não nos podem pedir o acolhi­mento do juízo cuja própria base está em julgamento.
XXXIV
     Não é, com efeito, empresa fácil transmitir e explicar o que pretendemos, porque as coisas novas são sempre compreendidas por analogia com as antigas.
XXXV
     Disse Bórgia, da expedição dos franceses à Itália, que vieram com o giz nas mãos para marcar os seus alojamentos, e não com armas para forçar passagem. Nosso propósito é semelhante: que a nossa doutrina se insinue nos espíritos idôneos e capazes. Não faze­mos uso da refutação quando dissentimos a respeito dos princípios, dos próprios conceitos e formas da demonstração.
XXXVI
     Resta-nos um único e simples método, para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas sé­ries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas.
XXXVII
     Coincidem, até certo ponto, em seu inicio, o nosso e o método daqueles que usaram da acatalepsia. Mas nos pontos de chegada, imensa distância nos separa e opõe. Aqueles, com efeito, afirmaram cabalmente que nada pode ser conhecido. De nossa parte, dizemos que não se pode conhecer muito acerca da natureza, com auxílio dos procedimentos ora em uso. E, indo mais longe, eles destroem a autori­dade dos sentidos e do intelecto, enquanto que nós, ao contrário, lhes inventamos e subministramos auxílios.
XXXVIII
     Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logra­do e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instau­ração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.
XXXIX
     São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro.[9]
XL
     A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consistem, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar.
XLI
     Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sen­tidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.
XLII
     Os ídolos da caverna [10] são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito [11] que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.
XLIII
     Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso,[12] e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coi­sas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o per­turbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.
XLIV
     Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzi­das e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos anti­gos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja acautelado.
XLV
     O intelecto humano, mercê de suas peculiares propriedades, facilmente supõe maior ordem e regularidade nas coisas que de fato nelas se encontram. Desse modo, como na natureza existem muitas coisas singulares e cheias de disparidades, aquele imagina paralelismos, correspondências e relações que não existem. Daí a suposição de que no céu todos os corpos devem mover-se em círculos perfeitos, rejeitando por completo linhas espirais e sinuosas, a não ser em nome. Daí, do mesmo modo, a introdução do elemento fogo com sua órbita, para constituir a quaderna com os outros três elementos que os senti­dos apreendem. Também de forma arbitrária se estabelece, para os chamados elementos, que o aumento respectivo de sua rarefação se processa em proporção de um para dez, e outras fantasias da mesma ordem. E esse engano prevalece não apenas para elaboração de teo­rias como também para as noções mais simples.
XLVI
     O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Gra­ças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrá­gio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez: “E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?” [13] Essa é a base de praticamente toda superstição, trate-se de astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha o que é bem mais freqüente —, negligenciam-nos e passam adian­te. Esse mal se insinua de maneira muito mais sutil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceito tudo impregna e reduz o que segue. até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a que nos referimos, o intelecto humano tem o erro peculiar e perpétuo de mais se mover e excitar pelos eventos afirmativos que pelos negativos, quando deveria rigorosa e sistematicamente atentar para ambos. Vamos mais longe: na constituição de todo axioma verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas.
XLVII
     O intelecto humano se deixa abalar no mais alto grau pelas coi­sas que súbita e simultaneamente se apresentam e ferem a mente e ao mesmo tempo costumam tomar e inflar a imaginação. E a partir disso passa a conceber e supor, conquanto que imperceptivelmente, tudo o mais, do mesmo modo que o pequeno número de coisas que ocupam a mente. Contudo, para cumprir o percurso até os fatos remotos e heterogêneos, pelos quais os axiomas se provam como pelo fogo — a não ser que duras leis e violenta autoridade o imponham , mostra-se tardo e inepto.
XLVIII
     O intelecto humano se agita sempre, não se pode deter ou repou­sar, sempre procura ir adiante. Mas sem resultado. Daí ser impensá­vel, inconcebível que haja um limite extremo e último do mundo. Antes, sempre ocorre como necessária a existência de mais algo além. Nem tampouco se pode cogitar de como a eternidade possa ter trans­corrido até os dias presentes, posto que a distinção geralmente aceita do infinito, como comportando uma parte já transcorrida e uma parte ainda por vir, não pode de modo algum subsistir, em vista de que se seguiria o absurdo de haver um infinito maior que outro, como se o infinito pudesse consumir-se no finito. Semelhante é o problema da divisibilidade da reta ao infinito, coisa impossível de ser pensada. Mas de maneira mais perniciosa se manifesta essa incapacidade da mente na descoberta das causas: pois, como os princípios universais da natureza, tais como são encontrados, devem ser positivos, não podem ter uma causa. Mas, mesmo assim, o intelecto humano, que se não pode deter, busca algo. Então, acontece que buscando o que está mais além acaba por retroceder ao que está mais próximo, seja, as causas finais, que claramente derivam da natureza do homem e não do universo. Aí está mais uma fonte que por mil maneiras concorre para a corrupção da filosofia. Há tanta imperícia e leviandade dessa espécie de filósofos, na busca das causas do que é universal, quanto desinteresse pelas causas dos fatos secundários e subalternos.[14]
XLIX
     O intelecto humano não é luz pura,[15] pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúme­ras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre impercep­tivelmente, se insinua e afeta o intelecto.
L
     Mas os maiores embaraços e extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma que as coisas que afetam os sentidos preponderam sobre as que, mesmo não o afetando de imediato, são mais importan­tes. Por isso, a observação não ultrapassa os aspectos visíveis das coi­sas, sendo exígua ou nula a observação das invisíveis. Também esca­pam aos homens todas as operações dos espíritos latentes nos corpos sensíveis. Permanecem igualmente desconhecidas as mudanças mais sutis de forma das partes das coisas mais grossas (o vulgo sói chamar a isso de alteração, quando na verdade se trata de translação) em espaços mínimos.[16] Até que fatos, como os dois que indicamos, não sejam investigados e esclarecidos, nenhuma grande obra poderá ser empreendida na natureza. E ainda a própria natureza do ar comum, bem como de todos os corpos de menor densidade (que são muitos), é quase por completo desconhecida. Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e enganador, nem mesmo os instrumentos des­tinados a ampliá-los e aguçá-los são de grande valia. E toda verda­deira interpretação da natureza se cumpre com instâncias e experi­mentos oportunos e adequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga a natureza e a própria coisa.
LI
     O intelecto humano, por sua própria natureza, tende ao abstrato, e aquilo que flui, permanente lhe parece. Mas é melhor dividir em par­tes a natureza que traduzi-la em abstrações. Assim procedeu a escola de Demócrito, que mais que as outras penetrou os segredos da nature­za. O que deve ser sobretudo considerado é a matéria, os seus esquematismos, os metaesquematismos, o ato puro, e a lei do ato, que é o movimento. As formas são simples ficções do espírito humano, a não ser que designemos por formas as próprias leis do ato.[17]
LII
     Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm origem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na incom­petência dos sentidos ou no modo de receber impressões.
LIII
     Os ídolos da caverna têm origem na peculiar constituição da alma e do corpo de cada um; e também na educação, no hábito ou em eventos fortuitos. Como as suas espécies são múltiplas e várias, indi­caremos aquelas com que se deve ter mais cuidado, por se tratar das que têm maior alcance na turbação da limpidez do intelecto.
LIV
     Os homens se apegam às ciências e a determinados assuntos, ou por se acreditarem seus autores ou descobridores, ou por neles muito se terem empenhado e com eles se terem familiarizado. Mas essa espé­cie de homens, quando se dedica à filosofia e a especulações de cará­ter geral, distorce e corrompe-as em favor de suas anteriores fanta­sias. Isso pode ser especialmente observado em Aristóteles que de tal modo submete a sua filosofia natural à lógica que a tornou quase inú­til e mais afeita a contendas. A própria estirpe dos alquimistas elabo­ra uma filosofia fantástica e de pouco proveito, porque fundada em alguns poucos experimentos levados a cabo em suas oficinas. Assim também Gilbert,[18] que, depois de laboriosamente haver observado o magneto, logo concebeu uma filosofia toda conforme ao seu principal interesse.
LV
     A maior e talvez a mais radical diferença que distingue os enge­nhos, em relação à filosofia e às ciências, está em que alguns são mais capazes e aptos para notar as diferenças das coisas, outros para as suas semelhanças. Com efeito, os engenhos constantes e agudos podem fixar, deter e dedicar a sua atenção às diferenças mais sutis. De outra parte, os engenhos altaneiros e discursivos reconhecem e combinam as mais gerais e sutis semelhanças das coisas. Mas tanto uns como outros podem facilmente incorrer no exagero, captando em um caso a graduação das coisas, em outro as aparências.
LVI
     É desse modo que se estabelecem as preferências pela Antigui­dade ou pelas coisas novas. Poucos são os temperamentos que conse­guem a justa medida, ou seja, não desprezar o que é correto nos anti­gos, sem deixar de lado as contribuições acertadas dos modernos. E é o que tem causado grandes danos tanto às ciências quanto à filosofia, pois faz-se o elogio da Antiguidade ou das coisas novas e não o seu julgamento. A verdade não deve, porém, ser buscada na boa fortuna de uma época, que é inconstante, mas à luz da natureza e da experiên­cia, que é eterna. Em vista disso, todo entusiasmo deve ser afastado e deve-se cuidar para que o intelecto não se desvie e seja por ele arreba­tado em seus juízos.
LVII
     O estudo da natureza e dos corpos em seus elementos simples fraciona e abate o intelecto, enquanto que o estudo da natureza e da composição e da configuração dos corpos o entorpece e desarticula. Isto se pode muito bem observar na escola de Leucipo e Demócrito, se se compara com as demais filosofias. Aquela, com efeito, de tal modo se preocupa com as partículas das coisas que negligencia a sua estrutura; as outras, por seu turno, ficam de tal modo empolgadas na consideração da estrutura que não penetram nos elementos simples da natureza. Assim, pois, se devem alternar ambas as formas de observa­ção e adotar cada uma por sua vez, para que se torne a um tempo penetrante e capaz e se possam afastar os inconvenientes apontados, bem como os ídolos deles provenientes.
LVIII
     Essa seja a prudência a ser adotada nas especulações para que se contenham e desalojem os ídolos da caverna, os quais provêm de al­guma disposição predominante no estudo, ou do excesso de síntese ou de análise, ou do zelo por certas épocas, ou ainda da magnitude ou pequenez dos objetos considerados. Todo estudioso da natureza deve ter por suspeito o que o intelecto capta e retém com predileção. Em vista disso, muito grande deve ser a precaução para que o intelecto se mantenha íntegro e puro.
LIX
     Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insi­nuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências sofisticas e inativas. As palavras, tomando quase sempre o sentido que lhes inculca o vulgo seguem a linha de divisão das coisas que são mais potentes ao intelecto vulgar. Contudo, quando o intelecto mais agudo e a observação mais diligente querem transferir essas linhas para que coincidam mais adequadamente com a natureza, as palavras se opõem. Daí suceder que as magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com freqüência, acabem em controvérsias em torno de palavras e nomes, caso em que melhor seria (conforme o uso e a sabedoria dos matemá­ticos) restaurar a ordem, começando pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente esse mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, posto que as próprias definições constam de palavras e as palavras engendram palavras. Donde ser necessário o recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries, como depois vamos enunciar, quando se expuser o método e o modo de constituição das noções e dos axiomas.
LX
     Os ídolos que se impõem ao intelecto através das palavras são de duas espécies. Ou são nomes de coisas que não existem (pois do mesmo modo que há coisas sem nome, por serem despercebidas, assim também há nomes por mera suposição fantástica, a que não correspondem coisas), ou são nomes de coisas que existem, mas confu­sos e mal determinados e abstraídos das coisas, de forma temerária e inadequada. À primeira espécie pertencem: a fortuna, o primeiro móvel, as órbitas planetárias, o elemento do fogo e ficções semelhan­tes, que têm origem em teorias vazias e falsas. Essa espécie de ídolos é a mais fácil de se expulsar, pois se pode exterminá-los pela cons­tante refutação e ab-rogação das teorias que os amparam. Mas a outra espécie é mais complexa e mais profundamente arraigada por se ter formado na abstração errônea e inábil. Tome-se como exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que pode assumir. Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de operações diversas que nada têm em comum ou que não são irredutí­veis. Significa, com efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo; tudo o que é em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência; tudo o que facilmente cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se divide e dispersa; tudo o que se une e junta facilmente; tudo o que facilmente adere a outro corpo e molha; tudo o que facilmente se reduz a liquido, se antes era sólido. De sorte que se pode predicar e impor a palavra úmido em um determinado senti­do, “a chama é úmida”; em outro, “o ar não é úmido”; em outro, “o pó fino é úmido”; e em outro, ainda, “o vidro é úmido”. Daí facil­mente transparece que esta noção foi abstraída de forma leviana ape­nas da água e dos líquidos correntes e vulgares, sem qualquer ade­quada verificação posterior
     Há, contudo, nas palavras certos graus de distorção e erro. O gê­nero menos nefasto é o dos nomes de substâncias particulares, em especial as de espécies inferiores, bem deduzidas. Assim as noções de greda e lodo são boas; a de terra, má. Mais deficientes são as palavras que designam ação, tais como: gerar, corromper, alterar. As mais prejudiciais são as que indicam qualidades (com exceção dos objetos imediatos da sensação), como: pesado, leve, tênue, denso, etc. Toda­via, em todos esses casos pode suceder que certas noções sejam um pouco melhores que as demais, como ocorre com as que designam coisas que os sentidos humanos alcançam com mais freqüência.
LXI
     Por sua vez, os ídolos do teatro não são inatos, nem se insinua­ram às ocultas no intelecto, mas foram abertamente incutidos e rece­bidos por meio das fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração. Porém, tentar e sustentar a sua refutação não seria consentâneo com o que vimos afirmando. Pois, se não estamos de acordo nem com os princípios nem com as demonstrações, não se ad­mite qualquer argumentação. O que, ademais, é um favor dos fados, pois dessa forma é respeitada a glória dos antigos. Nada se lhes sub­trai, já que se trata de uma questão de método. Um coxo (segundo se diz) no caminho certo, chega antes que um corredor extraviado, e o mais hábil e veloz, correndo fora do caminho, mais se afasta de sua meta, O nosso método de descobrir a verdadeira ciência é de tal sorte que muito pouco deixa à agudeza e robustez dos engenhos; mas, ao contrário, pode-se dizer que estabelece equivalência entre engenhos e intelectos. Assim como para traçar uma linha reta ou um círculo per­feito, perfazendo-os a mão, muito importam a firmeza e o desempe­nho, mas pouco ou nada importam usando a régua e o compasso. O mesmo ocorre com o nosso método. Ainda que seja de utilidade nula a refutação particular de sistemas, diremos algo das seitas e teorias e, a seguir, dos signos exteriores que denotam a sua falsidade; e, por úl­timo, das causas de tão grande infortúnio e tão constante e generali­zado consenso no erro. E isso para que se torne menos difícil o acesso à verdade e o intelecto humano com mais disposição se purifique e os ídolos possa derrogar.
LXII
     Os ídolos do teatro, ou das teorias, são numerosos, e podem ser, e certamente o serão, ainda em muito maior número. Com efeito, se já por tantos séculos não tivesse a mente humana se ocupado de religião e teologia; e se os governos civis (principalmente as monarquias) não tivessem sido tão adversos para com as novidades, mesmo nas espe­culações filosóficas a tal ponto que os homens que as tentam sujei­tam-se a riscos, ao desvalimento de sua fortuna, e, sem nenhum prê­mio, expõem-se ao desprezo e ao ódio; se assim não fosse, sem dúvida, muitas outras seitas filosóficas e outras teorias teriam sido introduzidas, tais como floresceram tão grandemente diversificadas entre os gregos. Pois, do mesmo modo que se podem formular muitas teorias do céu[19] a partir dos fenômenos celestes; igualmente, com mais razão, sobre os fenômenos de que se ocupa a filosofia se podem fundar e constituir muitos dogmas. E acontece com as fábulas deste teatro o mesmo que no teatro dos poetas. As narrações feitas para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras narrações tomadas da história.
     Mas em geral supõe-se para matéria da filosofia ou muito a par­tir de pouco ou pouco a partir de muito. Assim, a filosofia se acha fundada, em ambos os casos, numa base de experiência e história natural excessivamente estreita e se decide a partir de um número de dados muito menor que o desejável. Assim, a escola racional [20] se apodera de um grande número de experimentos vulgares, não bem comprovados e nem diligentemente examinados e pensados, e o mais entrega à meditação e ao revolver do engenho.
     Há também outra espécie de filósofos que se exercitaram, de forma diligente e acurada, em um reduzido número de experimentos e disso pretenderam deduzir e formular sistemas filosóficos acabados, ficando, estranhamente, os fatos restantes à imagem daqueles poucos distorcidos.
     E há uma terceira espécie de filósofos, os quais mesclam sua filo­sofia com a teologia e a tradição amparada pela fé e pela veneração das gentes. Entre esses, há os que, levados pela vaidade, pretenderam estabelecer e deduzir as ciências da invocação de espíritos e gênios.[21] Dessa forma, são de três tipos as fontes dos erros e das falsas filoso­fias: a sofística, a empírica e a supersticiosa.
LXIII
     O mais conspícuo exemplo da primeira é o de Aristóteles, que corrompeu com sua dialética a filosofia natural: ao formar o mundo com base nas categorias; ao atribuir à alma humana, a mais nobre das substâncias, um gênero extraído de conceitos segundos;[22] ao tra­tar da questão da densidade e da rarefação, com que se indica se os corpos ocupam maiores ou menores extensões, conforme suas dimen­sões, por meio da fria distinção de potência e ato; ao conferir a cada corpo apenas um movimento próprio, afirmando que, se o corpo par­ticipa de outro movimento, este provém de uma causa externa; ao impor à natureza das coisas inumeráveis distinções arbitrárias, mostrando-se sempre mais solícito em formular respostas e em apre­sentar algo positivo nas palavras do que a verdade íntima das coisas. Isso se torna mais manifesto quando se compara a sua filosofia com as filosofias que eram mais celebradas entre os gregos. Sem dúvida, as homeomerias, de Anaxágoras; os átomos, de Leucipo e Demócrito; o céu e a terra, de Parmênides; a discórdia e a amizade, de Empédocles; a resolução dos corpos na adiáfora natureza do fogo e o seu retorno ao estado sólido, de Heráclito, sabem a filosofia natural, a natureza das coisas, experiência e corpos.[23] Mas na Física, de Aristóteles, na maior parte dos casos, não ressoam mais que as vozes de sua dialética. Retoma-a na sua Metafísica, sob nome mais solene, e mais como rea­lista que nominalista. A ninguém cause espanto que no Livro dos Animais e nos Problemas, e em outros tratados, ocupe-se freqüentemente de experimentos. Pois Aristóteles estabelecia antes as conclu­sões, não consultava devidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidi­do, submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência.
LXIV
     A escola empírica de filosofia engendra opiniões mais disformes e monstruosas que a sofistica ou racional. As suas teorias não estão baseadas nas noções vulgares (pois estas, ainda que superficiais, são de qualquer maneira universais e, de alguma forma, se referem a um grande número de fatos), mas na estreiteza de uns poucos e obscuros experimentos. Por isso, uma tal filosofia parece, aos que se exerci­taram diariamente nessa sorte de experimentos, contaminando a sua imaginação, mais provável, e mesmo quase certa; mas aos demais apresenta-se como indigna de crédito e vazia. Há na alquimia, nas suas explicações, um notável exemplo do que se acaba de dizer. Em nossos dias não se encontram muitos desses casos, exceção feita tal­vez à filosofia de Gilbert. Contudo, em relação a tais sistemas filosófi­cos, não se pode renunciar à cautela. Desde já, prevenimos e augura­mos que quando os homens, conduzidos por nossos conselhos, se voltem de verdade para a experiência, afastando-se das doutrinas sofisticas, pode ocorrer que, devido à impaciência e à precipitação do intelecto, saltem ou mesmo voem às leis gerais e aos princípios das coisas. Um grande perigo, pois, pode advir dessas filosofia e contra ele nos devemos acautelar desde já.
LXV
     Mas a corrupção da filosofia, advinda da superstição e da mescla com a teologia, vai muito além e causa danos tanto aos sistemas inteiros da filosofia quanto às suas partes, pois o intelecto humano não está menos exposto às impressões da fantasia que às das noções vulgares. A filosofia sofistica, afeita que é às disputas, aprisiona o intelecto, mas esta outra, fantasiosa e inflada, e quase poética, perde-o muito mais com suas lisonjas. Pois há no homem uma ambição inte­lectual que não é menor que a ambição da vontade. Isso acontece, sobretudo, nos espíritos preclaros e elevados.
     Na Grécia, encontram-se exemplos típicos de tais filosofias, sendo o caso, antes dos demais, de Pitágoras, onde aparecem aliadas a uma superstição tosca e grosseira. Mais perigoso e sutil é o exemplo de Platão e sua escola.[24] Encontra-se também este mal, parcialmente, nas restantes filosofias, onde são introduzidas formas abstratas, cau­sas finais e causas primeiras, omitindo-se quase sempre as causas intermediárias. Diante disso, toda precaução deve ser tomada, pois nada há de pior que a apoteose dos erros, e como uma praga para o intelecto a veneração votada às doutrinas vãs. Alguns modernos incorreram em tal inanidade que, com grande leviandade, tentaram construir uma filosofia natural sobre o primeiro capítulo do Gêneses. sobre o Livro de Jó e sobre outros livros das Sagradas Escrituras, buscando assim os mortos entre os vivos.[25] É da maior importância coibir-se e frear esta inanidade, tanto mais que dessa mescla danosa de coisas divinas e humanas não só surge uma filosofia absurda, como também uma religião herética. Em vista do que é sobremodo salutar outorgar-se, com sóbrio espírito, à fé o que à fé pertence.
LXVI
     Já falamos da falsa autoridade das filosofias fundadas nas noções vulgares, sobre poucos experimentos e na superstição. Deve-se falar, igualmente, da falsa direção que toma a especulação particularmente na filosofia natural. O intelecto humano se deixa contagiar pela visão dos fenômenos que acontecem nas artes mecânicas, onde os corpos sofrem alterações por um processo de composição e separa­ção, daí surgindo o pensamento de que algo semelhante se passa na própria natureza. Aqui tem a sua origem aquela ficção dos elementos e de seu concurso para a constituição dos corpos naturais. De outro lado, quando o homem contempla o livre jogo da natureza, logo chega ao descobrimento das espécies naturais, dos animais, das plan­tas e dos minerais; donde ocorre pensar que também na natureza exis­tem formas primárias das coisas, que a própria natureza tende a tor­nar manifestas, e que a variedade dos indivíduos tem sua origem nos obstáculos e desvios que a natureza sofre em seu trabalho ou no con­flito de diversas espécies ou na superposição de uma sobre a outra. A primeira dessas cogitações nos valeu as qualidades elementares primárias, a segunda, as propriedades ocultas e as virtudes específi­cas. Ambas constituem um resumo das explicações sem sentido, com as quais se entretém o espírito, distanciando-se das coisas mais importantes.
     É maior o êxito do trabalho que os médicos dedicam ao estudo das qualidades secundárias das coisas e de suas operações como a atração, a repulsão, a rarefação e a condensação, a dilatação, a contração, a dissipação e a maturação e outras análogas. E tirariam muito maior proveito, se não comprometessem, com os conceitos mencionados de qualidades elementares e de virtudes específicas, os fenômenos bem observados, reduzindo-os a qualidades primárias e às suas combinações sutis e incomensuráveis, esquecendo-se de levá­-los, com maior e mais diligente observação, até às qualidades tercei­ras ou quartas, sem romper intempestivamente a linha da observação. Virtudes, se não idênticas, pelo menos semelhantes, devem ser buscadas não apenas nas medicinas para o corpo humano, mas também nas mudanças de todos os demais corpos naturais.
     Maior prejuízo acarreta o fato de se limitar a reflexão e a indaga­ção aos princípios quiescentes dos quais derivam as coisas, e não con­siderar os princípios motores pelos quais se produzem as coisas, já que os primeiros servem aos discursos, os segundos à prática. Tam­pouco, têm qualquer valor as distinções vulgares do movimento que sob o nome de geração, corrupção, aumento, diminuição, alteração e translação se admitem na filosofia natural. Pois, em última instância, não dizem mais que o seguinte: há translação quando um corpo, sem sofrer outra mudança, muda de lugar; alteração quando, sem mudar de lugar, nem espécie, muda de qualidade; se, em virtude da mudança, a massa e quantidade de corpo não permanecem as mesmas, então, há aumento ou diminuição; e se a mudança é de tal ordem que trans­forma a própria espécie e substância da coisa em outra diferente, então há geração e corrupção. Mas tudo isso é meramente popular e não penetra a natureza, pois indica as medidas e os períodos e não as espécies de movimento. Indica até onde e não como e de que fonte surgem. E tais conceitos nada dizem acerca da tendência natural dos corpos e nem do processo de suas partes. Eles apenas são aplicáveis quando o movimento introduz modificações evidentes na coisa, a ponto de serem imediatamente sensíveis, e é dessa forma que também estabelecem as suas distinções. Mesmo quando procuram dizer algo a respeito das causas do movimento e estabelecer uma divisão em. virtu­de das mesmas, apresentam, revelando uma absoluta negligência, a distinção entre movimento natural e violento, que também tem sua origem em conceitos vulgares, posto que realmente, todo movimento violento é também natural, pelo fato de um agente externo reduzir uma coisa da natureza a um estado diferente do que antes tinha.
     Mas, deixando de lado tais distinções, pode-se constatar que representam verdadeiras espécies de movimento físico os seguintes casos: quando se observa que há nos corpos um esforço para o mútuo contato de forma a não permitir que se rompa a continuidade da natu­reza, ou se desloquem, ou se produza o vácuo; quando se manifesta nos corpos tendência a recobrar o seu volume natural ou extensão de modo que, se se comprimem, diminuindo-os, ou se se distendem, aumentando-os, agem de forma a recuperar e voltar ao seu primitivo volume e extensão; ou quando se diz que há nos corpos uma tendên­cia à agregação das massas de natureza semelhante e que os corpos densos tendem à esfera terrestre e os leves ao espaço celeste, etc. Os primeiros movimentos enumerados, por sua vez, são meramente lógicos e escolásticos, como fica manifesto, ao serem comparados com estes últimos.
     Não é menos ruinoso que em suas filosofias e especulações os seus esforços se consumam na preocupação e na investigação dos princípios e das causas últimas da natureza, pois toda a possibilidade e utilidade operativa se concentram nos princípios intermediários. A conseqüência disso é que os homens não cessam de fazer abstrações sobre a natureza, ate atingir a matéria potencial e informe; nem ces­sam de dissecá-la até chegar ao átomo. Tudo isso, ainda que corres­pondesse à verdade, pouco serviria ao bem-estar do homem.
LXVII
     Também se deve acautelar o intelecto contra a intemperança dos sistemas filosóficos no livrar ou coibir o assentimento, porque tal intemperança concorre para firmar os ídolos, e, de certo modo, os faz perpétuos, sem possibilidades de remoção.
     Há no caso um duplo excesso: o primeiro é o dos que se pronun­ciam apressadamente, convertendo a ciência em uma doutrina posi­tiva e doutoral; e outro é o dos que introduziram a acatalepsia e tor­naram a investigação vaga e sem um termo. O primeiro deprime, o segundo enerva o intelecto. Assim, a filosofia de Aristóteles, depois de destruir outras filosofias (à maneira dos otomanos, com seus irmãos) com suas pugnazes refutações, pronunciou-se acerca de cada uma das questões. Depois, inventou ele mesmo, ao seu arbítrio, questões para as quais a seguir apresentou soluções, e dessa forma tudo ficou defi­nido e estabelecido e é o que passou a ser atendido ainda hoje por seus sucessores.
     A escola de Platão, de sua parte, introduziu a acatalepsia, a prin­cípio como ardil e ironia, por desprezo para com os velhos sofistas, Protágoras, Hípias e os demais, os quais nada temiam mais que apa­rentar terem dúvidas a respeito de algo. Mas a Nova Academia trans­formou a acatalepsia em dogma e dela fez profissão. E, ainda que esta seja uma atitude mais moderada que a dos que se achavam no direito de se repronunciarem sobre tudo já que os acadêmicos dizem que não pretendem confundir a investigação (como o fizeram Pirro e os céticos) e que se limitam ao provável, quando de fato nada aceitavam como verdadeiro —, contudo, quando o espírito humano se desespera da busca da verdade, o seu interesse por todas as coisas se torna débil; daí resultando que os homens passam a preferir as disputas e os discursos amenos, distantes da realidade, em vez de se comprome­terem com rigor na investigação. Contudo, como dissemos a principio e sustentamos sempre, os sentidos e o intelecto humano, pela sua fra­queza, não hão de ser desmerecidos em sua autoridade, mas, ao contrário, devem ser providos de auxílios.
LXVIII
     Já falamos de todas as espécies de ídolos e de seus aparatos. Por decisão solene e inquebrantável todos devem ser abandonados e abju­rados. O intelecto deve ser liberado e expurgado de todos eles, de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa sobre as ciências. possa parecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não se permite entrar senão sob a figura de criança.[26]
LXIX
     As demonstrações falhas são as fortificações e as defesas dos ídolos. E as que nos ensina a dialética não fazem muito mais que subordinar a natureza ao pensamento humano e o pensamento huma­no às palavras. As demonstrações, na verdade, são como que filoso­fias e ciências em potência, porque, conforme sejam estabelecidas mal ou corretamente instituídas, assim também serão as filosofias e as especulações. Errados e incompetentes são os que seguem o processo que vai dos sentidos e das coisas diretamente aos axiomas e as conclusões. Esse processo consiste de quatro partes e quatro igualmente são seus defeitos. Em primeiro lugar. as próprias impressões dos sentidos são viciosas; os sentidos não só desencaminham como levam ao erro É pois necessário que se retifiquem os descaminhos e se corrijam os erros. Em segundo lugar, as noções são mal abstraídas das impressões dos sentidos, ficando indeterminadas e confusas. quando deveriam ser bem delimitadas e definidas. Em terceiro lugar. é imprópria a indução que estabelece os princípios das ciências por simples enumeração, sem o cuidado de proceder àquelas exclusões, resoluções ou separações que são exigidas pela natureza. Por último, esse método de invenção e de prova, que consiste em primeiro se determinarem os princípios gerais e, a partir destes, aplicar e provar os princípios intermediários, é a matriz de todos os erros e de todas as calamidades que recaem sobre as ciências. Mas desse assunto, que tocamos de passagem, trataremos mais amplamente quando propu­sermos o verdadeiro método de interpretação da natureza, depois de cumprida esta espécie de expiação e purgação da mente.
LXX
     A melhor demonstração é de longe, a experiência, desde que se atenha rigorosamente ao experimento. Se procuramos aplicá-la a outros fatos tidos por semelhantes, a não ser que se proceda de forma correta e metódica, é falaciosa. Mas o modo de realizar experimentos hoje em uso é cego e estúpido. Começam os homens a vagar [27] sem rumo fixo, deixando-se guiar pelas circunstâncias; vêem-se rodeados de uma multidão de fatos, mas sem qualquer proveito; ora se entu­siasmam, ora se distraem; presumem sempre haver algo mais a ser descoberto. Dessa forma, ocorre que os homens realizam os experi­mentos levianamente, como em um jogo, variando pouco os experi­mentos já conhecidos e, se não alcançam resultados, aborrecem-se e põem de lado os seus desígnios. E mesmo os que se dedicam aos expe­rimentos com mais seriedade, tenacidade e esforço acabam restrin­gindo o seu trabalho a apenas um experimento particular. Assim fez Gilbert com o magneto, e os alquimistas com o ouro. Um tal modo de proceder é tão inexperto quanto superficial, pois ninguém investiga com resultado a natureza de uma coisa apenas naquela própria coisa: é necessário ampliar a investigação até as coisas mais gerais.[28]
     E mesmo quando conseguem estabelecer formulações científicas ou teóricas, a partir dos seus experimentos, demonstram uma disposi­ção intempestiva e prematura de se voltarem para a prática.[29] Proce­dem dessa forma não apenas pela utilidade e pelos frutos que essa prática propicia, como também para obter uma certa garantia de que não serão infrutíferas as investigações subseqüentes e, ainda, para que as suas ocupações sejam mais reputadas pelos demais. Por isso acaba acontecendo com eles o que aconteceu a Atalanta:[30] desviam-se de seu caminho, para recolherem os frutos de ouro, interrompendo a cor­rida e deixando escapar a vitória. Para se topar com o verdadeiro caminho da experiência e a partir daí se conseguir a produção de novas obras, é necessário tomar como exemplos a sabedoria e a ordem divinas. Deus, com efeito, no primeiro dia da criação criou somente a luz, dedicando-lhe todo um dia e não se aplicando nesse dia a nenhuma obra material. Da mesma forma, em qualquer espécie de experiência, deve-se primeiro descobrir as causas e os axiomas verdadeiros, buscando os axiomas lucíferos e não os axiomas frutí­feros.[31] Pois os experimentos, quando corretamente descobertos e constituídos, informam não a uma determinada e estrita prática, mas a uma série contínua, e desencadeiam na sua esteira bandos e turbas de obras. Mais adiante falaremos dos verdadeiros caminhos da expe­riência, que, por sua vez, não se encontram menos obstruídos e inter­ceptados que os do juízo; por ora falaremos da experiência vulgar. considerando-a como uma má espécie de demonstração. Mas, para o momento, a ordem das coisas exige que falemos algo mais acerca dos signos a que antes nos referimos graças aos quais se pode concluir que as filosofias e as especulações ora em uso andam muito mal —, como também das causas desse fato, à primeira vista espan­toso e inacreditável. O conhecimento dos signos prepara o assenti­mento, e a explicação de suas causas dissipa qualquer sombra de mi­lagre. Ambas as coisas concorrem para a extirpação, de maneira fácil e suave, dos ídolos do intelecto.
LXXI
     As ciências que possuímos provieram em sua maior parte dos gregos. O que os escritores romanos, árabes ou os mais recentes acrescentaram não é de monta nem de muita importância; de qual­quer modo, está fundado sobre a base do que foi inventado pelos gre­gos. Contudo, a sabedoria [32] dos gregos era professoral [33] e pródiga em disputas — que é um gênero dos mais adversos à investigação da verdade. Desse modo, o nome de sofistas, que foi aplicado depreciati­vamente aos que se pretendiam filósofos e que acabou por designar os antigos retores, Górgias, Protágoras, Hípias e Polo, compete igual­mente a Platão, Aristóteles, Zenão, Epicuro, Teofrasto; e aos seus sucessores Crisipo, Carnéades, e aos demais. Entre eles havia apenas esta diferença: os primeiros eram do tipo errante e mercenário, per­corriam as cidades, ostentando a sua sabedoria e exigindo estipêndio; os outros, do tipo mais solene e comedido, tinham moradas fixas, abriram escolas e ensinaram a filosofia gratuitamente. Mas ambos os gêneros, apesar das demais disparidades, eram professorais e favore­ciam as disputas, e dessa forma facilitavam e defendiam seitas e here­sias filosóficas, e as suas doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio, de Platão) palavras de velhos ociosos a jovens ignorantes.[34] Mas os mais antigos dos filósofos gregos, Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Parmênides, Heráclito, Xenófanes, Filolau e outros (omitimos Pitágoras, por se ter entregue à supersti­ção), não abriram escolas, ao que saibamos: ao contrário, e, no maior silêncio, com rigor e simplicidade, vale dizer, com menor afetação e aparato, se consagraram à investigação da verdade. E a nosso juízo, melhor se saíram, só que suas obras, com o decorrer do tempo, foram sendo ofuscadas por outras mais superficiais, mas mais afeitas à capacidade e ao gosto do vulgo; pois o tempo, como o rio, trouxe-nos as coisas mais leves e infladas, submergindo o mais pesado e consis­tente. Contudo, nem mesmo eles foram imunes aos vícios de seu povo, pois propendiam mais que o desejável à ambição e à vaidade de fun­darem uma seita e captarem a aura popular. Nada se há de esperar, com efeito, da busca da verdade, quando distorcida por tais inanida­des. E, a propósito, não se deve omitir aquela sentença, ou melhor, vaticínio, do sacerdote egípcio a respeito dos gregos: “Sempre serão crianças, não possuirão nem a antiguidade da ciência, nem a ciência da Antiguidade”.[35] Os gregos, com efeito, possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos para tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua sabedoria é farta em palavras, mas estéril de obras. Aí está por que não se mostram favoráveis os signos [36] que se observam na gente e na fonte de que provém a filosofia ora em uso.
LXXII
     Os signos que se podem retirar das características do tempo e da idade não são muito melhores que os das características do lugar e da nação. Naquela época era limitado e superficial o conhecimento his­tórico e geográfico, o que é muito grave sobretudo para os que tudo depositam na experiência. Não possuíam, digna desse nome, uma his­tória que remontasse aos mil anos, e que se não reduzisse a fábulas e rumores da Antiguidade. Na verdade, conheciam apenas uma exígua parte dos países e das regiões do mundo. Chamavam indistintamente de citas a todos os povos setentrionais e de celtas a todos os ociden­tais. Nada conheciam das regiões africanas, situadas além da Etiópia setentrional, nem da Ásia de além Ganges, e muito menos ainda das províncias do Novo Mundo, de que nada sabiam, nem de ouvido, nem de qualquer tradição certa e constante. E mais, julgavam inabitáveis muitas zonas e climas em que vivem e respiram inumeráveis povos. As viagens de Demócrito, Platão, Pitágoras, que não eram mais que excursões suburbanas, eram celebradas como grandiosas. Em nossos tempos, ao contrário, tornaram-se conhecidas não apenas muitas partes do Novo Mundo, como também todos os extremos limites do Mundo Antigo, e assim é que o número de possibilidades de experi­mentos foi incrementado ao infinito. Enfim, se se devem interpretar os signos à maneira dos astrólogos, os que se podem retirar do tempo de nascimento e de concepção daquelas filosofias indicam que nada de grande delas se pode esperar.
LXXIII
     De todos os signos nenhum é mais certo ou nobre que o tomado dos frutos. Com efeito, os frutos e os inventos são como garantias e fianças da verdade das filosofias. Ora, de toda essa filosofia dos gre­gos e todas as ciências particulares dela derivadas, durante o espaço de tantos anos, não há um único experimento de que se possa dizer que tenha contribuído para aliviar e melhorar a condição humana, que seja verdadeiramente aceitável e que se possa atribuir às especu­lações e às doutrinas da filosofia. É o que ingênua e prudentemente reconhece Celso [37] ao falar que primeiro se fizeram experimentos em medicina, e depois sobre eles os homens construíram os sistemas filo­sóficos, buscando e assinalando as causas, e não inversamente, ou seja, que da descoberta das causas se tenham estabelecido e deduzido os experimentos da medicina. Por isso não deve parecer estranho que entre os egípcios, que divinizavam e consagravam os inventores, hou­vesse mais imagens de animais que de homens, pois os animais com seu instinto natural produziram muito no caminho de descobertas úteis, enquanto os homens, com os seus discursos e ilações racionais, pouco ou nada concluíram.
     Os alquimistas com sua atividade fizeram algumas descobertas, mas como que por acaso e pela variação dos experimentos (como fazem com freqüência os mecânicos), não por arte e com método, e isso porque a sua atividade tende mais a confundir os experimentos que a estimulá-los. Mesmo aqueles que se dedicaram à chamada magia natural fizeram algumas descobertas, mas poucas em número e sobretudo superficiais e frutos da impostura. Devemos, em suma, aplicar à filosofia o princípio da religião, que quer que a fé se mani­feste pelas obras, estabelecendo assim que um sistema filosófico seja julgado pelos frutos que seja capaz de dar; se é estéril deve ser refu­tado como coisa inútil, sobretudo se em lugar de frutos bons como os da vinha e da oliva produz os cardos e espinhos das disputas e das contendas.
LXXIV
     Outros signos se podem retirar do desenvolvimento e do pro­gresso da filosofia e das ciências, porque aquilo que tem o seu funda­mento na natureza cresce e se desenvolve, mas o que não tem outro fundamento que a opinião varia, mas não progride. Por isso, se aque­las doutrinas em vez de serem, como são, comparáveis a plantas des­pojadas de suas raízes tivessem aprofundado suas raízes no próprio seio da natureza e dela tivessem retirado a própria substância, as ciências não teriam permanecido por dois mil anos estagnadas no seu estádio originário; e quase no mesmo estado permanecem, sem qual­quer progresso notável. Dessa forma. foram pouco a pouco decli­nando à medida que se afastaram dos primeiros autores que as fize­ram florescer. Nas artes mecânicas, que são fundadas na natureza e se enriquecem das luzes da experiência, vemos acontecer o contrário, e essas (desde que cultivadas), como que animadas por um espírito, continuamente se acrescentam e se desenvolvem, de inicio grosseiras, depois cômodas e aperfeiçoadas, e em contínuo progresso.
LXXV
     Deve-se considerar ainda um outro signo (se se deve colocar entre os signos um fato que é mais uma prova e entre as provas, ainda, a mais certa), seja, a confissão daqueles autores que ora estão em grande voga. De fato, mesmo aqueles que com tanta confiança pronunciam o seu juízo sobre a realidade, mesmo eles, quando mais conscienciosos, põem-se a lamentar a respeito da obscuridade das coisas, da sutileza da natureza, da fraqueza do intelecto humano. Ora, se se limitassem a isso, certamente os mais tímidos seriam dissuadidos de ulteriores investigações, mas os que têm o engenho mais ála­cre e confiante receberiam mais incitamento e sugestão para progre­direm ulteriormente. Mas, não contentes de falarem deles próprios, põem fora dos limites do possível tudo o que tenha permanecido igno­rado e inatingível para si e para os seus mestres, e declaram-no incog­noscível e irrealizável, quase sob a autoridade da própria arte. Com suma presunção e malignidade fazem de sua fraqueza razão de calú­nia para com a natureza e desespero para com todos os demais. Assim, a Nova Academia professou a acatalepsia e condenou os ho­mens à perpétua ignorância. Daí surge a opinião de que as formas, que são as verdadeiras diferenças das coisas, isto é, as leis efetivas do ato puro, são impossíveis de serem descobertas, porque colocadas além de qualquer alcance humano. Daí surgem as opiniões, acolhidas na parte ativa e operativa da ciência, de que o calor do sol e o do fogo são diferentes por natureza; que tendem a tolher na humanidade a esperança de poder extrair ou construir, por meio do fogo, qualquer coisa de semelhante ao que acontece na natureza.[38] E ainda mais, que a composição é obra do homem, enquanto que a mistura é obra apenas da natureza: o que equivale a tolher toda esperança de poder realizar, com meios artificiais, os processos de geração e de transformação dos corpos naturais. Por este signo não deverá ser difícil per­suadir os homens a não misturarem as suas sortes e fados com dog­mas não apenas desesperados, mas destinados à desesperação.
LXXVI
     Merece ainda ser considerada como signo a grande e perpétua disparidade de idéias que tem reinado entre os filósofos, e a própria variedade das escolas de filosofia. Essa disparidade mostra que a via que conduz dos sentidos ao intelecto não foi bem traçada, já que a própria matéria da filosofia, ou seja, a natureza, foi rompida e divi­dida em tantos e tão diversos erros. Em tempo mais recente, as dissen­ções e as disparidades de pontos de vista em torno dos próprios prin­cípios da filosofia e das filosofias parece terem cessado; mas restam ainda inumeráveis problemas e controvérsias nas várias partes da filosofia, donde resulta claro que não há nada de certo e de rigoroso nem nas doutrinas filosóficas nem nos métodos de demonstração.
LXXVII
     Crê-se comumente que a filosofia de Aristóteles obteve o con­senso universal pelo fato de que, quando de sua divulgação, todas as outras filosofias dos antigos morriam ou desapareciam, e pelo fato de que nos tempos subseqüentes não se encontrou nada melhor; dessa forma, a filosofia aristotélica parece tão bem fundada e estabelecida, pois canalizou para si o tempo antigo e o tempo moderno. A isso se responde: primeiro, o que se pensa em relação à cessação das antigas filosofias depois da divulgação das obras de Aristóteles é falso, por­que muito tempo depois, até a época de Cícero e mesmo nos séculos seguintes, as obras dos antigos filósofos ainda subsistiram. Mas, depois, no tempo das invasões bárbaras do Império Romano, após toda doutrina humana ter, por assim dizer, naufragado, então, se conservaram apenas as doutrinas de Aristóteles e de Platão, como tá­buas feitas de matéria mais leve e menos sólida, flutuando no curso dos tempos. Segundo: por pouco que se aprofunde tal ponto, também o argumento do consenso universal vai-se mostrar falho, O verda­deiro consenso é, antes de tudo, uma coincidência de juízos livres sobre uma questão precedentemente examinada. Mas, pelo contrário, a grande massa dos que convêm na aprovação de Aristóteles é escra­va do prejuízo da autoridade de outros, a tal ponto que se deveria falar, mais que de consenso, de zelo de sequazes e de espírito de asso­ciação. E mesmo no caso em que tenha havido verdadeiro e aberto consenso, o consenso está sempre longe de se constituir em autori­dade verdadeira e sólida, mas faz, ao contrário, nascer uma vigorosa opinião em relação à opinião oposta. Com efeito, o pior auspício é o que deriva do consenso nas coisas intelectuais, excetuadas a política e a teologia, para as quais, ao contrário, há o direito de sufrágio.[39] A muitos apraz só o que tolhe a imaginação e aprisiona o intelecto pelos laços dos conceitos vulgares, como já foi dito antes.[40] Vem a propó­sito aquele dito de Fócion que, dos costumes, pode ser transposto às questões intelectuais: “Os homens devem perguntar que coisa disse­ram ou fizeram de mal quando o povo os enche de apoio e aplau­so”.[41] Este é, pois, um signo dos mais desfavoráveis. Concluamos dizendo que os signos da verdade e da sensatez das filosofias e das ciências, ora em uso, são péssimos, quer se procurem nas suas ori­gens, nos seus frutos, nos seus progressos, nas confissões dos autores ou no consenso.
LXXVIII
     Tratemos agora das causas dos erros e de sua persistência que se prolongou por séculos. Elas são muitas e muito poderosas. Em vista disso, não há motivo para se admirar de que tenham escapado e te­nham permanecido ocultas dos homens as coisas que vão agora ser expostas. O que seria de causar espanto é como, finalmente, tenham podido cair na mente de um determinado mortal para serem objeto de suas reflexões; o que, de resto (segundo cremos), foi mais uma ques­tão de sorte que de excelência de alguma faculdade. Deve ser tido mais como parto do tempo que parto do engenho.[42]
     Bem consideradas as coisas, um número tão grande de séculos reduz-se a um lapso efetivamente exíguo. Das vinte e cinco centúrias em que mais ou menos estão compreendidos a história e o saber humano, apenas seis podem ser escolhidas e apontadas como tendo sido fecundas para as ciências ou favoráveis ao seu desenvolvimento. No tempo como no espaço há regiões ermas e solidões. De fato só podem ser levados em conta três períodos ou retornos na evolução do saber:[43] um, o dos gregos; outro, o dos romanos e, por último, o nosso, dos povos ocidentais da Europa; a cada um dos quais se pode atribuir no máximo duas centúrias de anos. A Idade Média, em rela­ção à riqueza e fecundidade das ciências, foi uma época infeliz. Não há, com efeito, motivos para se fazer menção nem dos árabes, nem dos escolásticos. Estes, nos tempos intermédios, com seus numerosos tratados mais atravancaram as ciências que concorreram para aumentar-lhes o peso. Por isso, a primeira causa de um tão parco progresso das ciências deve ser buscada e adequadamente localizada no limitado tempo a elas favorável.
LXXIX
     Em segundo lugar, surge uma causa de grande importância, sob todos os aspectos, a saber, mesmo nas épocas em que, bem ou mal, floresceram o engenho humano e as letras, a filosofia natural ocupou parte insignificante da atividade humana. E leve-se em conta que a filosofia natural deve ser considerada a grande mãe das ciências. Todas as artes e ciências, uma vez dela desvinculadas, podem ser bru­nidas e amoldadas para o uso, mas não podem crescer.[44] É manifesto que desde o momento em que a fé cristã foi aceita e deitou raízes no espírito humano, a grande maioria dos melhores engenhos se consa­grou à teologia, e para isso concorreram poderosamente os prêmios e toda sorte de estímulos a eles reservados. E o cultivo da teologia ocu­pou principalmente o terceiro lapso de tempo, o nosso, isto é, o dos povos ocidentais da Europa; tanto mais que no mesmo período come­çaram a florescer as letras, e as controvérsias a respeito de religião começaram a se propagar. Na idade anterior, no segundo período, o correspondente aos romanos, as mais significativas reflexões e os melhores esforços se ocuparam e se consumiram na filosofia moral (que entre os pagãos substituía a teologia) e, ainda, os talentos daque­le tempo se dedicaram aos assuntos civis, necessidade oriunda da pró­pria magnitude do Império Romano, que exigia a dedicação de um grande número de homens. Mesmo naquela idade em que se viu flo­rescer ao máximo, entre os gregos, a filosofia natural corresponde a uma pequena parte, não contínua, de tempo. Nos tempos mais anti­gos, aqueles que foram chamados de Sete Sábios, todos eles afora Tales, se aplicaram à filosofia moral e à política. Nos tempos seguintes, depois que Sócrates fez descer a filosofia do céu à terra,[45] preva­leceu mais ainda a filosofia moral e mais se afastaram os engenhos humanos da filosofia natural.
     Contudo, aquele mesmo período em que as investigações da natureza ganharam vigor foi corrompido pelas contradições e pela ambição de se emitirem novas opiniões, ficando, assim, inutilizado. Dessa forma, durante esses três períodos, a filosofia natural, abando­nada e dificultada, não é para se admirar que os homens, ocupados por outros assuntos, nela pouco tenham progredido.
LXXX
     Deve-se acrescentar, ademais, que a filosofia natural, mesmo entre os seus fautores, não encontrou um único homem inteira e exclusivamente a ela dedicado, particularmente nos últimos tempos, a não ser o exemplo isolado de elucubrações de algum monge, em sua cela, ou de algum nobre, em sua mansão. A filosofia natural servia a alguns de passagem e de ponte para outras disciplinas.
     Dessa forma, a grande mãe das ciências foi relegada ao indigno oficio de serva, prestando serviços à obra de médicos ou de matemáti­cos, ou devendo oferecer à mente imatura dos jovens o primeiro poli­mento e a primeira tintura, para facilitação e bom êxito de suas poste­riores ocupações. Que ninguém espere um grande progresso nas ciências, especialmente no seu lado prático,[46] até que a filosofia natu­ral seja levada às ciências particulares e as ciências particulares sejam incorporadas à filosofia natural. Por serem disso dependentes é que a astronomia, a óptica, a música, inúmeras artes mecânicas, a própria medicina, e, o que é espantoso, a filosofia moral e política e as ciên­cias lógicas [47] não alcançaram qualquer profundidade, mas apenas deslizam pela superfície e variedade das coisas. De fato, desde que as ciências particulares se constituíram e se dispersaram, não mais se alimentaram da filosofia natural, que lhes poderia ter transmitido as fontes e o verdadeiro conhecimento dos movimentos, dos raios, dos sons, da estrutura e do esquematismo dos corpos, das afecções e das percepções intelectuais, o que lhes teria infundido novas forças para novos progressos. Assim, pois, não é de admirar que as ciências não cresçam depois de separadas de suas raízes.
LXXXI
     Ainda há outra causa grande e poderosa do pequeno progresso das ciências. E ei-la aqui: não é possível cumprir-se bem uma corrida quando não foi estabelecida e prefixada a meta a ser atingida. A ver­dadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos e recursos.[48] Mas a turba, que forma a grande maio­ria, nada percebe, busca o próprio lucro e a glória acadêmica. Pode, eventualmente, ocorrer que algum artesão de engenho agudo e ávido de glória se aplique a algum novo invento, o que realiza, na maior parte dos casos, com os seus próprios recursos. A maior parte dos ho­mens está tão longe de dedicar-se ao aumento do acervo das ciências e das artes, que, do acervo já à sua disposição, apanham e são atraídos tão-somente o suficiente para os usos professorais, para lograr lucro, consideração ou outra vantagem análoga. Contudo, se de toda essa multidão alguém se dedica com sinceridade à ciência por si mesma, ver-se-á que se volta mais para a variedade das especulações e das doutrinas que para uma inquirição severa e rígida da verdade. Ainda mais, se se encontra um investigador mais severo da verdade, também ele proporá, como sua condição, que satisfaça sua mente e intelecto na representação das causas das coisas que já eram conheci­das antes, e não a de conseguir provas para novos resultados e luz para novos axiomas. Em suma, se ninguém até agora fixou de forma justa o fim da ciência, não é para causar espanto que tudo o que se subordine a esse fim desemboque em uma aberração.
LXXXII
     Ademais, o fim e a meta da ciência foram mal postos pelos homens. Mas, ainda que bem postos, a via escolhida é errônea e impérvia. E é de causar estupefação, a quem quer que de ânimo avisa­do considere a matéria, constatar que nenhum mortal se tenha cuida­do ou tentado a peito traçar e estender ao intelecto humano uma via, a partir dos sentidos e da experiência bem fundada, mas que, ao invés, se tenha tudo abandonado ou às trevas da tradição, ou ao vórtice e torvelinho dos argumentos ou, ainda, às flutuações e desvios do acaso e de uma experiência vaga e desregrada.
     Indague agora o espírito sóbrio e diligente qual o caminho esco­lhido e usado pelos homens para a investigação e descoberta da ver­dade. Logo notará um método de descoberta muito simples e sem arti­fícios, que é o mais familiar aos homens. E esse não consiste senão, da parte de quem se disponha e apreste para a descoberta, em reunir e consultar o que os outros disseram antes. A seguir, acrescentar as próprias reflexões. E, depois de muito esforço da mente, invocar, por assim dizer, o seu gênio para que expanda os seus oráculos. Trata-se de conduta sem qualquer fundamento e que se move tão-somente ao sabor de opiniões.
     Algum outro pode, talvez, invocar o socorro da dialética, que só de nome tem relação com o que se propõe. Com efeito, a invenção própria da dialética não se refere aos princípios e axiomas fundamen­tais que sustentam as artes, mas apenas a outros princípios que com aqueles parecem estar em acordo. E quando, cercada pelos mais curiosos e importunos, é interpelada a respeito das provas e da desco­berta dos princípios e axiomas primeiros, a dialética os repele com a já bem conhecida resposta, remetendo-os à fé e ao juramento que se devem prestar aos princípios de cada uma das artes.
     Resta a experiência pura e simples que, quando ocorre por si, é chamada de acaso e, se buscada, de experiência. Mas essa espécie de experiência é como uma vassoura desfiada, como se costuma dizer, mero tateio, à maneira dos que se perdem na escuridão, tudo tateando em busca do verdadeiro caminho, quando muito melhor fariam se aguardassem o dia ou acendessem um archote para então prossegui­rem. Mas a verdadeira ordem da experiência, ao contrário, começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por uma experiência ordenada e medida —nunca vaga e errática -, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos experimentos. Pois nem mesmo o Verbo Divino agiu sem ordem sobre a massa das coisas.
     Não se admirem pois os homens de que o curso das ciências não tenha tido andamento, visto que, ou a experiência foi abandonada, ou nela (os seus fautores) se perderam e vagaram como em um labirinto; ao passo que um método bem estabelecido é o guia para a senda certa que, pela selva da experiência, conduz à planura aberta dos axiomas.
LXXXIII
     Esse mal foi espantosamente aumentado pela opinião — tornada presunção inveterada, conquanto vã e danosa — de que a majestade da mente humana fica diminuída se muito e a fundo se ocupa de expe­rimentos e de coisas particulares e determinadas na matéria, mormente tratando-se de coisas, segundo se diz, laboriosas de inquirir, ignóbeis para a meditação, ásperas para a transmissão, avaras para a prática, infinitas em número, tênues em sutileza. Chegou-se ao ponto em que a verdadeira via não só foi abandonada, mas foi ainda fecha­da e obstruída. A experiência não foi apenas abandonada ou mal administrada, como também desprezada.
LXXXIV
     A reverência à Antiguidade, o respeito à autoridade de homens tidos como grandes mestres de filosofia e o geral conformismo para com o atual estádio do saber e das coisas descobertas também muito retardaram os homens na senda do progresso das ciências, manten­do-os como que encantados. Desse tipo de consenso já falamos antes.[49]
     No tocante à antiguidade, a opinião dos homens é totalmente imprópria e, a custo, congruente com o significado da palavra. Deve-se entender mais corretamente por antiguidade a velhice e a maturi­dade do mundo e deve ser atribuída aos nossos tempos e não à época em que viveram os antigos, que era a do mundo mais jovem. Com efeito, aquela idade que para nós é antiga e madura é nova e jovem para o mundo.[50] E do mesmo modo que esperamos do homem idoso um conhecimento mais vasto das coisas humanas e um juízo mais maduro que o do jovem, em razão de sua maior experiência, varie­dade e maior número de coisas que pôde ver, ouvir e pensar, assim também é de se esperar de nossa época (se conhecesse as suas forças e se dispusesse a exercitá-las e estendê-las) muito mais que de priscas eras, por se tratar de idade mais avançada do mundo, mais alen­tada e cumulada de infinitos experimentos e observações.
     Por outra parte, não é de se desprezar o fato de que, pelas nave­gações longínquas e explorações tão numerosas, em nosso tempo, muitas coisas que se descortinaram e descobriram podem levar nova luz à filosofia. Assim, será vergonhoso para os homens que, tendo sido tão imensamente abertas e perlustradas em nossos tempos as regiões do globo material, ou seja, da terra, dos astros e dos mares, permaneça o globo intelectual [51] adstrito aos angustos confins traça­dos pelos antigos.
     No que respeita à autoridade, é de suma pusilanimidade atri­buir-se tanto aos autores e negar-se ao tempo o que lhe é de direito, pois com razão já se disse que “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”.[52] Não é, portanto, de se admirar que esse fascínio da Antiguidade, dos autores e do consenso tenha de tal modo assober­bado as forças dos homens que não puderam eles se familiarizar com as próprias coisas, como que por artes de algum malefício.
LXXXV
     Mas não foi somente a admiração pela Antiguidade, pela autori­dade e o respeito pelo consenso que compeliram a indústria humana a contentar-se com o já descoberto, mas, também, a admiração pelas aparentemente copiosas obras já conseguidas pelo gênero humano. Quem puser ante os olhos a variedade e o magnífico aparato de coisas introduzidas e acumuladas pelas artes mecânicas, para o cultivo do homem, estará, certamente, muito mais inclinado a admirar-se da sua opulência que da penúria. Isso sem se dar conta de que os primeiros resultados da observação e as primeiras operações da natureza, que são como que a alma e o principio motor dessa variedade, não são nem muitos, nem bem fundados. O restante pode ser atribuído unica­mente à paciência humana e ao movimento sutil e bem ordenado da mão ou dos instrumentos. A confecção de relógios, por exemplo, é certamente mister delicado e trabalhoso, de tal modo que as suas rodas parecem imitar as órbitas celestes ou o movimento contínuo e ordenado do pulso dos animais. No entanto, depende de apenas um ou dois axiomas da natureza.
     Ainda mais, quem atente para o refinamento próprio das artes liberais ou, ainda, o das artes mecânicas, na preparação de substân­cias naturais e leve em conta coisas como a descoberta dos movimen­tos celestes em astronomia, da harmonia em música, das letras do alfabeto (ainda não em uso no reino dos chineses) em gramática; e igualmente, na mecânica, o descobrimento das obras de Baco e Ceres, ou seja, a arte da preparação do vinho, da cerveja, da panificação, das destilações e similares, e de outras delícias da mesa; e também reflita e observe quanto tempo transcorreu para que essas coisas (todas, ex­ceto a destilação, já conhecidas dos antigos) alcançassem o avanço que em nosso tempo desfrutam; e, ainda, o quão pouco são baseadas (o mesmo que já se disse dos relógios) em observações e em axiomas da natureza; e, indo um pouco mais longe, como essas coisas facil­mente poderiam ter sido descobertas em circunstâncias óbvias ou por observações casuais.[53]
     Quem assim proceder, facilmente se libertará de qualquer admi­ração, antes se compadecerá da condição humana, por tantos séculos em tão grande penúria e esterilidade de artes e invenções. E aqueles mesmos inventos de que fizemos menção são mais antigos que a filosofia e as artes intelectuais [54] e, pode-se dizer que, quando tiveram ini­cio as ciências racionais e dogmáticas, cessou a invenção de obras úteis.
     E o mesmo interessado, uma vez que passe das oficinas às bibliotecas, ficará admirado da imensa variedade de livros. Mas, detendo-se e examinando com mais cuidado a sua matéria e conteúdo, certamente a sua admiração volver-se-á em sentido contrário, ao aí constatar as infinitas repetições e que os homens dizem e fazem sem­pre o mesmo. De sorte que, da admiração pela variedade, passará ao espanto pela indigência e pobreza das coisas que têm prendido e ocu­pado a mente dos homens.
     Quem, ainda, se disponha a considerar aquelas coisas tidas mais por curiosas que sérias e passe a examinar mais a fundo as obras dos alquimistas, acabará não sabendo se estes são mais dignos de riso ou de lágrimas.
     O alquimista, com efeito, alimenta eterna esperança e quando algo falha atribui a si mesmo os erros, acusando-se de não haver entendido bem os vocábulos de sua arte ou dos autores (por isso, com tanto ânimo se aplica às tradições e aos sussurros que chegam aos seus ouvidos), ou que suas manipulações careceram de escrúpulos quanto ao peso ou ao exato tempo, em vista do que repete ao infinito os experimentos. Se, nesse ínterim, em meio aos azares da experimen­tação, topa com algo de aspecto novo ou de utilidade não desprezível, contenta-se com esses resultados, muito os celebra e ostenta. E a espe­rança se encarrega do resto. Não se pode negar, contudo, que os alquimistas descobriram não poucas coisas e deram aos homens úteis inventos. Bem por isso não se lhes aplica mal a fábula do ancião que legou aos seus filhos um tesouro enterrado em uma vinha e cujo sítio exato simulava desconhecer. Os filhos, com afinco, revolveram toda a vinha, não encontrando nenhum tesouro, mas a vindima, graças a tal cultivo, foi muito mais abundante.
     Os cultores da magia natural,[55] que tudo explicam por simpatia e antipatia, deduziram, de conjunturas ociosas e apressadas, virtudes e operações maravilhosas para as coisas. E mesmo quando alcança­ram resultados, estes são da espécie dos que mais se prestam à admiração e novidade que a proporcionar frutos e utilidade.
     Quanto à magia supersticiosa (se dela é preciso falar), antes de tudo deve ser dito que em todas as nações, em todos os tempos e, mesmo religiões, suas estranhas e supersticiosas artes só puderam afe­tar em algo apenas um porção reduzida e bem definida de objetos. Em vista disso, deixemo-la de lado, lembrando que nada há de surpreen­dente que a ilusão da riqueza tenha sido causa da pobreza.
LXXXVI
     A admiração dos homens pelas doutrinas e artes, por si mesma bastante singela e mesmo pueril, foi incrementada pela astúcia e pelos artifícios dos que se ocuparam das ciências e as difundiram. Pois, levados pela ambição e pela afetação, apresentam-nas de tal modo ordenadas e como que mascaradas que, ao olhar dos homens, pare­ciam perfeitas em suas partes e já completamente acabadas. Com efeito, se se consideram as divisões e o método, elas parecem compreender e esgotar tudo o que possa pertencer a um assunto. E, ainda que as partes estejam mal concluídas, como cápsulas ocas, ao intelecto vulgar oferecem a forma e o ordenamento da ciência perfeita.
     Mas os primeiros e mais antigos investigadores da verdade, com mais fidelidade e sucesso, costumavam consignar em forma de aforismos,[56] isto e, de breves sentenças avulsas e não vinculadas por qualquer artificio metodológico, o saber que recolhiam da observação das coisas e que pretendiam preservar para uso posterior, e nunca simularam, nem professaram haver-se apoderado de toda a arte. Por isso, visto ser esse o estado de coisas, não é de se admirar que os ho­mens não inquiram de questões tidas há tempo como resolvidas e elucidadas em todas as suas peculiaridades.
LXXXVII
     Além disso, a sabedoria antiga foi tornada mais respeitável e digna de fé, graças à vaidade e à leviandade dos que propuseram coi­sas novas, principalmente na parte ativa e operativa da filosofia natu­ral. Com efeito, não têm faltado espíritos presumidos e fantasiosos a cumularem, em parte por credulidade, em parte por impostura, o gê­nero humano de processos tais como: prolongamento da vida, retar­damento da velhice, eliminação da dor, reparação de defeitos físicos, encantamento dos sentidos, suspensão e excitação dos sentimentos, iluminação e exaltação das faculdades intelectuais, transmutação das substâncias, aumento e multiplicação dos movimentos, compressão e rarefação do ar, desvio e promoção das influências dos astros, adivi­nhação do futuro, reprodução do passado, revelação do oculto, e alar­de e promessa de muitas outras maravilhas semelhantes. Portanto, não estaria longe da verdade, acerca de espíritos tão pródigos, um juízo como o seguinte: há tanta distância, em matéria filosófica, entre essas fantasias e as artes verdadeiras, quanto em história, entre as ges­tas de Júlio César ou de Alexandre Magno e as de Amadis de Gaula ou de Artur da Bretanha.[57] É notório, pois, que aqueles ilustres gene­rais realizaram muito mais que as façanhas atribuídas a esses heróis espectrais, em forma de ações reais, nem um pouco fabulosas ou prodigiosas. Não obstante, não seria justo negar-se fé à memória do verdadeiro porque tenha sido lesado e difamado pela fábula. Mas, tampouco, se deve estranhar que tais impostores, quando tentaram empresas semelhantes, tenham infligido grande prejuízo às novas proposições, principalmente às relacionadas com operações práticas. O excesso de vaidade e de fastígio acabou por destruir as disposições magnânimas para tais cometimentos.
LXXXVIII
     A pusilanimidade, a estreiteza e a superficialidade com que a indústria humana se impõe tarefas causaram à ciência ainda maiores danos e com a agravante dessa pusilanimidade não se apresentar sem pompa e arrogância. Destaca-se, em primeiro lugar, aquela cautela já familiar a todas as artes, que consiste em atribuírem os autores à natureza a ineficiência de sua própria arte, e o que essa arte não alcança, em seu nome, declararem ser “por natureza” impossível. Em conseqüência, jamais poderá ser condenada uma arte que a si mesma julga. Também a filosofia que hoje se professa abriga certas asserções e conclusões que, consideradas diligentemente, parecem compelir os homens à convicção de que não se deve esperar da arte e da indústria humana nada de árduo, nada que seja imperioso ou válido acerca da natureza, como já se disse antes [58] a respeito da heterogeneidade do calor do sol e do fogo e sobre a combinação dos corpos.
     Tudo isso, bem observado, procura maliciosamente limitar o poder humano e produzir um calculado e artificioso desânimo que não só vem perturbar os augúrios da esperança, como amortecer todos os estímulos e nervos da indústria humana e também interceptar todas as oportunidades de experiência. E, ao mesmo tempo, tudo fazem por parecer perfeita a própria arte, entregando-se a uma glória vã e desvairada que consiste em pensar que o que até o momento não foi descoberto ou compreendido não poderá tampouco ser descoberto ou compreendido no futuro.
     Alguém que se acerque das coisas com intento de descobrir algo novo propor-se-á e limitasse-a a um único invento, e não mais. Por exemplo: a natureza do ímã, o fluxo e o refluxo do mar, o sistema celeste e coisas desse gênero, que parecem esconder algum segredo, e coisas que, até agora, tenham sido tratadas com pouco êxito. Mas é indício de grande imperícia o fato de se perscrutar a natureza de uma coisa na própria coisa, pois a mesma natureza [59] que em alguns obje­tos está latente e oculta, em outros é manifesta e quase palpável, num caso provocando admiração, em outro, nem sequer chamando a aten­ção. É o que ocorre com a natureza da consistência, que não é notada na madeira ou na pedra e que é designada genericamente com o nome de solidez, sem se indagar acerca da sua tendência de se furtar a qual­quer separação ou solução de continuidade. De outra parte, esse mesmo fato nas bolhas de água parece mais sutil e engenhoso. As bo­lhas se constituem de películas curiosamente dispostas em forma hemisférica de tal modo que, por um momento, evita-se a solução de continuidade.
     De fato, há casos em que as naturezas das coisas estão latentes, enquanto em outros são manifestas e comuns, o que jamais será evi­dente se os experimentos e as observações dos homens se restringirem apenas às primeiras.
     Em geral, o vulgo tem por novos inventos, ou quando se aperfei­çoa algo já antes inventado ou este se orna com mais elegância, ou quando se juntam ou combinam partes dele antes separadas, ou quan­do se torna de uso mais cômodo, ou, ainda, se alcança um resultado de maior ou menor massa ou volume que o costume, e coisas do gênero.
     Por isso não é de se admirar que não saiam à luz inventos mais nobres e dignos do gênero humano, uma vez que os homens se con­tentam e se satisfazem com empresas tão limitadas e pueris. E supõem terem buscado e alcançado algo de grandioso.
LXXXIX
     Não se deve esquecer de que, em todas as épocas, a filosofia se tem defrontado com um adversário molesto e difícil na superstição e no zelo cego e descomedido da religião.[60] A propósito veja-se como, entre os gregos, foram condenados por impiedade os que, pela primeira vez, ousaram proclamar aos ouvidos não afeitos dos homens as causas naturais do raio e das tempestades.[61] Não foram melhor acolhidos, por alguns dos antigos padres da religião cristã, os que susten­taram, com demonstrações certíssimas — que não seriam hoje contraditas por nenhuma mente sensata —, que a Terra era redonda e que, em conseqüência, existiam antípodas.[62]
     Além disso, nas atuais circunstancias, as condições para a ciência natural se tornaram mais árduas e perigosas devido às sumas e aos métodos da teologia dos escolásticos. Estes, como lhes cumpria, ordenaram sistematicamente a teologia, e lhe conferiram a forma de uma arte, e combinaram, com o corpo da religião, a contenciosa e espinhosa filosofia de Aristóteles, mais que o conveniente.
     Ao mesmo resultado, mas por diverso caminho, conduzem as especulações dos que procuraram deduzir a verdade da religião cristã dos princípios dos filósofos e confirmá-la com sua autoridade, cele­brando com grande pompa e solenidade, como legítimo, o consórcio da fé com a razão e lisonjeiam, assim, o ânimo dos homens com a grata variedade das coisas, enquanto, com disparidade de condições, mesclam o humano e o divino. Mas essas combinações de teologia e filosofia apenas compreendem o que é admitido pela filosofia corren­te. As coisas novas, mesmo levando a uma mudança para melhor, são não só repelidas, como exterminadas.
     Finalmente, constatar-se-á que, mercê da infâmia de alguns teó­logos, foi quase que totalmente barrado o acesso à filosofia, mesmo depurada. Alguns, em sua simplicidade, temem que a investigação mais profunda da natureza avance além dos limites permitidos pela sua sobriedade, transpondo, e dessa forma distorcendo, o sentido do que dizem as Sagradas Escrituras a respeito dos que querem penetrar os mistérios divinos, para os que se volvem para os segredos da natu­reza, cuja exploração não está de maneira alguma interdita. Outros, mais engenhosos, pretendem que, se se ignoram as causas segun­das [63] será mais fácil atribuir-se os eventos singulares à mão e à féru­la divinas — o que pensam ser do máximo interesse para a religião. Na verdade, procuram “agradar a Deus pela mentira”.[64]
     Outros temem que, pelo exemplo, os movimentos e as mudanças da filosofia acabem por recair e abater-se sobre a religião. Outros. finalmente, parecem temer que a investigação da natureza acabe por subverter ou abalar a autoridade da religião, sobretudo para os ignorantes. Mas estes dois últimos temores parecem-nos saber inteira­mente a um instinto próprio de animais, como se os homens, no reces­so de suas mentes e no segredo de suas reflexões, desconfiassem e duvidassem da firmeza da religião e do império da fé sobre a razão e, por isso, temessem o risco da investigação da verdade na natureza. Contudo, bem consideradas as coisas, a filosofia natural, depois da palavra de Deus, é a melhor medicina contra a superstição, e o ali­mento mais substancioso da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente reputada como a mais fiel serva da religião, uma vez que uma (as Escrituras) torna manifesta a vontade de Deus, outra (a filosofia natural) o seu poder. Certamente, não errou o que disse: “Errais por ignorância das Escrituras e do poder de Deus”[65] onde se unem e combinam em um único nexo a informação da vontade de Deus e a meditação sobre o seu poder. Ademais, não é de se admirar que tenha sido coibido o desenvolvimento da filosofia natural, desde que a reli­gião, que tanto poder exerce sobre o ânimo dos homens, graças à imperícia e o ciúme de alguns, viu-se contra ela arrastada e predis­posta.
XC
     Por outro lado, nos costumes das instituições escolares, das aca­demias, colégios e estabelecimentos semelhantes, destinados à sede dos homens doutos e ao cultivo do saber, tudo se dispõe de forma adversa ao progresso das ciências. De fato, as lições e os exercícios estão de tal maneira dispostos que não é fácil venha a mente de alguém pensar ou se concentrar em algo diferente do rotineiro. Se um ou outro, de fato, se dispusesse a fazer uso de sua liberdade de juízo, teria que, por si só, levar a cabo tal empresa, sem esperar receber qualquer ajuda resultante do convívio com os demais. E, sendo ainda capaz de suportar tal circunstância, acabará por descobrir que a sua indústria e descortino acabarão por se constituir em não pequeno entrave à sua boa fortuna. Pois os estudos dos homens, nesses locais, estão encerrados, como em um cárcere, em escritos de alguns autores. Se alguém deles ousa dissentir, é logo censurado como espírito turbu­lento e ávido de novidades. Mas, a tal respeito é preciso assinalar que. com efeito, há uma grande diferença entre os assuntos políticos e as artes[66]: não implicam o mesmo perigo um novo movimento e uma nova luz. Na verdade, uma mudança da ordem civil, mesmo quando para melhor, é suspeita de perturbação, visto que ela descansa sobre a autoridade, sobre a conformidade geral, a fama e sobre a reputação e não sobre a demonstração. Nas artes e nas ciências, ao contrário, o ruído das novas descobertas e dos progressos ulteriores deve ressoar como nas minas de metal. Assim pelo menos devia ser conforme os ditames da boa razão, mas tal não ocorre na prática, pois, como antes assinalamos, a forma de administração das doutrinas e a forma de ordenação das ciências costumam oprimir duramente o seu progresso.
XCI
     Mesmo que viesse a cessar essa ojeriza, bastaria para coibir o progresso das ciências o fato de a qualquer esforço ou labor faltar estímulo. Com efeito, não estão nas mesmas mãos o cultivo das ciên­cias e as suas recompensas. As ciências progridem graças aos grandes engenhos, mas os estipêndios e os prêmios estão nas mãos do vulgo e dos príncipes, que, raramente, são mais que medianamente cultos. Dessa maneira, esse progresso não é apenas destituído de recompensa e de reconhecimento dos homens, mas até mesmo do favor popular. Acham-se as ciências acima do alcance da maior parte dos homens e são facilmente destruídas e extintas pelos ventos da opinião vulgar. Daí não se admirar que não tenha tido curso feliz o que não costuma ser favorecido com honrarias.
XCII
     Contudo, o que se tem constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências e à propensão para novas tarefas e para a abertura de novas províncias do saber é o desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade. Os homens prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se desconfiados, levando em conta: a obscuri­dade da natureza, a brevidade da vida, as falácias dos sentidos, a fragilidade do juízo, as dificuldades dos experimentos e dificuldades semelhantes. Supõem existir, através das revoluções do tempo e das idades do mundo, um certo fluxo e refluxo das ciências; em certas épocas crescem e florescem; em outras declinam e definham, como se depois de um certo grau e estado não pudessem ir além.
     Se alguém espera ou promete algo maior, é acusado como espí­rito descontrolado e imaturo e diz-se que em tais iniciativas o início é risonho, árduo o andamento e confusa a conclusão. E, como essa sorte de ponderações acodem facilmente aos homens graves e de juízo superior, devemos nos prevenir para que, por amor de uma empresa soberba e belíssima, não venhamos relaxar ou diminuir a severidade de nossos juízos. Devemos observar diligentemente se a esperança refulge e donde ela provém e, afastando as mais leves brisas da espe­rança, passar a discutir e a avaliar as coisas que pareçam apresen­tar firmeza. Seja, aqui, invocada e aplicada a prudência política,[67] que desconfia por princípio e nos assuntos humanos conjetura o pior. Falemos, pois, agora de nossas aspirações. Não somos pródigos em promessas, nem procuraremos coagir ou armar ciladas ao juízo humano, mas tomar os homens pela mão e guiá-los, com a sua anuência. E, ainda que o meio, de longe mais poderoso de se encorajar a esperança,[68] seja colocar os homens diante dos fatos particulares, especialmente dos fatos tais como se acham recolhidos e ordenados em nossas tabelas de investigação [69] tema que pertence parcialmente à segunda, mas principalmente à quarta parte de nossa Instau­ração —, já que não se trata mais, no caso, de esperança, mas de algo real, todavia, como tudo deve ser feito gradualmente, prosseguiremos no propósito já traçado de preparar a mente dos homens. E nessa preparação não é parte pequena a indicação de esperanças. Porque, afora isso, tudo o mais levaria tristeza ao homem ou a formar uma opinião ainda mais pobre e vil que a que possui ou a fazê-lo sentir a condição infeliz em que se encontra, em vez de alguma alegria ou a disposição para a experimentação. Em vista disso, é necessário pro­por e explicar os argumentos que tornam prováveis as nossas esperan­ças, tal como fez Colombo que, antes da sua maravilhosa navegação pelo oceano Atlântico, expôs as razões que o levaram a confiar na descoberta de novas terras e continentes, além do que já era conheci­do. Tais razões, de início rejeitadas, foram mais tarde comprovadas pela experiência e se constituíram na causa e no princípio de grandes empresas.
XCIII
     Porém, o supremo motivo de esperança emana de Deus. Com efeito, a empresa a que nos propomos, pela sua excelência e intrínseca bondade, provém manifestamente de Deus, que é Autor do bem e Pai das luzes. Pois bem, nas obras divinas, mesmo os inícios mais tênues conduzem a um êxito certo. E o que se disse da ordem espiritual, que “O reino de Deus não vem com aparência exterior”,[70] é igualmente verdadeiro para todas as grandes obras da Divina Providência. Tudo se realiza placidamente, sem estrépito e a obra se cumpre antes que os homens a suponham ou vejam. Não se deve esquecer a profecia de Daniel a respeito do fim do mundo: “Muitos passarão e a ciência se multiplicará”,[71] o que evidentemente significa que está inscrito nos destinos, isto é, nos desígnios da Providência, que o fim do mundo o que, depois de tantas e tão distantes navegações parece haver-se cumprido ou está prestes a fazê-lo — e o progresso das ciências coin­cidam no tempo.[72]
XCIV
     Segue a mais importante das razões que alicerçam a esperança. É a que procede dos erros dos tempos pretéritos e dos caminhos até agora tentados. Excelente é o julgamento, feito por alguém, ao responsável por desastrosa administração do Estado, com as seguin­tes palavras: “O que no passado foi causa de grandes males deve parecer-nos princípio de prosperidade para o futuro. Pois, se houvés­seis cumprido perfeitamente tudo o que se relaciona com o vosso dever, e, mesmo assim, não houvesse melhorado a situação dos vos­sos interesses, não restaria qualquer esperança de que tal viesse a acontecer. Mas, como as más circunstâncias em que se encontram não dependem das forças das coisas, mas dos vossos próprios erros, é de se esperar que, estes corrigidos, haja uma grande mudança e a situação se torne favorável”.[73] Do mesmo modo, se os homens, no espaço de tantos anos, houvessem mantido a correta via da desco­berta e do cultivo das ciências, e mesmo assim não tivessem conse­guido progredir, seria, sem dúvida, tida como audaciosa e temerária a opinião no sentido de um progresso possível. Mas uma vez que o caminho escolhido tenha sido o errado, e a atividade humana se tenha consumido de forma inoperante, segue disso que a dificuldade não ra­dica nas próprias coisas, que fogem ao nosso alcance, mas no inte­lecto humano, no seu uso e aplicação, o que é passível de remédio e medicina. Por isso, estimamos ser oportuno expor esses erros. Pois, quantos foram os erros do passado, tantas serão as razões de esperança [74] para o futuro. Embora se tenha antes falado algo a seu res­peito, é de toda conveniência expô-las brevemente, em palavras sim­ples e claras.
XCV
     Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáti­cos. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia.[75] A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não leva­da a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional.
XCVI
     Ainda não foi criada uma filosofia natural pura. As existentes acham-se infectadas e corrompidas: na escola de Aristóteles, pela ló­gica; na escola de Platão, pela teologia natural; na segunda escola de Platão, a de Proclo e outros, pela matemática,[76] a quem cabe rema­tar a filosofia e não engendrar ou produzir a filosofia natural. Mas é de se esperar algo de melhor da filosofia natural pura e sem mesclas.
XCVII
     Até agora ninguém surgiu dotado de mente tão tenaz e rigorosa que haja decidido, e a si mesmo imposto, livrar-se das teorias e noções comuns e aplicar, integralmente, o intelecto, assim purificado e reequilibrado, aos fatos particulares. Pois a nossa razão humana [77] é constituída de uma farragem e massa de coisas, procedentes algu­mas de muita credulidade, e outras do acaso e também de noções pue­ris, que recebemos desde o início.
     É de se esperar algo melhor de alguém que, na idade madura, de plena posse de seus sentidos e mente purificada, se dedique integral­mente à experiência e ao exame dos fatos particulares. Nesse sentido prometemo-nos a fortuna de Alexandre Magno: que ninguém nos acuse de vaidade antes de constatar que o nosso propósito final é o de banir toda vaidade.
     Com efeito, de Alexandre e de suas façanhas assim falou Ésqui­nes: “Certamente, não vivemos uma vida mortal; mas nascemos para que a posteridade narre e apregoe os nossos prodígios”, como que entendendo por milagrosos os feitos de Alexandre.[78]
     Mas, em época posterior, Tito Lívio, apreciando e compreen­dendo melhor o fato, disse de Alexandre algo como: “Em última instância, nada mais fez que ter a ousadia de desprezar as coisas vãs”.[79] Cremos que nos tempos futuros far-se-á a nosso respeito um juízo semelhante: De fato nada fizemos de grandioso; apenas reduzi­mos as proporções do que era superestimado. Todavia, como já disse­mos, não há esperança senão na regeneração das ciências, vale dizer, na sua reconstrução, segundo uma ordem certa, que as faça brotar da experiência. Ninguém pode afirmar, segundo presumimos, que tal ta­refa tenha sido feita ou sequer cogitada.
XCVIII
     Os fundamentos da experiência — já que a ela sempre retoma­mos — até agora ou foram nulos ou foram muito inseguros. Até agora não se buscaram nem se recolheram coleções [80] de fatos parti­culares, em número, gênero ou em exatidão, capazes de informar de algum modo o intelecto. Mas, ao contrário, os doutos, homens indo­lentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filo­sofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas [81] de experiência, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho. Dessa forma, introduziu-se na filosofia, no que respeita à experiência, a mesma prática de um reino ou Estado que cuidasse de seus negó­cios, não à base de informações de representantes ou núncios fidedig­nos, mas dos rumores ou mexericos de seus cidadãos. Nada se encon­tra na história natural devidamente investigado, verificado, classificado, pesado e medido. E o que no terreno da observação é indefinido e vago é falacioso e infiel na informação. Se alguém se ad­mira de que assim se fale e pensa não serem justos os nossos reclamos, ao se lembrar de Aristóteles, homem tão grande ele próprio e apoiado nos recursos de um tão grande rei,[82] que escreveu uma tão acurada História dos Animais; e de alguns outros que a enriqueceram com mais diligência, mas com menos estrépito; e de outros ainda, que fize­ram o mesmo em relação às plantas, os metais, os fósseis, com histó­ria e descrições abundantes, ele não se dá conta, não parece ver ou compreender suficientemente o assunto de que tratamos. Pois uma é a marcha da história natural, organizada por amor de si mesma,[83] outra, a que é destinada a informar o intelecto com ordem (método), para fundar a filosofia. Essas duas histórias naturais se diferenciam em muitos aspectos, principalmente nos seguintes: a primeira com­preende a variedade das espécies naturais e não os experimentos das artes mecânicas. Com efeito, da mesma maneira que na vida política o caráter de cada um, sua secreta disposição de ânimo e sentimentos melhor se patenteiam em ocasiões de perturbação que em outras, assim também os segredos da natureza melhor se revelam quando esta é submetida aos assaltos [84] das artes que quando deixada no seu curso natural. Em vista disso, é de se esperar muito da filosofia natu­ral quando a história natural que é a sua base e fundamento — es­teja melhor construída. Até que isso aconteça nada se pode esperar.
XCIX
     Por sua vez, mesmo em meio à abundância dos experimentos mecânicos, há grande escassez dos que mais contribuem e concorrem para informação do intelecto. De fato, o artesão, despreocupado totalmente da busca da verdade, só está atento e apenas estende as mãos para o que diretamente serve a sua obra particular. Por isso, a esperança de um ulterior progresso das ciências estará bem funda­mentada quando se recolherem e reunirem na história natural muitos experimentos que em si não encerram qualquer utilidade, mas que são necessários na descoberta das causas e dos axiomas. A esses experi­mentos costumamos designar por lucíferos, para diferenciá-los dos que chamamos de frutíferos.[85] Aqueles experimentos têm, com efeito, admirável virtude ou condição: a de nunca falhar ou frustrar, pois não se dirigem à realização de qualquer obra, mas à revelação de al­guma causa natural. Assim, qualquer que seja o caso, satisfazem esse intento e assim resolvem a questão.
C
     Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de experimentos, como também de gênero diferente dos que até agora nos têm ocupado. Mas é necessário, ainda, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem diferente e um novo processo, para continuar e promover a experiência. Pois a experiência vaga, deixada a si mesma, como antes já se disse,[86] é um mero tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas quando a expe­riência proceder de acordo com leis seguras e de forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.
CI
     Todavia, mesmo quando esteja pronto e preparado o material de história natural e de experiência, na quantidade requerida para a obra do intelecto, ou seja, para a obra da filosofia, nem assim o intelecto estará em condições de trabalhar o referido material espontaneamente e apenas com o auxílio da memória. Seria o mesmo que se tentasse aprender de memória e reter exatamente todos os cálculos de uma tábua astronômica. E até agora, em matéria de invenção, tem sido mais importante o papel da meditação que o da escrita, e a expe­riência não é ainda literata.[87] Apesar disso, nenhuma forma de inven­ção é conclusiva senão por escrito. E é de se esperar melhores frutos quando a experiência literata for de uso corrente.
CII
     Além disso, sendo tão grande o número dos fatos particulares, quase um exército, e achando-se de tal modo esparsos e difusos que chegam a desagregar e confundir o intelecto, não é de se esperar boa coisa das escaramuças, dos ligeiros movimentos e incursões do intelecto, a não ser que, organizando e coordenando todos os fatos rela­cionados a um objeto, se utilize de tabelas de invenção idôneas e bem dispostas e como que vivas. Tais tabelas servirão à mente como auxi­liares preparados e ordenados.
CIII
     Contudo, mesmo depois de se haver disposto, como que sob os olhos, de forma correta e ordenada a massa de fatos particulares, não se pode ainda passar à investigação e à descoberta de novos fatos particulares ou de novos resultados. Se, não obstante, tal ocorrer, não é de se ficar satisfeito com apenas isso. Todavia, não negamos que de­pois que os experimentos de todas as artes forem recolhidos e organi­zados e, depois, levados à consideração e ao juízo de um só homem, seja possível, pela simples transferência dos conhecimentos de uma arte para outra, com auxílio da experiência a que chamamos de literata, chegar a muitas novas descobertas úteis à vida humana e às suas condições. Todavia, tais resultados, a bem dizer, são de menor impor­tância. Na verdade muito maiores serão os provenientes da nova luz dos axiomas, deduzidos dos fatos particulares, com ordem e por via adequada, e que servem, por sua vez, para indicar e designar novos fatos particulares. Atente-se para isto: o nosso caminho não é plano, há nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos axiomas, é descendente quando se volta para as obras.
CIV
     Contudo, não se deve permitir que o intelecto salte e voe dos fatos particulares aos axiomas remotos e aos, por assim dizer, mais gerais — que são os chamados princípios das artes e das coisas — e depois procure, a partir da sua verdade imutável, estabelecer e provar os axiomas médios. E é o que se tem feito até agora graças à propen­são natural do intelecto, afeito e adestrado desde há muito, pelo emprego das demonstrações silogísticas. Muito se poderá esperar das ciências quando, seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem interrupção, ou falhas, se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, destes aos médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente aos mais gerais. Em verdade, os axiomas inferiores não se diferenciam muito da simples experiência. Mas os axiomas tidos como supremos e mais gerais (falamos dos de que dis­pomos hoje) são meramente conceituais ou abstratos [88] e nada têm de sólido. Os médios são os axiomas verdadeiros, os sólidos e como que vivos, e sobre os quais repousam os assuntos e a fortuna do gênero humano. Também sobre eles se apoiam os axiomas generalíssimos, que são os mais gerais. Estes entendemos não simplesmente como abstratos, mas realmente limitados pelos axiomas intermediários. Assim, não é de se dar asas ao intelecto, mas chumbo e peso para que lhe sejam coibidos o salto e o vôo. É o que não foi feito até agora; quando vier a sê-lo, algo de melhor será lícito esperar-se das ciências.
CV
     Para a constituição de axiomas deve-se cogitar de uma forma de indução diversa da usual até hoje e que deve servir para descobrir e demonstrar não apenas os princípios como são correntemente cha­mados como também os axiomas menores, médios e todos, em suma. Com efeito, a indução que procede por simples enumeração é uma coisa pueril, leva a conclusões precárias, expõe-se ao perigo de uma instância que a contradiga. Em geral, conclui a partir de um nú­mero de fatos particulares muito menor que o necessário e que são também os de acesso mais fácil. Mas a indução que será útil para a descoberta e demonstração das ciências e das artes deve analisar a natureza, procedendo às devidas rejeições e exclusões, e depois, então, de posse dos casos negativos necessários, concluir a respeito dos casos positivos. Ora, é o que não foi até hoje feito, nem mesmo tenta­do, exceção feita, certas vezes, de Platão, que usa essa forma de indu­ção para tirar definições e idéias. Mas, para que essa indução ou demonstração possa ser oferecida como uma ciência boa e legítima, deve-se cuidar de um sem-número de coisas que nunca ocorreram a qualquer mortal. Vai mesmo ser exigido mais esforço que o até agora despendido com o silogismo. E o auxílio dessa indução deve ser invo­cado, não apenas para o descobrimento de axiomas, mas também para definir as noções. E é nessa indução que estão depositadas as maiores esperanças.
CVI
     Na constituição de axiomas por meio dessa indução, é neces­sário que se proceda a um exame ou prova: deve-se verificar se o axioma que se constitui é adequado e está na exata medida dos fatos particulares de que foi extraído, se não os excede em amplitude e lati­tude, se é confirmado com a designação de novos fatos particulares que, por seu turno, irão servir como uma espécie de garantia. Dessa forma, de um lado, será evitado que se fique adstrito aos fatos parti­culares já conhecidos; de outro, que se cinja a sombras ou formas abstratas em lugar de coisas sólidas e determinadas na sua matéria. Quando esse procedimento for colocado em uso, teremos um motivo a mais para fundar as nossas esperanças.
CVII
     E aqui deve ser recordado o que antes se disse [89] sobre a exten­são da filosofia natural e sobre o retorno ao seu âmbito dos fatos particulares, para que não se instaurem cisões ou rupturas no corpo das ciências. Pois sem tais precauções muito menos há de se esperar em matéria de progresso.
CVIII
     Tratou-se, pois, da forma de se eliminar a desesperação, bem como a de se infundir a esperança, eliminando e retificando os erros dos tempos passados. Vejamos se há ainda mais alguma coisa capaz de gerar esperanças. Tal de fato ocorre, a saber: se foi possível a ho­mens que não as buscavam descobrirem muitas coisas, por acaso ou sorte, e até quando tinham outros propósitos, não pode haver dúvida de que quando as buscarem e se empenharem com ordem e método,[90] e não por impulsos e saltos, necessariamente muitas mais haverão de ser descerradas. Por outro lado, pode ocorrer também, uma ou outra vez, que alguém, por acaso, tope com algo que antes lhe escapou quando o buscava com esforço e determinação. Mas na maior parte dos casos, sem dúvida, ocorrerá o contrário. Por conseguinte, pode-se esperar muito mais e melhor e a menores intervalos de tempo, da razão, da indústria, da direção e intenção dos homens que do acaso e do instinto dos animais e coisas semelhantes, que até agora serviram de base para as invenções.
CIX
     Pode-se também acrescentar como argumento de esperança o fato de que muitos dos inventos já logrados são de tal ordem que antes a ninguém foi dado sequer suspeitar da sua possibilidade. Eram, ao contrário, olhados como coisas impossíveis. E tal se deve a que os homens procuram adivinhar as coisas novas a exemplo das antigas e com a imaginação preconcebida e viciada. Mas essa é uma maneira de opinar sumamente falaciosa, pois a maioria das descobertas que derivam das fontes das coisas não flui pelos regatos costumeiros.
     Assim, por exemplo, se antes da invenção dos canhões alguém, baseado nos seus efeitos, os descrevesse: foi inventada uma máquina que pode, de grande distância, abalar e arrasar as mais poderosas fortificações, os homens então se poriam a cogitar das diferentes e múltiplas formas de se aumentar a força de suas máquinas bélicas pela combinação de pesos e rodas e dispositivos que tais, causadores de embates e impulsos. Mas a ninguém ocorreria, mesmo em imagina­ção ou fantasia, essa espécie de sopro violento e flamejante que se propaga e explode. A sua volta não divisavam nenhum exemplo de algo semelhante, a não ser o terremoto e o raio, que, como fenômenos naturais de grandes proporções, não imitáveis pelo homem, seriam desde logo rejeitados.
     Do mesmo modo, se antes da descoberta do fio da seda [91] alguém houvesse falado: há uma espécie de fio para a confecção de vestes e alfaias que supera de longe em delicadeza e resistência e, ainda, em esplendor e suavidade, o linho e a lã, os homens logo se po­riam a pensar em alguma planta chinesa, ou no pêlo muito delicado de algum animal, ou na pluma ou penugem das aves; mas ninguém haveria de imaginar o tecido de um pequeno verme tão abundante e que se renova todos os anos. Se alguém se referisse ao verme teria sido objeto de zombaria, como alguém que sonhasse com um novo tipo de teia de aranha.
     Do mesmo modo, se antes da invenção da bússola [92] alguém houvesse falado ter sido inventado um instrumento com o qual se poderia captar e distinguir com exatidão os pontos cardeais do céu; os homens se teriam lançado, levados pela imaginação, a conjeturar a construção dos mais rebuscados instrumentos astronômicos, e pare­ceria de todo incrível que se pudesse inventar um instrumento com movimentos coincidentes com os dos céus, sem ser de substância celeste, mas apenas de pedra ou metal. Contudo, tais inventos e ou­tros semelhantes permaneceram ignorados pelos homens por tantos séculos, e não foram descobertos pelas artes, mas graças ao acaso e oportunidade. Por outro lado, são de tal ordem (como já dissemos), são tão heterogêneos e tão distantes do que antes era conhecido que nenhuma noção anterior teria podido conduzir a eles.
     Desse modo, é de se esperar que há ainda recônditas, no seio da natureza, muitas coisas de grande utilidade, que não guardam qual­quer espécie de relação ou paralelismo com as já conhecidas, mas que estão fora das rotas da imaginação. Até agora não foram descobertas.
     Mas não há dúvida de que no transcurso do tempo e no decorrer dos séculos virão à luz, do mesmo modo que as antes referidas. Mas, seguindo o caminho que estamos apontando, elas podem ser mostra­das muito antes do tempo usual, podem ser antecipadas, de forma rápida, repentina e simultaneamente.
CX
     Mas há outra espécie de invenções que são de tal ordem que nos levam a pensar que o gênero humano pode preteri-las, e deixar para trás nobres inventos praticamente colocados a seus pés. Pois, com efeito, se, de um lado, a invenção da pólvora, da seda, da agulha de marear, do açúcar, do papel e outras do gênero parecem se basear em propriedades das coisas e da natureza, de outro, a imprensa nada apresenta que não seja manifesto e quase óbvio.
     De fato, os homens não foram capazes de notar que, se é mais difícil a disposição dos caracteres tipográficos que escrever as letras à mão, aqueles, uma vez colocados, propiciam um número infinito de cópias, enquanto que as letras à mão só servem para uma escrita. Ou talvez não tenham sido capazes de notar que a tinta poderia ser espes­sada de forma a tingir sem escorrer (mormente quando se faz a impressão sobre as letras voltadas para cima). Eis por que por tantos séculos não se pôde contar com essa admirável invenção, tão propicia à propagação do saber.[93]
     Mas a mente humana, no curso dos descobrimentos, tem estado tão desastrada e mal dirigida que primeiro desconfia de si mesma e depois se despreza. Primeiro lhe parece impossível certo invento; de­pois de realizado, considera incrível que os homens não o tenham feito há mais tempo. É isso mesmo que reforça os nossos motivos de esperança, pois subsiste ainda um sem-número de descobrimentos a serem feitos, que podem ser alcançados através da já mencionada experiência literata, não só para se descobrirem operações desconhe­cidas, como também para transferir, juntar e aplicar as já conhecidas.
CXI
     Há ainda um outro motivo de esperança que não pode ser omiti­do. Que os homens se dignem considerar o infinito dispêndio de tempo, de orgulho e de dinheiro que se tem consumido em coisas e estudos sem importância e utilidade! Se apenas uma pequena parte desses recursos fosse canalizada para coisas mais sensatas e sólidas, não haveria dificuldade que não pudesse ser superada. Parece opor­tuno acrescentar isso porque reconhecemos com toda franqueza que uma coleção de história natural e experimental, tal como a concebe­mos e como deve ser, é uma empresa grandiosa e quase real, que re­quer muito trabalho e muitos gastos.[94]
CXII
     Contudo, ninguém deve temer a multidão de fatos particulares que, na verdade, pode ser tida como mais um motivo de esperança. Pois os fenômenos particulares das artes e da natureza, quando afas­tados e abstraídos da evidência das coisas, são como manípulos para o trabalho do espírito. E a via dos particulares conduz ao campo aberto e não está longe de nós. A outra não tem saída e leva a emara­nhados sem fim. Os homens, até agora, pouco e muito superficialmente se têm dedicado à experiência, mas têm consagrado um tempo infinito a meditações e divagações engenhosas. Mas se houvesse entre nós alguém pronto a responder às interrogações incitadas pela nature­za, em poucos anos seria realizado o descobrimento de todas as cau­sas e o estabelecimento de todas as ciências.
CXIII
     Pensamos também que o nosso próprio exemplo poderia servir aos homens de motivo para esperanças e dizemos isso não por jactân­cia, mas pela sua utilidade. Os que desconfiam considerem a mim, que sou dentre os homens de meu tempo o mais ocupado dos negócios de Estado,[95] com saúde vacilante — o que representa grande dispên­dio de tempo e pioneiro deste rumo, pois não sigo as pegadas de ninguém, e sem comunicar estes assuntos a qualquer outro mortal.[96] E no entanto prossegui constantemente, pelo caminho verdadeiro, submetendo o meu espírito às coisas, tendo assim conseguido, segun­do penso, algum resultado. Considerem em seguida quanto se poderia esperar (tomando o meu exemplo) de homens com todo o seu tempo disponível, associados no trabalho, tendo pela frente todo o tempo necessário e levando-se em conta também que se trata de um caminho que pode ser percorrido não apenas por um indivíduo (como no cami­nho racional)[97] mas que permite que o trabalho e a colaboração de muitos se distribuam perfeitamente (em especial para a coleta de dados da experiência). Aí então os homens começarão a conhecer as suas próprias forças, isto é, não quando todos se dediquem à mesma tarefa, mas quando cada um a uma tarefa diferente.[98]
CXIV
     Finalmente, ainda que não tenha soprado mais que uma débil e obscura aura de esperança procedente desse novo continente,[99] entendemos deva ser feita a prova, se não quisermos dar mostras de um espírito completamente abjeto. Pois não há paridade entre o risco que se corre ao não se tentar a prova e o proveniente do insucesso. No primeiro caso nos expomos à perda de um imenso bem; no segundo, há uma pequena perda de trabalho humano. Assim, tanto do que se há dito como do que não se disse, parece subsistirem grandes motivos para que o homem destemido se disponha a tentar e para que o pru­dente e comedido adquira confiança.
CXV
     Expusemos até aqui as diversas formas de se tolher a desespe­ração,[100] apontada como um dos principais obstáculos e causas poderosas de retardamento do progresso das ciências. Concluímos também nossa explanação a respeito dos signos e causas dos erros, da inércia e da ignorância até agora predominantes. Deve ser lembrado também que as causas mais sutis desses óbices, que se acham fora do alcance do juízo e observação popular, devem ser buscadas no que já se disse a respeito dos ídolos do espírito humano.
     Aqui termina igualmente a parte destrutiva de nossa Instauração,[101] que compreende três refutações: refutação da razão humana natural e deixada a si mesma, refutação das demonstrações e refuta­ção das teorias, ou dos sistemas filosóficos e doutrinas aceitos. Essa refutação foi cumprida tal como era possível, isto é, por meio dos sig­nos e dos erros evidentes. Não podíamos empregar nenhum outro gê­nero de refutação, por dissentirmos das demais quanto aos princípios e quanto às formas de demonstração.
     É tempo, pois, de passarmos à arte e às normas de interpretação da natureza. Mas há ainda algo a ser lembrado. Como nosso propó­sito neste primeiro livro de aforismos foi o de preparar a mente dos homens tanto para entender quanto para aceitar o que se seguirá, e estando já limpo, desbastado e igualado o terreno da mente, é de se esperar que ela se coloque em boa postura e em disposição benévola em relação ao que a ela iremos propor.
     Com efeito, quando se trata de coisa nova, induz ao prejuízo não apenas a preocupação de uma eminente opinião antiga, como também a falsa concepção ou representação antes formada a respeito do assunto. Por isso nos esforçaremos para conseguir que sejam consideradas como corretas e verdadeiras as nossas opiniões, mesmo que por algum tempo, como que em confiança, até que se tenha adquirido conhecimento da coisa mesma.
CXVI
     Em primeiro lugar, pedimos aos homens que não presumam ser nosso propósito, à maneira dos antigos gregos, ou de alguns moder­nos, como Telésio, Patrizzi e Severino, fundar alguma nova seita de filosofia.[102] Não temos tal desígnio, e nem julgamos de muito inte­resse para a fortuna dos homens saber que opiniões abstratas pode ter alguém sobre a natureza ou os princípios das coisas. Não há dúvida de que muitas opiniões dos antigos podem ser ressuscitadas e outras novas introduzidas, assim como se podem supor muitas teorias dos céus que, embora guardando muito bom acordo com os fenômenos, difiram entre si.
     Mas não nos ocuparemos de tais coisas suscetíveis de opiniões e também inúteis. Ao contrário, a nossa disposição é de investigar a possibilidade de realmente estender os limites do poder ou da gran­deza do homem e tornar mais sólidos os seus fundamentos. Ainda que isoladamente e em alguns aspectos particulares tenhamos alcançado, assim nos parece, resultados mais verdadeiros, mais sólidos, e ainda mais fecundos que aqueles a que chegaram os homens que deles até agora se ocuparam (o que resumimos na quinta parte da nossa Instauração),[103] todavia não pretendemos propor qualquer teoria universal ou acabada. Não parece ter chegado ainda o momento de fazê-lo. Por isso, não nutrimos esperanças de que a duração de nossa vida chegue para concluir a sexta parte de nossa Instauração,[104] que está destinada a contar a filosofia descoberta a partir da legítima interpretação da natureza. Mas nos daremos por satisfeitos se conse­guirmos agir com sobriedade e proficiência nas partes intermediárias, e lançar aos pósteros as sementes de uma verdade mais sincera, e não nos furtamos pelo menos ao início das grandes empresas.
CXVII
     E do mesmo modo que não somos fundadores de uma escola, não nos propomos a prometer ou desenvolver obras de caráter parti­cular.[105] Contudo, poderia alguém nos exigir, como penhor, que apresentássemos de nossa parte alguma produção, já que tanto falamos de obras e a elas tudo relacionamos. O nosso plano e o nosso verdadeiro procedimento — como já o dissemos muitas vezes e de bom grado o repetimos — consiste em não extrair obras de obras e experimentos de experimentos, como fazem os artífices. Pretendemos deduzir das obras e experimentos as causas e os axiomas e depois, das causas e princípios, novas obras e experimentos, como cumpre aos legítimos intérpretes da natureza.
      Mas em nossas tábuas de descoberta [106] — que compreendem a quarta parte [107] da nossa Instauração e também pelos exemplos particulares que constam da nossa segunda parte — e ainda nas nossas observações sobre história — que estão na terceira parte [108] qualquer pessoa de mediana perspicácia e engenho notará aqui indicações e designações de muitas obras importantes. Mas confes­samos abertamente que a história natural de que dispomos, seja a recolhida dos livros, seja a resultante de nossas próprias investiga­ções, não é nem tão abundante nem tão comprovada a ponto de satis­fazer e bastar às exigências da legítima interpretação.
     Assim, se há alguém mais apto e preparado para a mecânica e mais sagaz para a busca de novos resultados só com o uso dos experi­mentos, consentimos e confiamos à sua indústria a coleta de minha história e de minhas tábuas, muitas coisas pelo caminho, conferindo-lhe um uso prático e recebendo um interesse provisório, até que alcan­ce o êxito definitivo. Quanto a nós, na verdade, como pretendemos mais, condenamos toda demora precipitada e prematura em coisas como essas a exemplo das maçãs de Atalanta,[109] como muitas vezes costumo dizer. Com efeito, não procuramos puerilmente os pomos dourados, antes tudo depositamos na marcha triunfal da arte sobre a natureza. Não nos apressamos a colher o musgo ou as espigas ainda verdes: é a messe sazonada que aguardamos.
CXVIII
     Examinando nossa história natural e nossas tábuas de desco­berta certamente ocorrerá a alguém a existência, em nossos experi­mentos, de aspectos não bem comprovados, ou, mesmo, serem eles totalmente falsos. Em vista disso, passará a refutar os novos descobrimentos como se apoiados em fundamentos e princípios duvidosos ou falsos. Na verdade, isso nada significa, pois é necessário que tal acon­teça no início. Seria como se na escrita ou na impressão uma ou outra letra estivessem mal colocadas (ou fora do lugar), o que não chegaria a confundir muito o leitor, uma vez que o próprio sentido acaba facil­mente por corrigir os erros. Da mesma maneira, reflitam os homens que na história natural muitos falsos experimentos podem ser toma­dos e aceitos como verdadeiros, e mais tarde facilmente rejeitados e expurgados, quando da descoberta de causas e de axiomas. É igualmente verdadeiro que se encontra na história natural e nos experimentos uma série longa e contínua de erros que, todavia, não poderão ser corrigidos pela boa disposição do engenho.
     Em vista disso, se a nova história natural que foi coligida e com­provada com tanta diligência, severidade e zelo quase religioso deixa passar algum erro ou falsidade nos fatos particulares, o que se poderá dizer então da história natural corrente que é, em comparação com a nossa, tão negligente e superficial? Ou da filosofia codificada sobre a areia ou sirtes? Portanto, ninguém se deve preocupar com o que foi dito.
CXIX
     Serão também encontradas em nossa história natural e em nos­sos experimentos muitas coisas superficiais e comuns, outras vis e mesmo grosseiras, finalmente outras sutis e meramente especulativas e quase sem qualquer utilidade. Coisas, enfim, que poderiam afastar os homens do estudo, bem como desgostá-los.
     Quanto às coisas que parecem comuns, reflitam os homens em sua conduta habitual que não tem sido outra que referir e adaptar as causas das coisas que raramente ocorrem às que ocorrem com freqüência, sem, todavia, indagar das causas daquelas mais freqüentes, aceitando-as como fatos admitidos e assentados.
     Dessa forma, não buscam as causas do peso, da rotação dos cor­pos celestes, do calor, do frio, da luz, do duro, do mole, do tênue, do denso, do líquido, do sólido, do animado, do inanimado, do seme­lhante, do dessemelhante, e nem tampouco do orgânico. Antes, tomam tais coisas por evidentes e manifestas e se entregam à disputa e à determinação das que não ocorrem com tanta freqüência e não são tão familiares.
     Mas, quanto a nós, que sabemos não se poder formular juízos acerca das coisas raras e extraordinárias e muito menos trazer à luz algo de novo, antes de se terem examinado devidamente e de se have­rem descoberto as causas das coisas comuns, e as causas das causas, fomos compelidos, por necessidade, a acolher em nossa história as coisas mais comuns. Por isso, estabelecemos que não há nada tão per­nicioso à filosofia como o fato de as coisas familiares e que ocorrem com freqüência não atraírem e não prenderem a reflexão dos homens, mas serem admitidas sem exame e investigação das suas causas. Disso resulta que é mais freqüente recolherem-se informações sobre as coisas desconhecidas que dedicar-se atenção às já conhecidas.
CXX
     Com referência a fatos considerados vis e torpes, aos quais (como diz Plínio),[110] é necessário render homenagem, devem inte­grar, não menos que os mais brilhantes e preciosos, a história natural. Não será a história natural maculada: do mesmo modo que também não se macula o sol que penetra igualmente palácios e cloacas. Não pretendemos dedicar ou construir um capitólio ou uma pirâmide à soberba humana. Mas fundamos no intelecto humano um templo santo à imagem do mundo. E por ele nos pautamos. Pois tudo o que é digno de existir é digno de ciência, que é a imagem da realidade. As coisas vis existem tanto quanto as admiráveis. E indo mais longe: do mesmo modo que se produzem excelentes aromas de matérias pútri­das, como o almíscar e a algália, também de circunstâncias vis e sórdidas emanam luz e exímias informações. E isso é suficiente, pois esse gênero de desagrado é pueril e efeminado.
CXXI
     Há ainda outro assunto que deve merecer o mais acurado exame. É que muitas das coisas da nossa história parecerão, ao intelecto vul­gar e a qualquer mente afeita às coisas presentes, curiosas e de uma sutileza inútil. Disso já tratamos e vamos repetir o que antes disse­mos: de início e por certo tempo, buscamos apenas os experimentos lucíferos e não os experimentos frutíferos, tomando por exemplo a criação divina que, como temos reiterado, no primeiro dia produziu unicamente a luz, a ela dedicando todo um dia, não se aplicando nesse dia a nenhuma obra material.
     Se alguém reputa tais coisas como destituídas de uso, seria o mesmo que entendesse não ter também a luz qualquer uso, por não se tratar de uma coisa sólida ou material. E, a bem da verdade, deve ser dito que o conhecimento das naturezas simples,[111] quando bem examinado e definido, é como a luz, que abre caminho ao segredo de todas as obras, e com o poder que lhe é próprio abrange e arrasta todas as legiões e exércitos de obras e as fontes dos axiomas mais nobres, não sendo, contudo, em si mesma de grande uso. Da mesma forma, as letras do alfabeto, em si e tomadas isoladamente, nada sig­nificam e a nada servem. Contudo, são como que a matéria-prima para a composição e preparação de todo discurso. Assim também as sementes das coisas têm virtualmente grande poder, mas fora de seu processo de desenvolvimento para nada servem. E os raios dispersos da própria luz, se não convergentes, não produzem beneficio.
     Se alguém se ofende com as sutilezas especulativas, o que dizer então dos escolásticos que, com tanta indulgência, se entregaram às sutilezas? Tais sutilezas se consumiam nas palavras ou, pelo menos, em noções vulgares (o que dá no mesmo), não penetravam nas coisas ou na natureza. Não ofereciam utilidade não só em suas origens, como também em suas conseqüências. E não eram, enfim, de tal forma que, como as de que nos ocupamos, não tendo utilidade no pre­sente, oferecem-na infinita em suas conseqüências. Tenham os ho­mens por certo que toda sutileza nas disputas ou nos esforços da mente, se aplicada depois da descoberta dos axiomas, será extempo­rânea e que o momento próprio, pelo menos precípuo do uso de sutile­zas, é aquele em que se examina a experiência, para a partir dela se constituírem os axiomas. Com efeito, aquele outro gênero de sutileza persegue e procura captar a natureza, mas nunca a alcança e submete. É muito certo, se transposto para a natureza, o que se diz da ocasião e da fortuna, “que tem fartos cabelos vista de frente e é calva vista de trás”.[112]
     Enfim, a propósito do desprezo que se vota, na história natural, às coisas vulgares, vis ou muito sutis ou de nenhuma utilidade, em sua origem, são como oraculares as palavras de uma pobre mulher, dirigidas a um príncipe arrogante, que rejeitara sua petição por ser indigna de sua majestade: “Deixa, pois, de ser rei”.[113] Pois é absolutamente certo que ninguém que deixe de levar em conta essas coisas, por ínfimas e insignificantes que sejam, conseguirá e poderá exercer domínio sobre a natureza.
CXXII
     Costuma-se objetar também ser espantoso e muito rigoroso que­rermos, de um só golpe, rechaçar todas as ciências e todos os autores e, isso, sem recorrer a nenhum dos antigos, para auxílio ou defesa, valendo-nos apenas de nossas próprias forças.
     Entretanto, sabemos perfeitamente que, se quiséssemos agir com menos boa fé não nos seria difícil relacionar o que vamos expor com os tempos antigos anteriores aos dos gregos, nos quais as ciências, especialmente as da natureza, mais floresceram, ainda em silêncio, antes de passarem pelas trombetas e flautas dos gregos; ou, mesmo ainda que em parte, com alguns dentre os próprios gregos, neles reco­lhendo apoio e glória, à maneira dos novos-ricos que, com ajuda de genealogias, forjam e inventam a sua nobreza, a partir da descen­dência de alguma antiga linhagem. Quanto a nós apoiados na evidên­cia dos fatos, rejeitamos toda sorte de fantasia ou impostura. E não reputamos de interesse para o que nos ocupa o saber-se se o que vai ser descoberto já era conhecido dos antigos ou se está sujeito às vicis­situdes das coisas ou às circunstâncias desta ou daquela idade. Tam­pouco parece digno da preocupação dos homens o saber-se se o Novo Mundo é aquela ilha Atlântida, conhecida dos antigos, ou se foi des­coberta agora pela primeira vez. A descoberta das coisas deve ser feita com recurso à luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade.
     Quanto à censura universal que fizemos, é inquestionável, bem considerado o assunto, que parece mais plausível e mais modesta se feita por partes. Pois, se os erros não se tivessem radicado nas noções primeiras, não teria sido possível que certas noções corretas não tives­sem corrigido as demais (portadoras de erros). Mas como os erros são fundamentais e não provenientes de juízos falhos ou falsos, mas da negligência e da ligeireza com que os homens trataram os fatos, não é de se admirar que não tenham conseguido o que não buscaram e que não tenham alcançado a meta que se não tinham proposto, e, ainda, que não tenham percorrido um caminho em que não entraram ou de que se transviaram.
     E, se nos acusam de arrogantes, cumpre-nos observar que isso seria verdadeiro de alguém que pretendesse traçar uma linha reta ou um círculo, melhor que algum outro, servindo-se apenas da segurança das mãos e do bom golpe de vista. No caso, haveria uma comparação de capacidade. Mas se alguém afirma poder traçar uma linha mais reta e um círculo mais perfeito servindo-se da régua e do compasso, em comparação a alguém que faça uso apenas das mãos e da vista, esse com certeza não seria um jactancioso. O que ora dizemos não se refere somente aos nossos primeiros esforços e tentativas, mas tam­bém aos dos que se seguiram com os mesmos propósitos. Pois o nosso método de descoberta das ciências quase que iguala os enge­nhos e não deixa muita margem à excelência individual, pois tudo submete a regras rígidas e demonstrações. Eis por que, como já o dis­semos muitas vezes, a nossa obra deve ser atribuída mais à sorte que à habilidade, e é mais parto do tempo que do talento. Pois parece não haver dúvidas de que uma espécie de acaso intervém tanto no pensa­mento dos homens quanto nas obras e nos fatos.
CXXIII
     Assim, diremos de nós o que alguém, por gracejo, disse de si: “Não podem ter a mesma opinião quem bebe água e quem bebe vinho”.[114] Com efeito, os demais homens, tanto os antigos como os modernos, beberam nas ciências um licor cru, como a água que mana espontaneamente de sua inteligência, ou haurido pela dialética, como de um poço, por meio de roldanas. Mas, de nossa parte, bebemos e brindamos um licor preparado com abundantes uvas, amadurecidas na estação, de racemos escolhidos, logo espremidas no lagar, e depois purificado e clarificado em vasilhame próprio. Em vista disso, não é de se admirar que não nos ponhamos de acordo com eles.
CXXIV
     Podem fazer-nos ainda outra objeção: a de que mesmo nós não prefixamos para as ciências a meta e o escopo melhores e mais verda­deiros, fato que censuramos em outros. E que a contemplação da verdade é mais digna e elevada que a utilidade e a grandeza de qualquer obra,[115] e também que essa longa, solícita e instante dedicação à experiência, à matéria e ao fluxo das coisas particulares curva a mente para a terra ou mesmo a abandona a um Tártaro de confusão e desordem e a afasta e distancia da serenidade e tranqüilidade da sabedoria abstrata, que é muito mais próxima do divino. De bom grado assentimos nessas observações, pois tratamos, precipuamente e antes de mais nada, de alcançar o que os nossos críticos indicam e escolhem. Efetivamente construímos no intelecto humano um modelo verdadeiro [116] do mundo, tal qual foi descoberto e não segundo o capricho da razão de fulano ou beltrano. Porém, isso não é possível levar a efeito, sem uma prévia e diligentíssima dissecção e anatomia do mundo. Por isso, decidimos correr com todas essas imagens inep­tas e simiescas que a fantasia humana infundiu nos vários sistemas filosóficos. Saibam os homens como já antes dissemos a imen­sa distância que separa os ídolos da mente humana das idéias da mente divina.[117] Aqueles, de fato, nada mais são que abstrações arbi­trárias; estas, ao contrário, são as verdadeiras marcas do Criador sobre as criaturas, gravadas e determinadas sobre a matéria, através de linhas exatas e delicadas. Por conseguinte, as coisas em si mesmas, neste gênero, são verdade e utilidade,[118] e as obras devem ser estima­das mais como garantia da verdade que pelas comodidades que propi­ciam à vida humana.[119]
CXXV
     Pode ser também que sejamos tachados de fazer algo já feito antes e que mesmo os antigos seguiram já semelhante caminho. Assim, qualquer um poderá tomar como verossímil que, depois de tanta agitação e esforço, acabamos por cair em uma daquelas filoso­fias instituídas pelos antigos. Também eles partiam em suas medita­ções de grande quantidade e acúmulo de exemplos e fatos particulares e os dispunham separadamente segundo os assuntos. A seguir compu­nham as suas filosofias e as suas artes e, depois de procederam a uma verificação, enunciavam as suas opiniões, não sem antes ter acrescen­tado, aqui e ali, exemplos, a título de prova ou de elucidação. Toda­via, consideraram supérfluo e fastidioso transcrever suas notas de fatos particulares, apontamentos e comentários e, dessa forma, imita­ram o procedimento usado na construção: depois de terminado o edi­fício foram removidos da vista as máquinas e os andaimes. Não há motivo para crer que tenham procedido de outra forma. Mas quem não se esqueceu do que dissemos antes, facilmente responderá a essa objeção, que é, na verdade, mais um escrúpulo. A forma [120] de inves­tigação e de descoberta própria dos antigos, e sabemo-lo bem, se encontra expressa em seus escritos. E essa forma não consistia em mais que galgar de um salto, a partir de alguns exemplos e fatos parti­culares (juntamente com noções comuns e talvez uma certa porção das opiniões mais aceitas), às conclusões mais gerais ou aos princí­pios das ciências, Depois, a partir dessas verdades tidas como imutá­veis e fixas, por meio de proposições intermediárias, estabeleciam as conclusões inferiores e, a partir destas, constituíam a arte. Se, porven­tura, surgissem novos fatos particulares e exemplos que contra­riassem as suas afirmações, por meio de distinções ou da aplicação de suas regras encaixavam-nos em suas doutrinas ou, quando não, grosseiramente os descartavam como exceções. E as causas dos fatos particulares, não conflitantes com os seus princípios, essas eram per­tinaz e laboriosamente a eles acomodadas. Aquela experiência e aque­la história natural não eram, pois, o que deviam ser, estavam antes muito longe e, ademais, esse vôo súbito aos princípios mais gerais punha tudo a perder.
CXXVI
     Ainda nos pode ser endereçado o reparo de que, sob o pretexto de admitirmos unicamente a enunciação de juízos e o estabelecimento de princípios certos, só depois de se terem alcançado as verdades mais gerais, rigorosamente a partir de graus intermediários, sustenta­mos a suspensão do juízo e acabamos assim por cair em uma espécie de acatalepsia. Mas, em verdade, não cogitamos e nem propomos a acatalepsia, mas a eucatalepsia,[121] pois não pretendemos abdicar dos sentidos, mas ampará-los; nem desprezar o intelecto, mas dirigi-lo. Enfim, é melhor saber-se tudo o que ainda está para ser feito, supondo que não o sabemos, que supor-se que bem o sabemos, e ignorar total­mente o que nos falta.
CXXVII
     Ainda nos pode ser indagado, mais como dúvida que como obje­ção, se intentamos, com nosso método, aperfeiçoar apenas a filosofia natural [122] ou também as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciências. Do mesmo modo que a lógica vulgar, que ordena tudo segundo o silogismo, aplica-se não somente às ciências naturais, mas a todas as ciências, assim também a nossa lógica, que procede por indução, tudo abarca. Por isso, pretendemos constituir história e tábuas de descobertas para a ira, o medo, a vergonha e assuntos seme­lhantes; e também para exemplos das coisas civis e, não menos, para as operações mentais, como a memória, para a composição e a divi­são,[123] para o juízo,[124] etc. E, ainda, para o calor, para o frio, para a luz, vegetação e assuntos semelhantes. Porém, como o nosso méto­do de interpretação, uma vez preparada e ordenada a história, não se dirige unicamente aos processos discursivos da mente, como a lógica vulgar, mas à natureza de todas as coisas, tratamos de conduzir a mente de tal modo que possa se aplicar à natureza das coisas, de forma adequada a cada caso particular. É por isso que na doutrina da interpretação indicamos muitos e diversos preceitos que, de alguma forma, ajustam o método de investigação às qualidades e condições do assunto que se considera.
CXXVIII
     Mas no que não pode pairar qualquer dúvida é quanto à nossa pretensa ambição de destruir e demolir a filosofia, as artes e as ciências, ora em uso. Antes pelo contrário, admitimos de bom grado o seu uso, o seu cultivo e o respeito de que gozam. De modo algum nos opomos a que as artes comumente empregadas continuem a estimular as disputas, a ornar os discursos, sirvam às conveniências professo­rais e aproveitem os reclamos da vida civil e, como as moedas, circu­lem graças ao consenso dos homens. Indo mais longe, declaramos abertamente que tudo o que propomos não há de ser de muito prés­timo a esse tipo de usos, uma vez que não poderá ser colocado ao alcance do vulgo, a não ser pelos seus efeitos e pelas obras propicia­dos. São testemunho de nossa boa disposição e de nossa boa vontade, para com as ciências ora aceitas, nossos escritos já publicados, espe­cialmente os livros sobre O Progresso das Ciências.[125] Não intenta­mos, por isso, prová-lo melhor com palavras. Contudo, advertimos de modo claro e firme que com os atuais métodos não se pode lograr grandes progressos nas doutrinas e nas indagações sobre ciências, e bem por isso não se podem esperar significativos resultados práticos.
CXXIX
     Resta-nos dizer algumas palavras acerca da excelência do fim proposto. Se as tivéssemos dito logo de início, poderiam ser tomadas por simples aspirações. Mas, uma vez que firmamos as esperanças e eliminamos os iníquos prejuízos, terão certamente mais peso. Se tivés­semos conduzido e realizado tudo sem invocar a participação e a ajuda de outros para a nossa empresa, nesse caso, abster-nos-íamos de quaisquer palavras, para que não fossem tomadas como proclama­doras de nossos próprios méritos. Mas, como é necessário estimular a indústria dos outros homens, e mesmo excitar e inflamar-lhes o ânimo, é de toda conveniência fixar certos pontos em suas mentes.
     Em primeiro lugar, parece-nos que a introdução de notáveis descobertas ocupa de longe o mais alto posto entre as ações humanas. Esse foi também o juízo dos antigos. Os antigos, com efeito, tributa­vam honras divinas aos inventores,[126] enquanto que concediam aos que se distinguiam em cometimentos públicos, como os fundadores de cidades e impérios, os legisladores, os libertadores da pátria de males repetidos, os debeladores das tiranias, etc., simplesmente honras de heróis. E, em verdade, a quem estabelecer entre ambas as coisas um confronto correto, parecerá justo o juízo daqueles tempos remotos. Pois, de fato, os benefícios dos inventos podem estender-se a todo o gênero humano, e os benefícios civis alcançam apenas algumas comu­nidades e estes duram poucas idades, enquanto que aqueles podem durar para sempre. Por outro lado, a reforma de um Estado dificil­mente se cumpre sem violência e perturbação, mas os inventos trazem venturas e os seus benefícios a ninguém prejudicam ou amarguram.
     Além disso, os inventos são como criações e imitações das obras divinas, como bem cantou o poeta:
Primum frugiferos foetus mortalibus aegris
Dididerant quondam praestanti nomini Athenae
Et
RECREAVERUNT vitam legesque rogarunt.
[127]
     E é digno de nota o exemplo de Salomão, eminente pelo impé­rio, pelo ouro, pela magnificência de suas obras, pela escolta e famu­lagem, pela sua frota, pela imensa admiração que provocava nos homens, e que nada dessas coisas elegeu para a sua glória, e em vez disso proclamou: “A glória de Deus consiste em ocultar a coisa, a glória do rei em descobri-la”. [128]
     Considere-se ainda, se se quiser, quanta diferença há entre a vida humana de uma região das mais civilizadas da Europa e uma região das mais selvagens e bárbaras da Nova Índia.[129] Ela parecerá tão grande que se poderá dizer que “O homem é Deus para o homem”,[130], não só graças ao auxílio e benefício que ele pode prestar a outro homem, como também pela comparação das situações. E isso ocorre não devido ao solo, ao clima ou à constituição física.
     Vale também recordar a força, a virtude e as conseqüências das coisas descobertas, o que em nada é tão manifesto quanto naquelas três descobertas que eram desconhecidas dos antigos e cujas origens, embora recentes, são obscuras e inglórias. Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. Daí se seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal ordem que não consta que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido maior influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos.
     A esta altura, não seria impróprio distinguirem-se três gêneros ou graus de ambição dos homens. O primeiro é o dos que aspiram ampliar seu próprio poder em sua pátria, gênero vulgar a aviltado; o segundo é o dos que ambicionam estender o poder e o domínio de sua pátria para todo o gênero humano, gênero sem dúvida mais digno, mas não menos cúpido. Mas se alguém se dispõe a instaurar e esten­der o poder e o domínio do gênero humano sobre o universo, a sua ambição (se assim pode ser chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre as coi­sas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe.[131]
     E mais ainda: se a utilidade de um invento particular abalou os homens a ponto de levá-los a considerar mais que homem aquele que ofereceu à humanidade inteira apenas um único beneficio, que excelso lugar não ocupará a descoberta que vier abrir caminho a todas as de­mais descobertas? Contudo, e para dizer toda a verdade, assim como devemos dar graças à luz, mercê da qual podemos praticar as artes, ler e reconhecermo-nos uns aos outros, devemos reconhecer que a própria visão da luz é muito mais benéfica e bela que todas as suas vantagens práticas. Assim também a contemplação das coisas tais como são, sem superstição e impostura, sem erro ou confusão, é em si mesma mais digna que todos os frutos das descobertas.
     Por último, se se objetar com o argumento de que as ciências e as artes se podem degradar, facilitando a maldade, a luxúria e paixões semelhantes, que ninguém se perturbe com isso, pois o mesmo pode ser dito de todos os bens do mundo, da coragem, da força, da própria luz e de tudo o mais. Que o gênero humano recupere os seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe competem por dotação divi­na. Restitua-se ao homem esse poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta e pela verdadeira religião.
CXXX
     Já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza. A propósito devemos deixar claro que, embora acreditemos ai se encontrarem pre­ceitos muito úteis e verdadeiros, não lhe atribuímos absoluta necessi­dade ou perfeição. De fato, somos da opinião de que se os homens tivesssem à mão uma adequada história da natureza e da experiência, e a ela se dedicassem cuidadosamente, e se, além disso, se impuses­sem duas precauções: uma, a de renunciar às opiniões e noções rece­bidas; outra, a de coibir, até o momento exato, o ímpeto próprio da mente para os princípios mais gerais e para aqueles que se acham pró­ximos; se assim procedessem, acabariam, pela própria e genuína força de suas mentes, sem nenhum artifício, por chegar à nossa forma de interpretação. A interpretação é, com efeito, a obra verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos. Mas com os nossos preceitos tudo será mais rápido e seguro.
     Não pretendemos que nada lhe possa ser acrescentado. Ao contrário, nós, que consideramos a mente não meramente pelas facul­dades que lhe são próprias, mas na sua conexão com as coisas, deve­mos presumir que a arte da invenção robustecer-se-á com as próprias descobertas.

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA E O REINO DO HOMEM
LIVRO II

I
     Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas [1] em um corpo [2] dado, tal é a obra e o fito do poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é descobrir a forma [3] de uma natureza dada ou a sua verdadeira diferença ou natureza naturante [4] ou fonte de emanação (estes são os vocábulos de que dispomos mais adequados para os fatos que apresentamos). A estas empresas primárias subordi­nam-se duas outras secundárias e de cunho inferior. A primeira é a transformação de corpos concretos de um em outro, nos limites do possível;[5] a segunda, a descoberta de toda geração e movimento do processo latente,[6] contínuo, a partir do agente manifesto até a forma implícita [7] e descobrir, também, o esquematismo latente [8] dos corpos quiescentes e não em movimento.
II
     A infeliz situação em que se encontra a ciência humana transpa­rece até nas manifestações do vulgo. Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas causas.[9] E, não indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final.[10] Destas, a causa final longe está de fazer avançar as ciências, pois na verdade as corrompe; mas pode ser de interesse para as ações humanas.[11] A descoberta da forma tem-se como impossí­vel.[12] E a causa eficiente e a causa material (tal como são investigadas e admitidas, isto é, como remotas e sem o processo latente no sentido da forma) são perfunctórias e superficiais, em nada benefi­ciando a ciência verdadeira e ativa. Não nos esquecemos, porém, de antes ter notado e procurado sanar o erro da mente humana que consiste em atribuir à forma o afirmado da essência.[13] Ainda que na natureza, de fato, nada mais exista que corpos individuais que produ­zem atos puros individuais, segundo uma lei, na ciência é essa mesma lei, bem assim a sua investigação, na descoberta e explicação, que se constitui no fundamento para o saber e para a prática. Pelo nome de forma entendemos essa lei e seus parágrafos,[14] mormente porque tal vocábulo é de uso comum e se tornou familiar.
III
     Quem conhece a causa de alguma natureza (como a da brancura ou do calor), somente em determinados sujeitos, possui uma ciência imperfeita, que pode produzir um efeito em apenas determinadas matérias (entre as que são suscetíveis), esse possui igualmente um poder imperfeito. E quem conhece apenas a causa eficiente e a causa material (que são causas instáveis e não mais que veículos que em certos casos provocam a forma), esse pode chegar a novas desco­bertas em matéria algo semelhante e para isso preparada, mas não conseguir mudar os limites mais profundos e estáveis das coisas. Mas o que conhece as formas abarca a unidade da natureza nas suas mais dissímeis matérias e, em vista disso, pode descobrir e provocar o que até agora não se produziu, nem pelas vicissitudes naturais, nem pela atividade experimental, nem pelo próprio acaso e nem sequer chegou a ser cogitado pela mente humana. Assim é que da descoberta das formas resultam a verdade na investigação e a liberdade na operação.
IV
     Ainda que as vias que levam ao humano poder e à humana ciên­cia estejam muito ligadas e sejam quase coincidentes, apesar do perni­cioso e inveterado hábito de se propender para as abstrações, é muito mais seguro urdir e derivar as ciências dos mesmos fundamentos apropriados para o lado prático e deixar que esta designe e determine o lado contemplativo. Em vista disso, para se gerar ou introduzir em um corpo dado uma certa natureza, é necessário se considere devidamente o preceito ou direção ou dedução que deve ser escolhido, e isso deve ser feito em termos claros e não abstrusos.
     Por exemplo, se alguém se propõe a dotar a prata da cor amarela do ouro ou aumentar-lhe o peso (observando as leis da matéria) ou tornar transparente uma pedra não transparente, ou dar resistência ao vidro, ou vegetação a um corpo não vegetal, deve averiguar a regra ou a dedução mais conveniente para o caso. Com tal propósito, em pri­meiro lugar, estará, sem dúvida, interessado em um procedimento que não frustre a empresa, nem leve ao malogro o experimento. Em segun­do lugar, estará igualmente interessado em um procedimento que não o constranja nem o force ao uso de certos meios e modos particulares de proceder. Pois pode ocorrer que não disponha de tais meios ou não tenha possibilidade ou condições de consegui-los. E se há outros meios ou modos para reproduzir a natureza desejada (além daqueles preceitos), eles poderiam estar ao alcance do operador. E este poderia, pela rigidez dos preceitos, anular os resultados. Em terceiro lugar, desejará que lhe seja indicado algo que não seja tão difícil quanto a própria operação investigada, mas que seja mais próximo da prática.
     A regra verdadeira e perfeita para o operar pode ser assim enun­ciada: que seja certa, livre e predisposta ou que esteja ordenada para a ação.[15] O mesmo deve ser levado em conta para a descoberta da forma. Pois a forma de uma natureza dada é tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a natureza. Está presente sempre que essa natureza também o esteja, universalmente a afirma e é constante­mente inerente a ela. E essa mesma forma é de tal ordem que, se se afasta, a natureza infalivelmente se desvanece; que sempre que está ausente está ausente a natureza, quando totalmente a nega, por só nela estar presente. Finalmente, a verdadeira forma é tal que deduz a natureza de algum princípio de essência [16] que é inerente a muitas naturezas e é mais conhecido (como se diz) na ordem natural que a própria forma.[17] Por conseguinte, o enunciado e a regra do verda­deiro e perfeito axioma do saber: que se descubra outra natureza que seja conversível à natureza dada e que ainda seja a limitação de uma natureza mais geral, à maneira de um verdadeiro gênero.[18] Estes dois enunciados, um ativo e outro contemplativo, são a mesma coisa, pois o que é mais útil na prática é mais verdadeiro no saber.[19]
V
     A regra [20] ou axioma para a transformação dos corpos é de duas espécies. A primeira considera o corpo como um conjunto ou conjugação de naturezas simples. Veja-se, no ouro estão reunidas as seguintes características: ser amarelo, ter um determinado peso, ser maleável e dúctil até determinado limite, não ser volátil ou perder a sua quantidade sob a ação do fogo, liquefazer-se com determinada fluidez, separar-se e solver-se por determinados meios, e outras natu­rezas semelhantes que se encontram no ouro. Desse modo, tal axioma deduz a coisa das formas das naturezas simples. Quem conhecer as formas e os modos de se introduzir o amarelo, o peso, a ductilidade, a fixidez, a fluidez, a solução, etc., e suas graduações e modos, saberá como proceder para conjugar em um único corpo essas qualidades, para conduzi-las à transformação em ouro.[21] Essa espécie de operação pertence à ação primária. Pois o método de se produzir uma única natureza simples é o mesmo que o de muitas; apenas o homem se sente mais limitado e tolhido nas suas operações, quando se trata de várias, em vista da dificuldade de coordenar essas naturezas que não se unem tão facilmente, como pelas trilhas ordinárias do mundo natural. Contudo, deve ser lembrado que tal método de operar [22] que distingue as naturezas é constante, eterno e universal, e abre amplas vias ao poder humano, e isso a um ponto tal que, no estado atual das coisas, a mente humana pode sequer cogitar ou representar.
     A segunda espécie de axiomas (a que depende da descoberta do processo latente) [23] não procede das naturezas simples, mas dos cor­pos concretos, tal como se encontram na natureza em seu curso ordi­nário. Por exemplo, se se trata de investigar, a partir de sua origem, o modo e o processo de formação do ouro ou de qualquer outro metal ou a pedra, a partir de seus primeiros mênstruos [24] ou de seus rudi­mentos até o estado acabado de mineral; ou apreender o processo pelo qual se gera a erva, a partir das primeiras concreções do suco na terra ou a partir da semente até a planta formada, acompanhando toda a sucessão de movimentos e todos os diversos e continuados esforços da natureza; igualmente, investigar a geração dos animais, discernindo a partir do coito até o parto. E proceder da mesma forma em relação aos demais corpos.
     Mas, na verdade, essa investigação não se restringe à geração dos corpos, mas se estende aos outros movimentos e operações da natureza. Assim, por exemplo, se se trata de investigar a série com­pleta e contínua da ação da nutrição, a partir da ingestão inicial do alimento até a sua perfeita assimilação; ou o movimento involuntário dos animais, a partir da primeira impressão da imaginação e dos continuados esforços do espírito [25] até as flexões e movimentos dos membros; ou os distintos movimentos da língua, dos lábios e dos de­mais instrumentos até a emissão de vozes articuladas, tudo isso, com efeito, também respeita às naturezas concretas ou coligadas e conju­gadas. Estas podem ser consideradas como modos de ser habituais, particulares e especiais da natureza e não como leis fundamentais e comuns que constituem as formas. Não obstante, deve-se reconhecer que este segundo procedimento é mais expedito, mais disponível e ofe­rece mais esperanças que o primeiro.
     E da mesma forma, a parte operativa, que corresponde a esta especulativa, estende e promove a operação, a partir do que ordinaria­mente se descobre na natureza, indo para as mais próximas, até as que se não distanciam muito destas. Mas as operações mais profun­das e mais radicais na natureza dependem sempre dos primeiros axio­mas. Em vista disso, onde não é dada ao homem a faculdade de ope­rar, mas apenas de saber, como em relação às coisas celestes — pois não é possível ao homem agir sobre as coisas celestes, para mudá-las ou transformá-las —, a investigação do próprio fato ou da verdade da coisa, bem como o conhecimento das causas e dos consensos, refere-se tão somente àqueles axiomas primários e universais,[26] relativos às naturezas simples (como os relacionados à natureza da rotação espontânea, da atração ou virtude magnética e de muitas outras coi­sas, ainda mais comuns que os próprios corpos celestes). E que nin­guém espere resolver a questão de que se o movimento diurno é da terra ou do céu antes de haver compreendido a natureza da rotação espontânea.
VI
     O processo latente de que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente dos homens, com as preocupações a que ora se entre­gam. Não o entendemos, de fato, como medidas, ou signos ou escalas dos processos visíveis dos corpos, mas como um processo conti­nuado, que na maior parte escapa aos sentidos.
     Por exemplo, em toda geração ou transformação de corpos, e necessário investigar o que se perde e volatiliza; o que permanece ou se acrescenta; o que se dilata e o que se contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e o que se divide; o que impele e o que retar­da; o que domina e o que sucumbe; e muitas outras coisas.
     E essa investigação não se deve limitar à geração e às transfor­mações dos corpos, mas deve estender-se, igualmente, ao que ante­cede e ao que sucede; ao que é mais veloz e ao que é mais lento; ao que produz e ao que regula o movimento; e assim por diante. Todas essas coisas são desconhecidas e deixadas intactas pelas ciências, de textura grosseira e inábil,[27] como as que se professam. De vez que toda ação natural se cumpre em mínimos graus,[28] ou pelo menos em proporções que não chegam a ferir os sentidos, ninguém poderá governar ou transformar a natureza antes de havê-lo devidamente no­tado e compreendido.
VII
     A investigação e a descoberta do esquematismo latente [29] é igualmente coisa nova, à semelhança da descoberta do processo laten­te e da forma. Ainda nos encontramos nos átrios da natureza e não estamos preparados para adentrar-lhe os íntimos recessos. E nenhum corpo pode ser dotado de uma nova natureza, ou ser transformado, com acerto e sucesso, em outro corpo, sem um completo conheci­mento do corpo que se quer alterar ou transformar. Sem o que, acaba­rão sendo usados procedimentos vãos, ou pelo menos difíceis e penosos e impróprios para a natureza do corpo em que se opera. Daí ser neces­sária a nova via, adequadamente provida.
     Na anatomia dos corpos orgânicos (como os do homem e dos animais) foram adotados procedimentos bastante acertados e fecun­dos; trata-se de tarefa delicada e que efetua um ótimo escrutínio da natureza. Mas esse gênero de anatomia dependendo do visível e dos sentidos, em geral, só vige para os corpos orgânicos. E isso é, aliás, algo óbvio e pronto, em comparação com a verdadeira anatomia do esquematismo latente dos corpos tidos por similares, especialmente das coisas específicas e de suas partes, como o ferro e a pedra, nas partes similares da planta e do animal, como a raiz, a folha, a flor, a carne, o sangue, o osso, etc. E é de se notar que mesmo nesse gênero não se interrompeu a indústria humana. Assim o indica a separação dos corpos similares pela destilação, bem como outros modos de separação, que procuram fazer aparecer a dessemelhança interna, congregando as partes homogêneas, e isso que é usual atende também ao que buscamos; conquanto seja algo falaz, uma vez que muitas naturezas são imputadas e atribuídas à separação, como se antes existissem no composto, na verdade foram estabelecidas e superinduzidas recentemente [30] pelo fogo, e pelo calor e por outros métodos de sepa­ração. Mas, ademais, esta é uma pequena parte do trabalho de desco­berta do verdadeiro esquematismo do composto, uma vez que o esquematismo é algo tão sutil e preciso que a ação do fogo mais con­funde que elucida.
     Em vista disso, a separação e solução dos corpos não devem ser feitas pelo fogo, mas pela razão e pela verdadeira indução, com auxílio de experimentos; e por meio da comparação com outros cor­pos e pela redução a naturezas simples e a suas formas que se juntam e combinam no composto.[31] Enfim, deve-se deixar Vulcano por Mi­nerva, se se almeja trazer à luz as verdadeiras contexturas dos corpos e os seus esquematismos, de que dependem todas as propriedades ocultas e, como se costumam chamar, propriedades e virtudes específicas das coisas e donde, também, se retiram as normas capazes de conduzir a qualquer alteração ou transformação.
     Por exemplo, é de se investigar o que em todo corpo corresponde ao espírito [32] e o que corresponde à essência tangível; e se esse mesmo espírito é copioso e túrgido ou jejuno e parco; se é tênue ou espesso; se mais próximo do ar ou do fogo; se é ativo ou apático; se é delgado ou robusto; se em progresso ou em regresso; se é partido ou continuo; se concorde com as coisas exteriores e com o ambiente ou em desa­cordo, etc. O mesmo deve ser feito em relação à essência tangível (que não é menos passível de diferenciações que o espírito), e seus pêlos, fibras e sua múltipla contextura, bem como a colocação do espírito na substância do corpo e seus poros, condutos, veias e célu­las, e os rudimentos ou tentativas de corpo orgânico. Tudo isso faz parte da mesma investigação. Mas mesmo aqui, como em toda investigação do esquematismo latente, a luz verdadeira e clara, que desfaz toda obscuridade e sutileza, só pode provir dos axiomas primários.
VIII
     E nem por isso se deve recorrer aos átomos que pressupõem o vazio[33] e matéria estável [34] (ambos falsos), mas às partículas verda­deiras,[35] tal como se encontram. Tal sutileza, tampouco, é de causar espanto, como se fosse inexplicável. Ao contrário, quanto mais a investigação se dirige às naturezas simples tanto mais se aplainam e se tornam perspicazes as coisas, passando o objeto do multíplice ao simples, do incomensurável ao comensurável, do insensível ao calcu­lável, do infinito e vago ao definido e certo, como ocorre com as letras do alfabeto e com as notas da música. Todavia, a investigação natural se orienta da melhor forma quando a física é rematada com auxílio da matemática.[36] E então, que ninguém se espante com as multiplicações e com os fracionamentos, pois, quando se trata com números, tanto faz colocar ou pensar em mil ou em um, ou na milési­ma parte ou no inteiro.
IX
     Das duas espécies de axiomas [37] antes estabelecidas [38] origina-se a verdadeira divisão da filosofia e das ciências, devendo-se, bem entendido, ajustar vocábulos comumente aceitos (os mais apropriados para indicar o que pretendemos) ao sentido que lhes emprestamos.
     Assim, a investigação das formas que são (pelo seu princípio e lei)[39] eternas e imóveis constitui a Metafísica.[40] A investigação da causa eficiente, da matéria, do processo latente e do esquematismo latente (que dizem respeito ao curso comum e ordinário da natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a Física. E a elas subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à Metafísica, a Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias que abrem e do maior domínio sobre a natureza que propiciam.
X
     Uma vez estabelecido o escopo da ciência, passamos aos precei­tos e na ordem menos sinuosa e obscura possível. E as indicações acerca da interpretação da natureza compreendem duas partes gerais: a primeira, que consiste em estabelecer e fazer surgir os axiomas da experiência; a segunda, em deduzir e derivar experimentos novos dos axiomas.[41] A primeira parte divide-se em três administrações,[42] a saber, administração dos sentidos, administração da memória e administração da mente ou da razão.[43]
     Em primeiro lugar, com efeito, deve-se preparar uma História Natural e Experimental que seja suficiente e correta (exata), pois é o fundamento de tudo o mais. E não se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo.
     Mas na verdade, a história natural e experimental é tão vária e ampla que confunde e dispersa o intelecto, se não for estatuída e orga­nizada segundo uma ordem adequada. Por isso devem ser preparadas as tábuas e coordenações de instâncias,[44] dispostas de tal modo que o intelecto com elas possa operar.
     Mas, mesmo assim procedendo, o intelecto abandonado a si mesmo e ao seu movimento espontâneo é incompetente e inábil para a construção dos axiomas, se não for orientado e amparado. Daí, em terceiro lugar, deve ser adotada a verdadeira e legítima indução, que é a própria chave da interpretação. Contudo, devemos começar pelo fim e depois retroceder em direção ao resto.[45]
XI
     A investigação das formas assim procede: sobre uma natureza dada deve-se em primeiro lugar fazer uma citação perante o intelecto [46] de todas as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se encontrem em matérias dessemelhantes.[47] E essa coleção deve ser feita historicamente,[48] sem especu­lações prematuras ou qualquer requinte demasiado. Como exemplo, imagine-se uma investigação sobre a forma do calor:[49]
     Instâncias conformes (convenientes) na natureza do calor [50]
     1. Os raios do sol, sobretudo no verão e ao meio-dia.
     2. Os raios do sol refletidos e condensados, como entre montes ou por muros e sobretudo sobre espelhos.
     3. Meteoros ígneos.
     4. Raios flamejantes.
     5. Erupções de chamas das crateras dos montes, etc.
     6. Chamas de todas as espécies.
     7. Sólidos em combustão.
     8. Banhos quentes naturais.
     9. Líquidos ferventes ou aquecidos.
     10. Vapores e fumaças quentes, e o próprio ar que adquire um calor fortíssimo e violento, quando fechado, como nas fornalhas.
     11. Certos períodos de seca causados pela própria constituição do ar, fora de estação.
     12. O ar fechado e encerrado em certas cavernas, sobretudo no inverno.
     13. Todos os corpos cobertos por pêlos, como a lã, os pêlos dos ani­mais, a plumagem, têm sempre alguma tepidez.
     14. Todos os corpos sólidos, líquidos, densos ou rarefeitos (como o próprio ar) aproximados por algum tempo do fogo.
     15. As faíscas produzidas por fortes impactos da pedra ou do aço.
     16. Todo corpo que tenha um forte atrito, como a pedra, a madeira, o pano, etc; como os lemes ou os eixos das rodas que às vezes provocam chamas, ou como costumam fazer fogo os índios ocidentais, por atrito.
     17. As ervas verdes e úmidas, juntadas e amassadas, como as rosas, comprimidas nos cestos; como o feno que, guardado úmido, às vezes produz fogo.
     18. O ferro pode começar a dissolver com água forte (ácido) em reci­piente de vidro sem uso do fogo; e mesmo o estanho sob as mes­mas condições, mas menos intensamente.
     19. A cal viva, aspergida com água.
     20. Os animais, especialmente nas partes internas, ainda que o calor dos insetos, pela sua pequenez, não seja percebido pelo tato.
     21. O esterco do cavalo e semelhantes excrementos recentes de animais.
     22. O óleo forte do enxofre e do vitríolo produzem o efeito do calor, queimando linho.
     23. O óleo de orégão, e outros semelhantes, produz os efeitos do calor, queimando a parte óssea dos dentes.
     24. O espírito do vinho forte e bem retificado produz os efeitos do calor, e isso a tal ponto que, se lhe jogar uma clara de ovo, esta endurece e se torna branca, quase como que ocorre com o ovo cozido, e também o fato, que fica ressecado e com crosta, como quando é tostado.
     25. Os aromas e as ervas quentes como o estragão, o mastruz velho, etc., ainda que na mão não pareçam quentes, nem inteiros ou em pó, mas quando mastigados são quentes e parecem queimar à lín­gua e ao paladar.
     26. O vinagre forte e todos os ácidos, aplicados a partes sem pele, como o olho, a língua, ou sobre uma parte ferida, produzem uma dor não muito diferente da produzida pelo calor.
     27. Mesmo o frio quando agudo e intenso produz sensação de queimadura.[51]
     28. Outras instâncias.
     A esta chamamos de Tábua de essência e de presença.
XII
     Em segundo lugar, deve-se fazer uma citação perante o intelecto, das instâncias privadas da natureza dada, uma vez que a forma, como já foi dito, deve estar ausente quando está ausente a natureza, bem como estar presente quando a natureza está presente.[52]
     Contudo, se se fosse examinar todas as instâncias, a investigação iria ao infinito.
     Por isso, é necessário que se limite o recolhimento das instâncias negativas em correspondência com as positivas e considerem-se as privações apenas naqueles objetos muito semelhantes a aqueles em que elas estão presentes e são manifestas.[53] E a esta resolvemos cha­mar de Tábua de desvio (ou declinação) ou de ausência em fenômenos próximos.[54]
     Instâncias em fenômenos próximos, privados da natureza do calor. [55]
     Primeira instância negativa oposta à primeira instância afirmativa.
     1. Os raios da lua, das estrelas e dos cometas não trazem calor ao tato, mas, ao contrário, é no plenilúnio que se observam os frios mais rigorosos. Todavia, acredita-se que quando há conjunção entre o sol e as estrelas fixas maiores, ou quando delas está próximo, há aumento do calor solar; é o que ocorre quando o sol está no signo de Leão e nos dias de canícula.[56]
     2. (Oposta à segunda afirmativa.) Os raios solares na chamada região intermediária não produzem calor; para o que o vulgo dá uma razão não de todo má: esta região não está nem próxima do sol, donde vêm os raios, nem da terra, que os reflete. É o que se observa nos picos das montanhas (a não ser quando muito altos), onde se encontram neves eternas. Por outro lado, observou-se que no pico de Tenerife, bem como nas cumieiras dos Andes do Peru, os cumes não apresentam neve, que se fixa nas partes mais baixas. Fala-se ainda que no vértice desses montes o ar não é frio, mas rarefeito e penetrante, e isso a tal ponto que, nos Andes, magoa e ofende os olhos, pela sua intensidade, e irrita a boca do estômago e provoca vômitos. Foi nota­do pelos antigos que no vértice do Olimpo era tal a tenuidade do ar que obrigava aos que o escalavam a levarem esponjas embebidas em água e vinagre, para aplicação na boca e no nariz, por não ser o ar suficiente à respiração.[57] Relatam, ainda, aqueles que era tal a serenidade e tranqüilidade do ar e ausência de chuvas, neves e ven­tos,[58] que as letras escritas com o dedo nas cinzas, sobre o altar de Júpiter, pelos fautores de sacrifícios, duravam todo um ano, sem se alterarem. E ainda hoje os que sobem aos cimos do pico de Tenerife caminham à noite e não à luz do dia; e ao surgir do sol os guias os apressam a descer rapidamente, ante o perigo (segundo parece) de que a rarefação sufoque e dissolva o espírito.
     3. (Oposta à segunda afirmativa.) A reflexão dos raios do sol nas regiões próximas dos círculos polares é muito fraca e ineficaz em calor, e os belgas que invernaram na Nova Zembla [59] esperando a liberação e o desencalhe de sua nave dos gelos (que a aprisiona­vam), no início do mês de julho, viram frustradas as suas esperanças e tiveram que recorrer a botes. Assim os raios do sol diretos parecem de pouco poder, mesmo sobre terreno plano; nem também os seus reflexos, a não ser quando são multiplicados e reunidos, o que ocorre quando o sol bate perpendicularmente, pois, em tal caso, os ângulos formados pelos raios incidentes são mais agudos, e assim as linhas dos raios ficam mais próximas entre si. E de outro lado, nas posições muito oblíquas do sol, os ângulos são muito obtusos e por isso as linhas dos raios estão mais distantes entre si. Mas deve ser notado que muitas podem ser as operações dos raios do sol, com respeito ao problema da natureza do calor, que não estão ao alcance do nosso tato, e, mesmo assim, afetam outros corpos.
     4. Faça-se o seguinte experimento:[60] Tome-se uma lente,[61] feita de forma contrária aos espelhos e seja ela colocada entre as mãos e os raios do sol. Observe-se que nessa posição o calor do sol é diminuído, da mesma forma que o espelho o aumenta e intensifica. Pois é mani­festo que os raios ópticos, em um espelho que apresenta diferença de espessura entre o centro e as partes laterais, oferecem imagens [62] mais difusas ou concentradas. O mesmo deve ocorrer em relação ao calor.
     5. Faça-se cuidadosamente o experimento de se os raios da lua, passando por espelhos ustórios bastante fortes e bem constituídos, podem produzir algum grande calor, mesmo que diminuto. Mas como essa grande tepidez é de tal forma sutil e fraca a ponto de não ser per­cebida pelo tato, seria necessário recorrer àqueles vidros que indicam o estado frio ou quente do ar,[63] de modo que os raios da lua, caindo em um espelho ustório, fossem refletidos sobre a superfície do vidro, para se verificar a ocorrência do abaixamento do nível da água, devi­do ao calor.
     6. (À segunda instância.) Experimente-se colocar um vidro ustó­rio sobre um corpo quente que não seja nem radiante, nem luminoso, como o ferro ou a pedra aquecidos, mas não em ignição, ou água fer­vente e coisas semelhantes, e observe-se se ocorre um aumento ou intensificação do calor, como nos raios do sol.[64]
     7. (À segunda instância.) Experimente-se ainda colocar um espelho ustório sobre a chama comum.
     8. (Em oposição à terceira instância.)[65] Não se pode deixar de observar o constante e manifesto efeito dos cometas (se se reconhece como estando compreendidos entre os meteoros)[66] no aumento do calor na época de sua oposição, embora tenha sido notado que em seguida surge um período de seca. Contudo, as traves [67] ou colunas luminosas e as aberturas do céu [68] e fenômenos semelhantes parecem mais freqüentes no inverno que no verão e especialmente em épocas de intensos frios, acompanhados de seca. Mas os raios, os relâmpagos e os trovões dificilmente ocorrem no inverno, mas na época dos gran­des calores. As chamadas estrelas cadentes supõe-se vulgarmente constituídas de uma matéria viscosa, resplandecente e acesa, em lugar de qualquer outra matéria ígnea mais consistente. Mas isso deve ser verificado posteriormente.
     9. (Oposição à quarta instância.) Há certas coruscações que pro­duzem luz, mas não queimam. E ocorrem sempre sem (troar) trovão.
     10. (Em oposição à quinta instância.) As ejeções e erupções de chamas ocorrem tanto nas regiões frias como nas quentes, como na Islândia e Groenlândia. Por outro lado, as árvores das regiões frias são mais inflamáveis, mais resinosas e de mais pez que as das regiões cálidas, como é o caso do abeto, pinho e outras. Mas não se investi­gou satisfatoriamente em que lugares e em que natureza de solo costu­mam ocorrer essas erupções, para que possamos opor a negativa à afirmativa.
     11. (Em oposição à sexta instância.) Toda chama é sempre mais ou menos quente, não havendo assim instância negativa a se lhe opor; mas fala-se que o chamado fogo-fátuo que às vezes é observado nas paredes não tem muito calor, assim também a chama do espírito do vinho que é clemente e suave. Mas ainda mais suave parece ser a chama que, conforme certas histórias fidedignas e sérias, apareceu em torno da cabeça de meninos e meninas e que, sem queimar, apenas circulava à sua volta.[69] De qualquer forma, é absolutamente certo que, em volta do cavalo que sua, durante viagens noturnas e em épo­cas de seca, aparece certa fulguração, sem calor manifesto. Há pouco tempo ficou famoso, e quase tomado como milagre, o fato do peito de uma menina, depois de algum movimento e fricção ter emitido faís­cas. Isso talvez tenha acontecido devido ao alúmen ou aos sais com que se tinha tingido a veste e que acabaram colados e incrustados, formando assim uma espécie de copa, que se abriu. Também é igual­mente certo que todo açúcar, tanto o refinado quanto o natural, quan­do se encontra endurecido e é quebrado ou raspado no escuro, produz fulgor.
     Da mesma forma, a água marinha e salgada, à noite, fortemente esbatida pelos remos, pode fulgurar. E também, durante as tempesta­des, a espuma do mar, fortemente agitada, produz fulgor (fachos) e a que os espanhóis costumam chamar de pulmão marinho. Nem foi adequadamente investigada aquela chama que os antigos navegantes chamavam por Castor e Pollux e os modernos designam por fogo de Santelmo.[70]
     12. (Em oposição à sétima instância.) Todo corpo (ígneo) incandescente que tenha o rubor do fogo, mesmo sem chama, é em qualquer caso quente, e para tal instância afirmativa não há corres­pondente negativa. Mas o que parece mais se aproximar desse fato é o da madeira podre, que resplandece à noite e não parece conter calor. As escamas dos peixes em putrefação também resplandecem à noite e não apresentam calor ao tato. Da mesma forma, o corpo do vaga-lume ou mosca chamada Lucíola não oferece calor ao tato.
     13. (Em oposição à oitava instância.) Não foi adequadamente investigado o lugar de origem e a natureza do solo donde emanam as águas termais e por isso não se lhes contrapõe instância negativa.
     14. (Em oposição à nona instância.) Aos líquidos ferventes contrapõe-se a instância negativa da peculiar negativa dos líquidos em geral. Pois não se encontra na natureza que seja em si mesmo quente e assim permaneça. Ao contrário, o calor ocorre por tempo determinado, como natureza que lhe é acrescentada. Assim é que os líquidos que no seu poder e nos seus efeitos são muito quentes, como o espírito do vinho, os óleos químicos aromáticos, e ainda os óleos do vitríolo e do enxofre e outros mais, que queimam após certo tempo, são frios ao primeiro contato. E a água termal, colocada em um reci­piente e longe de sua origem, perde a efervescência, como a água leva­da ao fogo. De outro lado, é verdade que os corpos oleosos parecem ao tato menos frios que os aquosos; da mesma forma o óleo menos que a água, a seda menos que o linho. Mas isso de fato pertence à Tábua de Graus do Frio.
     15. (Em oposição à décima instância.) De idêntica maneira, ao vapor quente opõe-se a instância negativa derivada da própria natu­reza do vapor, tal como é comumente encontrado. As exalações dos corpos oleaginosos, mesmo sendo facilmente inflamáveis, não são quentes, quando não são exalações recentes de um corpo quente.
     16. (Em oposição à décima primeira instância.) De idêntica maneira, ao ar quente se opõe a instância negativa derivada da própria natureza do ar. Não encontramos entre nós ar quente, a não ser quando encerrado, submetido à fricção ou aquecido pelo sol, pelo fogo ou por qualquer outro corpo quente.
     17. (Em oposição à décima primeira instância.) A instância negativa das estações frias é oposta mais devido aos outros períodos do ano, como acontece quando sopram Euro ou Bóreas.[71] O contrá­rio acontece quando sopra o Austro ou o Zéfiro.[72] Mas uma tendência para a chuva, especialmente no inverno, vem acompanhada de temperaturas tépidas, e o gelo, de temperaturas frias.
     18. (Em oposição à décima segunda instância.) Contrapõe-se a instância negativa do ar confinado nas cavernas no verão. E a res­peito desse ar confinado é necessária uma cuidadosa investigação. Em primeiro lugar, há dúvidas, não sem motivo, a respeito da natureza do ar relacionado ao frio e ao calor. Pois o ar manifestamente re­cebe o calor dos corpos celestes; o frio, ao contrário, talvez por exala­ção da terra, e na chamada região intermediária dos vapores das neves. Dessa forma, não se pode estabelecer um juízo sobre a natu­reza do ar através do ar a céu descoberto e exposto, mas é possível um juízo mais seguro a respeito do ar confinado. Mas é necessário que o ar seja colocado em um recipiente de material de tal ordem que não venha a impregná-lo de calor ou frio de sua própria natureza e também que não receba influência do ar exterior. Faça-se, pois, o experimento com um recipiente de argila, revestido várias vezes com couro para protegê-lo do ar exterior e mantenha-se bem fechado por três ou quatro dias. Uma vez aberto o recipiente, verificar-se-á a tem­peratura com a mão e com o vidro graduado.[73]
     19. (Em oposição à décima terceira instância.) Subsiste igual­mente a dúvida a respeito da tepidez da lã das peles, das plumas e coi­sas semelhantes; se é resultante de algum débil calor que lhe é ima­nente, devido à sua origem animal ou da matéria graxa e oleaginosa que por sua própria natureza é afim ao calor ou simplesmente do ar fechado e separado, já mencionado no parágrafo anterior, O ar sepa­rado do ar externo parece guardar algum calor. Para tanto, faça-se experimentar com material fibroso de linho, em vez da lã ou pluma ou seda que são de origem animal. Deve ainda ser observado que todos os pós (manifestamente misturados ao ar) são menos frios que os cor­pos íntegros de que provêm. Pelo mesmo motivo, acreditamos que toda espuma (como tudo que contém ar) seja menos fria que o liquido que lhe deu origem.
     20. (Em oposição à décima quarta instância.) Não há instância negativa a se lhe opor. Com efeito, não se encontra entre nós nenhu­ma coisa tangível ou gasosa que aproximada do fogo não adquira calor. Contudo, mesmo aí, é necessário distinguir-se entre coisas que adquirem calor mais rapidamente, como o ar, o azeite e a água, e ou­tras mais lentamente, como a pedra e os metais. Mas esses fatos per­tencem à Tábua de Grau.
     21. (Em oposição à décima quinta instância.) A esta instância não se opõe qualquer outra negativa, exceção feita da observação de que não se conseguem cintilações (ou fagulhas) do sílex ou do aço ou de outra substância dura, a não ser com a fragmentação de pequenas partículas dessa substância, seja pedra ou metal. Também o ar não pode produzir cintilações pelo simples atrito, como julga o vulgo. Dessa forma, essas cintilações, devido ao peso do corpo em ignição, tendem mais para baixo que para cima, e, depois de extintas, resultam numa espécie de grãos de fuligem.
     22. (Em oposição à décima sexta instância.) Pensamos não haver negativa a ser oposta a essa instância. Não há entre nós corpo tangível (ou palpável) que manifestamente não se aqueça pelo atrito. Tanto que os antigos imaginaram que os corpos celestes não tinham outro caminho ou possibilidade de aquecimento que o atrito do ar provocado pela sua rápida rotação.[74] Neste assunto deve ainda ser investigado se os corpos arruinados por máquinas, como as balas dos canhões, pela própria percussão contraem algum grau de calor, que depois de caídas ainda conservam, O ar agitado antes se resfria que aquece, como se observa nos ventos, com o fole e com o sopro forte da boca. Mas tais movimentos não são suficientemente rápidos a ponto de provocarem calor e trata-se de movimentos do todo e não partículas, daí não ser de estranhar por não haver ocorrência de calor.
     23. (Em oposição à décima sétima instância.) A respeito desta instância, é necessária uma investigação mais acurada. Com efeito, tudo indica que as ervas e os vegetais verdes e úmidos encerram uma espécie de calor oculto. Mas é algo tão tênue que em nenhuma planta isolada é perceptível ao tato, mas só depois de reunidas e fechadas, e de tal forma que as suas exalações não se comuniquem com o ar exte­rior, mas se misturem entre si, é que surge um calor perceptível e às vezes flamas, se a matéria a tanto se presta.
     24. (Em oposição à décima oitava instância.) Também a res­peito desta instância é necessária uma investigação mais acurada. De fato, parece que a cal viva, quando aspergida de água, produz calor, ou pela concentração do calor que antes estava disperso (tal como se diz ocorrer com as ervas abafadas) ou pela irritação ou exasperação do espírito do fogo, em contato com a água, que provoca uma espécie de conflito e antiperístase.[75] Para se saber qual das duas é a verda­deira causa, basta colocar-se óleo no lugar da água. O óleo vale tanto quanto a água para concentrar o espírito encerrado, mas não para irritá-lo. E o experimento deve ser ampliado às cinzas e aos resíduos de diversos corpos e fazendo-se uso de vários líquidos.
     25. (Em oposição à décima nona instância.) A esta instância se opõe a negativa de alguns metais que são mais moles e instáveis. Assim, as lâminas de ouro dissolvidas pela água-régia [76] não provo­cam qualquer calor ao tato quando dessa operação, o mesmo se dando com o chumbo quando dissolvido em água-forte [77] e, pelo que recordamos, também com o mercúrio. Mas a prata provoca algum calor e também o cobre, pelo que me lembro, e ainda de forma mais manifesta o estanho, e os que vão mais longe são o ferro e o aço, que não só produzem um forte calor ao se dissolverem como também uma violenta ebulição. Dessa forma, tudo parece indicar que o calor se produz pelo conflito, graças ao qual a água forte penetra, funde e des­prende as suas partículas, enquanto o corpo, por seu turno, resiste. Mas, quando os corpos cedem com facilidade, a custo se produz o calor.
     26. (Em oposição à vigésima instância.) Não se podem opor instâncias negativas ao calor dos animais e nem tampouco ao dos insetos em vista das reduzidas dimensões de seus corpos, como antes já foi dito.[78] Com efeito, os peixes, comparados com animais terrestres, apresentam algum grau de calor, em lugar de sua absoluta ausên­cia. Nos vegetais e nas plantas não se observa qualquer grau de calor perceptível ao tato, o mesmo acontecendo em relação às suas resinas e à sua medula recentemente aberta. Todavia, nos animais observa-se uma grande variedade de calor, tanto em suas partes (de fato, não é o mesmo o calor do coração, o do cérebro e o das partes externas do corpo) quanto em seus estados acidentais, como nos exercícios ve­ementes ou nas febres.
      27. (Em oposição à vigésima primeira instância.) A esta instân­cia é muito difícil opor-se uma negativa. Pois mesmo os excrementos animais não recentes têm manifestamente um calor potencial, como pode ser verificado pelo untamento do solo.
     28. (Em oposição à vigésima segunda e vigésima terceira instân­cias.) Os líquidos (chamem-se águas ou óleos) que têm grande e inten­sa acidez operam com o calor na fragmentação dos corpos e quei­mam-nos depois de algum tempo. Mas em princípio não são quentes quando em contato com a mão. Agem por analogia [79] e segundo a porosidade dos corpos com os quais se unem. De fato, a água-régia dissolve o ouro, mas não a prata; por outro lado, a água-forte dissolve a prata, mas não o ouro. E nem um nem outro dissolve o vidro. O mesmo acontecendo com os demais.
     29. (Em oposição à vigésima quarta instância.) Faça-se experi­mento com o espírito do vinho sobre madeira, ou sobre manteiga, cera ou peixe, para verificar se o seu calor os liquefaz e até que ponto. De fato, a instância vinte e nove mostra que este espírito tem um poder análogo ao do calor, em relação às incrustações. Por isso deve ser feito o mesmo experimento para a liquefação. Proceda-se também com o vidro graduado,[80] côncavo na extremidade superior externa. Coloque-se nessa cavidade exterior o espírito do vinho bem retificado e tampe-se para que melhor retenha o calor e observe-se se o seu calor faz descer o nível da água.[81]
     30. (Em oposição à vigésima quinta instância.) As ervas aromáticas e as ervas ácidas são cálidas ao paladar e isso é mais sen­tido nas partes internas do organismo. Por isso é necessário que se verifique em quais outras matérias igualmente provocam calor. Con­tam os navegantes que quando se abrem subitamente montes ou maços de ervas aromáticas, guardados durante muito tempo, os pri­meiros que as movem ou pegam correm perigo de febres ou de infla­mações.[82] Igualmente poder-se-ia fazer experimento com o pó dessas ervas para verificar se seca o toucinho e a carne, como a fumaça do fogo.
     31. (Em oposição à vigésima sexta instância.) A acidez ou força penetrante também pode ser encontrada seja em corpos frios, como o vinagre e o óleo de vitríolo, seja em corpos quentes como o óleo de orégão e outros semelhantes. Tanto uns como outros provocam dor nos animais e nos corpos inanimados, fundem e consomem suas par­tes. A isso não se opõe instância negativa, pois nos corpos animados não ocorre dor sem alguma dose de calor.
     32. (Em oposição à vigésima sétima instância.) O frio e o calor têm muitas ações em comum, ainda que em formas e proporções dife­rentes. Com efeito, mesmo a neve parece queimar, depois de algum tempo, as mãos das crianças e o frio preserva as carnes da putrefação [83] tanto quanto do fogo. E, tanto quanto o frio, o calor contrai os corpos. Mas na verdade é mais oportuno tratar deste assunto e de ou­tros semelhantes quando da investigação do frio.[84]
XIII
     Em terceiro lugar, é necessário fazer-se citações perante o inte­lecto [85] das instâncias cuja natureza, quando investigada, está pre­sente em mais ou em menos, seja depois de ter feito comparação do aumento e da diminuição em um mesmo objeto, seja depois de ter feito comparação em objetos diversos. Pois sendo a forma de uma coisa a coisa em si mesma [86] e posto que a coisa difere da forma tanto quanto difere a aparência da existência, o exterior do interior e o rela­tivo ao homem do relativo ao universo,[87] segue-se necessariamente que se não pode tomar uma natureza pela verdadeira forma, a não ser que sempre decresça quando decresce a referida natureza e, igual­mente, sempre aumente quando aumenta a natureza. A esta tábua denominamos Tábua de Graus ou de Comparação.
Tábua de Graus ou de Comparação do Calor
     Em primeiro lugar, trataremos dos corpos que não apresentam qualquer calor ao tato, mas que parecem possuir um calor potencial ou uma disposição ou preparação para o calor. A seguir, considera­remos os corpos que são quentes em ato, ou seja, ao tato, sua intensi­dade e seus graus.
     1. Não há entre os palpáveis e sólidos nenhum corpo que seja naturalmente quente. Não há uma única pedra, um único metal, nem enxofre, nem fóssil, nem madeira, nem água, nem cadáver dos ani­mais, que se apresentem com calor. As águas quentes dos balneários parecem aquecer-se por acidente, ou por alguma chama ou fogo subterrâneo, como os que vomitam o Etna e muitas outras monta­nhas, ou por conflito de corpos, como ocorre com o calor produzido na dissolução do ferro e do estanho. Dessa forma, não há qualquer espécie de calor nos corpos inanimados perceptível ao tato do homem, e esses corpos se diferenciam entre si pelos graus (de frio) de frigidez. Com efeito, não são iguais o frio da madeira e o do metal. Mas esse assunto pertence à Tábua de Graus do Frio.
     2. Todavia, encontram-se muitos corpos inanimados com calor potencial e com predisposição à chama, como é o caso do enxofre, da nafta e do petróleo.[88]
     3. O que antes estava quente, como o esterco eqüino, ou a cal, ou talvez as cinzas, ou a fuligem provocados pelo fogo, conserva latentes resíduos do calor anterior. Por isso se fazem certas destila­ções e separações de corpos, enterrando-os em esterco eqüino, e o calor da cal pode ser provocado com a aspersão de água.[89]
     4. Entre os vegetais não há qualquer planta ou parte (como resi­nas ou medula) que se mostre quente ao tato humano. Mas, como já foi antes dito,[90] as ervas verdes quando abafadas se aquecem, e pare­cem quentes ao tato interno, isto é, ao paladar e ao estômago e mesmo a partes externas, depois de algum tempo, como ocorre com emplastros e ungüentos vegetais que podem parecer quentes ou frios.
     5. Não há qualquer calor nas partes separadas dos animais mor­tos perceptível pelo tato humano. Nem mesmo o esterco eqüino, se não for coberto e abafado, conserva o calor. Contudo, todo esterco parece possuir potencialmente calor, como se observa nas marcas que ficam pelos campos. E, igualmente, os cadáveres dos animais pare­cem possuir também um calor latente e potencial, e isso a tal ponto que nos cemitérios em que todos os dias se fazem sepultamentos a terra conserva um calor oculto, que consome os cadáveres recentes muito mais rapidamente que na terra comum. Segundo se diz, os orientais usam um certo tipo de tecido tênue e suave, feito de plumas de aves, que por qualidades próprias dissolve e derrete a manteiga. quando por ele levemente envolvida.
     6. Tudo o que aduba os campos, como todos os tipos de esterco, a greda, a areia do mar, o sal e coisas semelhantes, possui alguma disposição ao calor.
     7. Todo processo de putrefação possui traços de um tênue calor. ainda que não alcance ser percebido pelo tato. Nem mesmo aquelas coisas, que na putrefação se transformam em animálculos,[91] como a carne e o queijo, chegam a ser perceptíveis ao tato. Nem tampouco a madeira podre, que brilha à noite, parece quente ao tato. Mas, às vezes, o calor das coisas em putrefação se faz sentir por meio de odo­res fortes e repugnantes.
     8. Assim, o primeiro grau de calor, entre as coisas perceptíveis ao tato humano, parece ser o calor animal, que por sua vez se desdo­bra em muitos graus. No seu grau mais baixo, como no caso dos inse­tos, é muito mal percebido pelo tato, O seu grau mais alto é atingido pelo calor solar, nas zonas e nos climas tropicais, mas não chega a ser tão forte a ponto de não ser tolerado pela mão. Contudo, conta-se que Constâncio [92] e alguns outros tinham certo tipo de temperamento e hábitos físicos de tal modo secos que, atacados por febre agudíssima, ficaram quentes a ponto de parecerem queimar as mãos de quem deles se aproximasse.
     9. Os animais aumentam o próprio calor pelo movimento e pelos exercícios físicos, pelo vinho, pelos banquetes, pelo sexo, pelas febres ardentes e pela dor.
     10. Os animais, durante os acessos de febres intermitentes, inicialmente são acometidos de frio e tremores, mas depois adquirem um calor muito intenso. E o mesmo acontece no início das febres ardentes e nas febres pestilentas.
     11. Façam-se ulteriores investigações sobre o calor em animais diversos, como peixes, quadrúpedes, serpentes, aves e também em suas diversas espécies, como o leão, o abutre, o homem. Pois, con­forme a opinião vulgar, a parte interna dos peixes é pouco quente, as aves são mais quentes, especialmente as pombas, os falcões e as avestruzes.
     12. Façam-se ainda investigações ulteriores acerca dos diversos graus de calor nas partes e nos membros do mesmo animal. Com efei­to, o leite, o sangue, o esperma, os ovos, são moderadamente quentes e menos quentes que as partes externas de um animal em agitação e movimento. Ainda não foi feita uma investigação do mesmo teor para se saber o grau de calor do cérebro e do estômago, do coração, etc.
     13. Todos os animais, no inverno e nas épocas frias, são frios nas partes externas, mas nas partes internas crê-se encerrarem mais calor.
     14. O calor dos corpos celestes, mesmo na região mais quente e durante a estação e o dia mais quente, não atinge nunca um grau tal que chegue a incendiar e queimar a madeira bem seca ou a palha ou um pedaço de trapo, a não ser que seja auxiliado por espelhos ustó­rios. Mas pode sempre provocar vapores das coisas úmidas.
     15. Segundo a tradição dos astrônomos, algumas estrelas são mais quentes que outras. Dentre os planetas, depois do sol, Marte é o mais quente, depois vem Júpiter e depois Vênus. Estabelecem-se como os mais frios primeiro a Lua e, mais que todos, Saturno. Entre as estrelas fixas estabelece-se como a mais quente Sírio, vindo depois Coração de Leão, e a seguir Canícula,[93] etc.
     16. O sol mais aquece quanto mais se inclina na perpendicular ou no zênite; o que também é de se crer verdadeiro para os demais planetas, em relação ao seu próprio calor. Júpiter, por exemplo, aque­ce mais quando se encontra sob Câncer ou Leão que quando sob Capricórnio ou Aquário.
     17. Tudo leva a crer que o sol e os outros planetas aquecem mais quando atingem o seu perigeu, pela maior proximidade da Terra, que quando do seu apogeu.[94] E se acontecer que, em alguma região, o sol esteja ao mesmo tempo no perigeu e mais próximo à perpendicular, necessariamente será aí mais quente que na região em que o sol também esteja em seu perigeu, mas em posição oblíqua. Por isso deve ser notada a situação relativa de altitude dos planetas, nas diversas regiões, em relação à sua posição vertical ou obliqua.
     18. Supõe-se ainda que o sol, como os outros planetas, aqueça mais quando se aproxima das estrelas fixas maiores. Assim, quando o sol se encontra em Leão, mais próximo ao Coração de Leão, à Cauda de Leão, à Espiga da Virgem, a Sírio, à Canícula, aquece mais que quando se encontra em Câncer, onde, contudo, está mais na posição perpendicular. E é para se crer que as partes do céu infundem um calor tanto maior (ainda que não perceptível ao tato) quanto mais são ornadas de estrelas e especialmente das estrelas maiores.
     19. Em suma, o calor dos corpos celestes pode ser aumentado em vista de três fatores, ou seja, pela posição perpendicular, pela proximidade ao perigeu e pela conjunção ou combinação das estrelas.
     20. Em verdade, há uma grande diferença entre o calor dos ani­mais e dos raios dos corpos celestes, tal como chegam a nós, e o da mais tênue chama, e mais ainda o dos corpos incandescentes, o dos líquidos e do próprio ar comum aquecido pelo fogo. De fato, a chama do espírito do vinho, ainda que rarefeita e difusa, pode incendiar a palha, um pano ou o papel. E tal nunca ocorre com o calor animal ou solar, sem o emprego de espelhos ustórios.
     21. Contudo, as chamas e as coisas incandescentes têm calor e múltiplos graus, tanto em intensidade quanto em tenuidade. Mas sobre o fato ainda não foi feita uma indagação diligente e, por isso, só é possível tratá-los de passagem. Entre as várias espécies de chamas, a do espírito do vinho parece ser a mais débil, a não ser que as cha­mas ou a luminescência produzidas pelo suor animal sejam ainda mais débeis. A seguir, segundo nos parece, seria a chama dos vegetais leves e porosos, como a palha, o junco e as folhas secas, cujas chamas não estão muito longe das produzidas por pêlos ou penas. A estas seguem-se as chamas das madeiras que não possuem resinas ou pez. Deve ser observado, porém, que a chama proveniente de madeiras delgadas, que comumente são juntadas em feixes, é mais fraca que a produzida por troncos de árvores e por raízes. E isso pode ser facil­mente experimentado nos fornos que fundem ferro, onde o fogo pro­duzido por feixes e ramos de árvores não tem utilidade. A seguir, assim pensamos, vem a chama produzida por óleo, sebo, cera e por outras substâncias oleosas e graxas, que não possuem muita força. Contudo, o calor mais forte é encontrado no pez e na resina; mais forte ainda no enxofre e na cânfora, na nafta, no petróleo, bem como nos sais, uma vez eliminada a sua matéria crua, e em seus compostos, como a pólvora, o fogo grego (conhecido como fogo selvagem)[95] e seus diferentes tipos, todos portadores de um calor obstinado, que não se extingue facilmente com água.
     22. Cremos também que a chama produzida por certos metais imperfeitos é sobremaneira forte e aguda. Mas sobre tudo isso são necessárias investigações ulteriores.
     23. A chama dos raios [96] parece superar todas as demais em potência, a ponto de chegar a fundir o ferro perfeito, reduzindo-o a gotas, o que os outros tipos de chamas não conseguem fazer.
     24. Há nos corpos incandescentes diversos graus de calor, que ainda não foram diligentemente investigados, O calor mais fraco pen­samos ser o do pano queimado, usado comumente para acender o fogo e também o proveniente das madeiras esponjosas e das cordas secas que servem de rastilho para disparar a artilharia. A seguir vem o carvão vegetal ou mineral, ou ainda o dos tijolos queimados e coi­sas semelhantes. Cremos que, de todos os corpos incandescentes, os mais quentes são os metais, quando acesos, caso do ferro, do cobre, etc. Também esse caso deve ser investigado ulteriormente.
     25. Entre os corpos incandescentes, alguns há muito mais quen­tes que certas chamas. De fato, é muito mais quente o ferro em brasa que a chama do espírito do vinho.
     26. Entre os corpos não incandescentes, mas aquecidos pelo fogo, como a água fervente e o ar encerrado nos fomos, há alguns que superam em calor, e em muito, corpos incandescentes e mesmo inflamados.
     27. O movimento aumenta o calor, como se pode ver pelos foles e pelo sopro; por isso os metais mais duros não se fundem ou derre­tem com fogo morto e parado, sendo necessário excitá-lo com o maçarico.[97]
     28. Faça-se com espelhos ustórios o experimento seguinte, con­forme recordamos:[98] coloca-se o espelho à distância, por exemplo, de um palmo, de um objeto combustível. Não queimará ou inflamará tanto o objeto quanto se se colocar o espelho a uma distância de, por exemplo, meio palmo e deslocá-lo gradual e lentamente até a distân­cia inicial de um palmo. O cone de convergência e o feixe dos raios são os mesmos e é o próprio movimento que aumenta o efeito do calor.
     29. Acredita-se que os incêndios, quando acompanhados de for­tes ventos, mais progridem contra que a favor do vento. Isso porque as chamas se movem mais rapidamente quando o vento as rechaça que quando as impele.
     30. A chama não brilha, nem se produz, a menos que alcance algo de côncavo em que se possa movimentar e dançar; exceção feita das chamas detonantes da pólvora e análogas, caso em que a compressão e o aprisionamento da chama aumentam o seu furor.
     31. A bigorna se torna muito quente ante os golpes do malho. Se a bigorna fosse feita de um metal mais mole, acreditamos que chega­ria a ficar rubra, por força dos duros e repetidos golpes do malho. Disso se deve fazer mais experimentos.
     32. Nos corpos incandescentes que são porosos, de tal forma que haja espaço para o movimento do fogo, se o seu movimento for coibido por forte compressão, logo o fogo se apagará. Assim, quando um pano queimado, o pavio aceso de uma vela ou lâmpada, um peda­ço de carvão vegetal ou uma brasa, são abafados ou pisados, ou algo semelhante, interrompe-se subitamente a ação do fogo.
     33. A aproximação de um corpo quente de outro aumenta o calor na própria razão dessa proximidade. Também é o que ocorre com a luz, pois quanto mais próximo da luz é um objeto mais visível ele se torna.
     34. A união de calores de origens diversas aumenta o calor, desde que se não misturem com corpos. Com efeito, um grande fogo e um fogo menor ateados no mesmo local aumentam igualmente o calor tanto de um quanto de outro; mas água morna misturada à água fervente esfria-a.
     35. A permanência do calor em um corpo aumenta o calor. Pois o calor que constantemente circula e emana mistura-se ao calor pree­xistente e assim multiplica o calor. Por isso, o fogo aceso durante meia hora, em um cômodo, não o aquece da mesma forma que um que dura uma hora inteira. Mas não se dá o mesmo com a luz, já que uma lâmpada ou uma vela acesa não ilumina mais determinado lugar durante um dia inteiro que logo no inicio.
     36. A irritação produzida por um ambiente frio aumenta o calor,[99] como se observa no fogo aceso durante uma forte nevasca. Supomos que tal sucede não apenas devido à concentração e contra­ção do calor, que é uma espécie de união, mas devido à exasperação, como ocorre com o ar muito comprimido ou um bastão violenta­mente desviado de sua posição natural anterior, que não retornam ao mesmo ponto em que estavam, mas muito além dele, em uma posição oposta. Faça-se um diligente experimento com um bastão, ou com algo semelhante, colocando-o no fogo, para verificar se não se conso­me mais rapidamente nas extremidades que no meio da chama.
     37. Há grande diversidade de graus de suscetibilidade ao calor. Sobre isso note-se, em primeiro lugar, que o calor, mesmo pequeno e fraco, sempre acaba por afetar e aquecer um pouco até os corpos a ele mesmo receptivos. Assim é que o mesmo calor da mão que aquece um pouco uma bola de chumbo ou de outro metal qualquer, por ela segu­rada por algum tempo, facilmente se transmite e se provoca o calor, sem que haja aparência de modificação nos corpos.
     38. De todos os corpos conhecidos, o ar é o que mais facilmente recebe e transmite o calor, o que é bem visível pelos termômetros, [100] cuja confecção é a seguinte: toma-se um tubo de vidro delgado e oblongo. Submerge-se o tubo com a boca para baixo em outro reci­piente de vidro, com água, de modo que o seu orifício alcance o seu fundo, apoiando-se o seu gargalo na sua borda. Para mantê-lo nessa posição, coloca-se um pouco de cera nas bordas internas do reci­piente, sem, contudo, obstrui-lo, evitando-se, dessa forma, que falte o ar que é indispensável ao movimento sumamente sutil e delicado de que vamos falar.
     Deve-se, porém, aquecer ao fogo, antes de submergi-lo, a parte superior do tubo. Depois de colocado o vidro, na forma indicada, o ar que foi aquecido vai-se pouco a pouco contraindo, durante o tempo necessário para a completa eliminação do calor adquirido do exterior, até alcançar as mesmas dimensões do ar circunstante no momento em que foi submergido na água, o que provocará a subida da água, na mesma proporção. Deve-se ainda fixar ao longo do tubo uma tira de papel comprida e estreita e graduada, conforme se queira. Verificar-se-á então que, quando a temperatura do dia é fria, o ar se contrai em menor espaço, e quando é quente, ele se expande. E isso será perce­bido através da água que sobe, quando o ar se contrai, ou desce, quando o ar se dilata. A sensibilidade do ar, tanto para o frio quanto para o calor, é sutil e delicada a ponto de superar de muito a capaci­dade do tato. Pois um raio de sol ou o calor da respiração ou o calor da mão, dirigido para a extremidade do tubo, faz baixar a água de modo manifesto. Pensamos, todavia, que o espírito dos animais pos­sui uma sensibilidade ainda mais sutil, em relação ao calor ou ao frio, desde que não seja impedida ou embotada pela massa do corpo.[101]
     39. Depois do ar, acreditamos que os corpos mais sensíveis ao calor sejam os que foram há pouco modificados e contraídos pelo frio, como a neve e o gelo, pois, com apenas uma leve tepidez come­çam a dissolver e liqüefazer-se. A seguir, vem o mercúrio. Em segui­da, os corpos graxos, como o óleo, a manteiga e similares; depois a madeira, depois a água e, por fim, as pedras e os metais, que se não aquecem com facilidade, especialmente na parte interior. Mas estes, depois de contraído o calor, conservam-no por muito tempo, como é o caso do tijolo, da pedra, ou do ferro incandescentes colocados ou mergulhados na água fria, que retêm o calor durante perto de um quarto de hora, a ponto de não poderem ser tocados.
     40. Quanto menor é a massa de um corpo tanto mais rapidamen­te se aquece pela aproximação de um corpo quente; o que demonstra que todo calor conhecido é infenso aos corpos tangíveis.
     41. O calor, em relação ao tato e aos demais sentidos humanos, é coisa variável e relativa. Por isso a água tépida, se a mão que a toca está fria, parece quente; se a mão está quente, parece fria.[102]
XIV
     O quanto é pobre a nossa história natural, qualquer um pode facilmente perceber pelo fato de que nas tábuas precedentes inserimos simples tradições e relatos de terceiros (mas sempre acrescentando e pondo em dúvida mesmo a mais segura autoridade), em lugar da história provada e das instâncias certas. E ainda tivemos que nos servir muitas vezes de locuções como a seguinte: “É necessário fazer o experimento”, “é necessário comprová-lo com ulterior experimento”.
XV
     Objetivo e oficio destas três tábuas é o de fazer uma citação de instância perante o intelecto [103] (como usualmente as designamos). Uma vez feita a citação, é necessário passar-se à prática da própria indução. É necessário, com efeito, descobrir-se, considerando atentamente as tábuas e cada uma das instâncias, uma natureza tal que sem­pre esteja presente quando está presente a natureza dada, ausente quando aquela está ausente, e capaz de crescer e decrescer acompa­nhando-a; e seja, como já se disse antes, uma limitação da natureza mais comum.[104] Assim, se a mente procura desde o início descobrir essa natureza afirmativamente, como ocorre quando abandonada a si mesma, ocorrem fantasias, meras opiniões e noções mal determina­das, e axiomas carentes de contínuas correções, se não se quiser, segundo o costume das escolas, combater em defesa de falsidade.[105] Mas certamente os resultados serão melhores ou piores conforme a capacidade e a força do intelecto que opera. Contudo, só a Deus, cria­dor e introdutor das formas,[106] ou talvez aos anjos e às inteligências celestes compete a faculdade de apreender as formas imediatamente por via afirmativa, e desde o início da contemplação. Certamente essa faculdade é superior ao homem, ao qual é concedida somente a via negativa de procedimento, e só depois no fim, depois de um processo completo de exclusões, pode passar às afirmações.[107]
XIV
     Em vista disso, é necessário analisar e decompor, de forma com­pleta, a natureza, não certamente pelo fogo, mas com a mente, que é uma espécie de centelha divina.[108] A primeira obra da verdadeira indução, para a investigação das formas, é a rejeição ou exclusão das naturezas singulares que não são encontradas em nenhuma instância em que está presente a natureza dada, ou encontram-se em qualquer instância em cuja natureza dada não está presente, ou cresçam em qualquer instância em cuja natureza dada decresce, ou decrescem quando a natureza dada cresce. Depois de ter feito as convenientes rejeições ou exclusões na forma devida, restará no fundo, como resí­duo donde se evolaram como fumaça as opiniões, a forma afirmativa, sólida, verdadeira e bem determinada. Tudo isso é breve para ser dito, mas é conseguido depois de muitas tentativas. De nossa parte, acredi­tamos nada negligenciar do que é necessário ao nosso propósito.
XVII
     Devemos, no entanto, prevenir sem demora os homens de que se acautelem de confundir as formas, de que falamos, com as que as suas especulações e reflexões tratam habitualmente,[109] o que pode ocorrer em vista da importância que reconhecem às formas.
     Em primeiro lugar, e por esse motivo, não nos ocuparemos das formas compostas,[110] que são, como já se disse, combinações das naturezas simples conforme o curso comum do universo, como a do leão, da águia, da rosa, do ouro, e de muitas outras. Elas serão devidamente consideradas quando nos ocuparmos dos processos latentes, dos esquematismos latentes e de sua descoberta, na medida em que se encontram nas chamadas substâncias ou naturezas concretas.
     De outra parte, mesmo em relação às naturezas simples, não se devem confundir as formas de que tratamos com as idéias abstratas, ou seja, com as idéias mal ou não determinadas na matéria.[111] Com efeito, quando falamos das formas, mais não entendemos que aquelas leis e determinações do ato puro, que ordenam e constituem toda e qualquer natureza simples, como o calor, a luz, o peso, em qualquer tipo de matéria ou objeto a elas suscetível. Falar em forma do calor ou da luz é o mesmo que falar da lei do calor ou da luz;[112] não nos afastamos ou abstraímos do aspecto operativo das coisas. Assim, por exemplo, quando falamos na investigação da forma do calor: rechace­-se a tenuidade ou a tenuidade não é a forma do calor; é como se disséssemos: o homem pode introduzir o calor em um corpo denso ou o homem pode retirar ou colocar à parte o calor de um corpo tênue.
     Por conseguinte, se as nossas formas parecerem a alguém com algo de abstrato, pelo fato de misturarem e combinarem coisas hete­rogêneas (pois parecem, sem dúvida, heterogêneos o calor dos corpos celestes e do fogo; o vermelho fixo da rosa ou similares, e o que apa­rece no arco-íris ou nos sais da opala ou do diamante; a morte por submersão e a por cremação, a por um golpe de espada e a por apo­plexia e a por atrofia; e isso apesar de todos esses caracteres perten­cerem à natureza do calor, do vermelho e da morte), reconheça ele que seu intelecto está inteiramente preso e estacado pelo hábito, pelas coisas como um todo [113] e pelas opiniões.
     Está fora de dúvida que tais coisas, ainda que heterogêneas e diversas entre si, coincidem na forma ou lei que ordena o calor, o ver­melho ou a morte; e que ao homem não é dado o poder de se emanci­par e liberar-se do curso da natureza e aventurar-se a novas causas eficientes e a novas de operar, afora da revelação e da descoberta de tais formas. Porém, depois de haver considerado a natureza em sua unidade, que é o principal, depois no seu devido lugar, tratar-se-á das divisões e ramificações da natureza, tanto das ordinárias quanto das internas e mais verdadeiras.
XVIII
     É agora oportuna a apresentação de um exemplo de exclusão ou de rejeição de naturezas, que nas tábuas de presença aparecem como não pertencendo à forma do calor; mas também não deixando de se ter em mente que não apenas é suficiente uma das tábuas de exclusão de uma natureza qualquer, mas que é suficiente apenas uma das instâncias singulares nelas contidas. De fato, é manifesto, pelo que já se disse, que mesmo apenas uma só instância que contradiga destrói qualquer conjetura sobre a forma. De qualquer maneira, sempre que necessário, para maior evidência e para a demonstração clara do uso das tábuas, repetiremos e duplicaremos as exclusões.
     Exemplo da Exclusão, ou Rejeição de Naturezas da Forma do Calor
     1. Pelos raios do sol exclua-se a natureza elementar.
     2. Pelo fogo comum e, mais ainda, pelos fogos subterrâneos, que estão muito longe e muito distantes dos raios dos corpos celestes, exclua-se a natureza dos corpos celestes.
     3. Pela propriedade de se aquecerem que têm todos os corpos (mine­rais, vegetais, as partes externas dos animais, água, azeite, ar e similares) pela simples proximidade do fogo de outro corpo quen­te, exclua-se toda variedade e delicadeza de textura dos corpos.
     4. Pelo ferro e pelos metais incandescentes que aquecem todos os outros corpos, sem, contudo, diminuírem de peso ou de substân­cia, exclua-se a comunicação ou a mescla de outro corpo quente.
     5. Pela água fervente e pelo ar e ainda pelos metais e outros sólidos aquecidos, mas não até a ignição e a incandescência, excluam-se a luz ou o lume.[114]
     6. Pelos raios da lua e de outras estrelas (com exceção do sol), excluam-se ainda a luz e o lume.
     7. Pela tábua comparativa do ferro incandescente e da chama do espírito do vinho (que conclui que o ferro incandescente tem mais calor, mas menos luz, e a chama do espírito do vinho, mais luz e menor calor), excluam-se também a luz e o lume.
     8. Pelo ouro e por outros metais incandescentes, que são corpos de grande densidade, quando considerados como um todo, exclua-se a tenuidade.
     9. Pelo ar, mais comumente encontrado frio, mas sempre permane­cendo tênue, exclua-se também a tenuidade.
     10. Pelo ferro incandescente, cuja massa não se dilata, mas perma­nece em sua dimensão visível, exclua-se o movimento local ou expansivo do todo.
     11. Pela dilatação do ar nos termômetros [115] e coisas semelhantes, onde o ar manifestamente tem um movimento local e expansivo, mas nem por isso contrai qualquer manifesto aumento de calor, exclua-se também o movimento local e expansivo do todo.
     12. Pela facilidade com que todos os corpos se aquecem, sem qual­quer destruição ou alteração digna de nota, exclua-se a natureza destrutiva ou a introdução violenta de qualquer natureza nova.
     13. Pelo consenso e conformidade dos efeitos semelhantes produzi­dos pelo calor e pelo frio, exclua-se o movimento, tanto de expan­são quanto o de contração do todo.
     14. Pelo aumento do calor oriundo do atrito dos corpos, exclua-se a natureza principal.[116] Chamamos de natureza principal a que se encontra positivamente na natureza e não é causada por uma natureza precedente.
     Há ainda outras naturezas (a serem excluídas), pois não fizemos tábuas perfeitas, mas apenas exemplos.
     Todas, e cada uma das naturezas enumeradas, não estão compreendidas na forma do calor. E de todas essas naturezas mencio­nadas, o homem deve estar livre ao operar sobre o calor.
XIX
     Com as tábuas das exclusões estão colocados os fundamentos da verdadeira indução; que, contudo, não será perfeita se não se apoiar na afirmativa. Mas nem a própria exclusiva está completa, mormente logo de início. Com efeito, a exclusiva (como é evidente) representa a rejeição das naturezas simples; mas se ainda não possuímos noções justas e verdadeiras das naturezas simples,[117] como pode o procedi­mento exclusivo ser correto? Algumas das noções antes mencionadas (como a noção da natureza elementar, como a noção da natureza celeste, como a noção de tenuidade)[118] são noções vagas e não bem determinadas. Por isso, de vez que não ignoramos, nem nos esquece­mos da magnitude da obra que empreender (qual seja, a de colocar o intelecto humano ao nível da natureza e das coisas), de nenhum modo nos podemos contentar com o que até agora preceituamos; ao contrá­rio, intentamos oferecer e subministrar ao intelecto os mais poderosos auxílios, que é o que passaremos a indicar. E, certamente, na interpre­tação da natureza deve-se formar e preparar o ânimo na interpretação da natureza, de modo que, de um lado, detenha-se devidamente nos vários graus de certeza e, de outro, pense também, especialmente no início, que o que lhe é permitido examinar depende sobremaneira do que ainda está para ser examinado.
xx
     Contudo, como a verdade emerge mais rapidamente do erro que da confusão, reputamos ser útil permitir-se ao intelecto [119], depois de elaboradas e devidamente consideradas as três tábuas de primeira citação (ou comparecimento ou de apresentação, tal como o fizemos), o empreendimento da obra de interpretação da natureza na afirmati­va,[120] a partir das instâncias contidas nas tábuas, ou das que ocorre­rem fora delas. A essa espécie de tentativa continuamos a chamar de Permissão ao Intelecto ou de Interpretação Inicial ou ainda de Pri­meira Vindima.[121]
Primeira Vindima da Forma do Calor
     Deve ter-se presente que a forma é inerente (o que deve ter ficado claro pelo que antes foi dito) a todas e a cada uma das instâncias particulares, nas quais se encontra a própria coisa; de outra maneira não seria forma, pois não pode ocorrer nenhuma instância contraditória. Todavia, a forma é muito mais visível em algumas instâncias que em outras; ou seja, nas que a natureza da forma está menos coibi­da e impedida pelas outras naturezas e reduzida à sua ordem. A estas instâncias costumamos chamar de instâncias luminosas ou instâncias ostensivas.[122]
     Em todas e em cada uma das instâncias em que a limitação é o calor, a natureza parece ser o movimento. Isso é manifesto na chama, no seu perpétuo mover, nos líquidos aquecidos ou ferventes, também sempre em movimento. Fica igualmente claro, quando se excita o calor pelo movimento, como acontece com os foles e com o vento (ve­ja-se instância 29, tábua 3). O mesmo pode ser dito de outros tipos de movimento, a cujo respeito veja instâncias 28 e 31, tábua 3. Isso tam­bém se observa na extinção do fogo e do calor, por qualquer forte compressão que refreia e interrompe o movimento (veja instâncias 30 e 32, tábua 3). Fica igualmente claro que todos os corpos se des­troem ou, pelo menos, se alteram consideravelmente, por qualquer fogo ou calor forte e veemente, daí se seguindo que o calor produz um movimento forte, um tumulto ou perturbação nas partes internas do corpo, que gradualmente caminham para a dissolução.
     O que dissemos a respeito do movimento (ou seja, que é como o gênero em relação ao calor) não deve ser entendido como significando que o calor gera o movimento ou que o movimento gera o calor (embora nisso haja alguma verdade), mas que o calor é em si,[123] ou que a própria qüididade do calor [124] é movimento e nada mais; observan­do-se, porém, as diferenças específicas que a seguir enumeraremos, depois de indicar algumas precauções contra os equívocos.
     O calor, enquanto coisa sensível, é algo relativo ao homem e não ao universo, e é corretamente estabelecido como sendo efeito (do calor) sobre o espírito animal. Pelo que, em si mesmo, é coisa variá­vel, pois em um mesmo corpo (conforme a disposição dos sentidos) produz tanto sensação de calor quanto de frio, o que deve ter ficado patente pela instância 41, tábua 3.
     Contudo, não se pode confundir a comunicação do calor, ou seja, a sua natureza transitiva, graças à qual um corpo aproximando-se de outro quente, também se aquece, com a forma do calor. Pois uma coisa é o quente e outra é o que esquenta. E, como, com um movimento de atrito, se produz calor sem a existência de um calor precedente, é necessário que se exclua o que se aquece da forma do quente. É mesmo quando o calor sobrevém, pela aproximação de algo quente, isso não se deve à forma do quente, mas resulta inteiramente de uma natureza mais alta e comum, isto é, da natureza da assimila­ção ou da multiplicação de si mesmo, o que deve ser investigado separadamente.[125]
     A noção de fogo é vulgar e de nada vale; é composta de combi­nação do calor e da luz de um corpo, como na chama e nos corpos aquecidos até a incandescência.
     Uma vez afastado todo equívoco, passemos às diferenças verda­deiras, que limitam o movimento e constituem-no na forma do calor.[126]
     A primeira diferença é a seguinte: o calor é movimento expansi­vo, pelo qual o corpo se dilata e tende a dilatar-se ou a passar para uma esfera ou dimensão maior que a antes ocupada. Esta diferença se mostra sobretudo na chama, onde o fumo e o vapor espesso se dila­tam e convertem-se em chama.
     O mesmo se observa em todo líquido fervente que se intumesce, de maneira manifesta, eleva-se e emite borbulhas, e o processo de expansão se estende até alcançar uma extensão muito superior e muito mais ampla que a do próprio líquido, quer dizer, convertendo o líquido em vapor, fumo ou ar.
     Observa-se também em toda madeira ou matéria combustível, em que às vezes ocorre exsudação e sempre evaporação.
     Observa-se ainda na fusão dos metais que como corpos muito compactos que são) não se intumescem nem se dilatam com facili­dade, porém, o seu espírito, depois de se ter dilatado, tendendo dessa forma a uma maior expansão, força e leva as partes mais graxas ao estado liquido. E se for aumentado em muito o calor, dissolve e torna volátil grande parte delas.
     Observa-se igualmente no ferro e nas pedras: que, embora não se liqüefaçam ou fundam, tornam-se mais moles. O que também ocorre com varas de madeira, que se tornam flexíveis quando aquecidas em cinza quente. E esse movimento se observa de modo mais evidente possível no ar, que com pouco calor se dilata de modo continuo e manifesto, como se pode ver pela instância 38, tábua 3.
     Observa-se, ainda, na natureza contrária, que é o frio. Com efei­to, o frio contrai todos os corpos e leva-os a se encolherem. Isso vai ao ponto de, por ocasião de intenso frio, os pregos caírem das pare­des, o bronze se dessoldar, e o vidro aquecido, e subitamente colo­cado no frio, arquear-se e quebrar. Igualmente o ar, submetido a um ligeiro resfriamento, se contrai em volume mais restrito, como apare­ce na instância 38, tábua 2. Mas, sobre esse assunto, alongar-nos-emos mais quando da investigação do frio.
     Não é de estranhar que o calor e o frio produzam muitas ações comuns (a respeito, veja-se instância 32, tábua 32), pois duas das dife­renças que vêm a seguir pertencem igualmente às duas naturezas; ainda que nesta diferença (a de que estamos tratando) as ações sejam diametralmente opostas — pois o calor engendra um movimento expansivo e dilatador, e o frio, ao contrário, engendra um movimento de contração e de condensação.
     A segunda diferença é uma modificação da precedente e reza que o calor é um movimento expansivo ou orientado para a circunfe­rência, mas com a condição de que, ao mesmo tempo, o corpo tenda para o alto. Não há dúvida de que se podem produzir muitos movi­mentos mistos. Por exemplo, uma seta ou um dardo gira enquanto caminha e caminha enquanto gira. Da mesma maneira, o movimento do calor é expansivo e ao mesmo tempo voltado para o alto.
     Esta diferença fica bastante evidente ao serem colocadas tenazes ou atiçadores de ferro no fogo. Se são colocados perpendicularmente, segurando-se na outra extremidade, o calor rapidamente queimará as mãos, mas se são colocados horizontalmente ou em nível inferior ao do fogo, as mãos se vão aquecer muito depois.
     É também evidente nas destilações, per discensorium, que são usadas pelos homens para flores muito delicadas cujos aromas rapi­damente se evolam. De fato, a indústria humana descobriu uma maneira de colocar o fogo não por baixo, mas por cima, para aqueci­mento mais lento. Não apenas a chama mas também toda espécie de calor tende para o alto.
     Faça-se um experimento disso, na natureza contrária do frio, para se verificar se o frio não provoca a contração dos corpos para baixo, da mesma maneira que o calor dilata os corpos para o alto. Para isso, tomem-se duas barras de ferro, ou dois tubos de vidro, iguais em todos os outros aspectos, e levem-nos ao fogo para se aque­cerem um pouco; coloque-se uma esponja embebida em água fria ou neve, em cima de uma e embaixo de outra respectivamente. Supomos que o resfriamento no sentido das extremidades será mais rápido na barra em que a neve esteja em cima do que naquela em que a neve venha colocada embaixo, ou seja, exatamente o contrário do que ocorre com o calor.
     A terceira diferença é a seguinte: o calor é um movimento expan­sivo, não uniforme segundo o todo, mas segundo as menores partí­culas do corpo, e ao mesmo tempo reprimido, repelido e afastado, de maneira que adquire um movimento alternado e continuamente trêmulo e irritado pela repercussão [127] e do qual se origina o furor do fogo e do calor.
     Esta diferença aparece sobretudo na chama e nos líquidos fer­ventes, que continuamente tremem e nas menores partes se intumes­cem e repentinamente esmorecem.
     Ocorre ainda nos corpos que têm tal densidade que aquecidos ou incandescentes não se intumescem, nem se dilatam em sua massa; esse é o caso do ferro candente, em que o calor é muito intenso.
     Ocorre ainda no fato de o fogo arder mais intensamente por oca­sião da estação fria.
     Ocorre ainda no fato de que, quando o ar se dilata, no termôme­tro, sem qualquer impedimento ou força repulsiva, isto é, com unifor­midade e conformidade, não se percebe qualquer calor. Ainda nos ventos fechados, mesmo irrompendo com a máxima força, mesmo assim não se percebe um calor significativo; isso porque o movimento ocorre segundo o todo e não alternadamente nas partículas. Faça-se um experimento a esse respeito para se verificar se a chama não quei­ma mais fortemente nos lados que no centro.
     Ocorre também de forma clara no fato de que toda a combustão penetra pelos diminutos poros do corpo, que se queima; de modo que a combustão o abate, penetra, atravessa e perfura como se possuísse infinitas pontas de agulha. É por isso que também todas as águas-fortes (se são adequadas ao corpo sobre o qual agem) produzem os efeitos do fogo, devido à sua natureza corrosiva e penetrante.
     Esta diferença (a de que estamos falando) é comum à natureza do frio, no qual o movimento de contração é contido pela força expansiva; do mesmo modo que no calor é reprimido o movimento expansivo pela força de contração.
     Por isso, tanto faz se as partículas do corpo o penetrem para dentro ou no sentido do exterior, o processo é o mesmo, embora o grau de intensidade seja muito diferente, pois, mesmo aqui bem perto de nós, na superfície da Terra, nada temos que seja puramente frio (veja-se instância 27, tábua 1).
     A quarta diferença é uma modificação da anterior, ou seja, o movimento estimulante ou penetrante deve ser rápido, e não lento, e provir por partículas não extremamente pequenas, mas um pouco maiores.
     Observa-se esta diferença no confronto dos resultados que pro­duz o fogo com os resultados que produz o tempo ou a idade. O tempo tanto quanto o fogo queima, consome, alui e reduz a cinzas, mas de forma sutil e delicada, isso porque trata-se de um movimento muito lento, que procede por partículas minúsculas e onde não se per­cebe o calor.
     Ocorre também na comparação entre a dissolução do ferro e do ouro. O ouro de fato dissolve sem provocar calor, enquanto o ferro produz um calor fortíssimo, mesmo durante um tempo mais ou menos igual. Tal ocorre porque, com a introdução da água, a solução se pro­cessa mais naturalmente e a dissolução das partes advém sem esforço, mas com o ferro, ao contrário, a presença da água é áspera e contras­tante, porque as partes do ferro opõem uma maior resistência.
     Ocorre ainda até certo ponto em certas gangrenas ou decomposi­ções da carne que não produzem grande calor, nem dor, mas cum­prem-se pelo processo sutil da putrefação.
     Seja esta, pois, a primeira vindima ou interpretação inicial da forma do calor, obtida por permissão do intelecto.
     Desta primeira vindima, obtêm-se a forma ou verdadeira defini­ção do calor (o calor em relação ao universo e não apenas em relação aos sentidos), que pode ser expressa brevemente do seguinte modo: O calor é um movimento expansivo, reprimido e que atua sobre as partículas menores. A expansão pode ser definida: Pela natureza de expan­dir-se em todas as direções, mas que, apesar disso, se inclina um pouco mais para o alto. E o esforço sobre as partículas se define dizendo: Que não se trata de algo lento, mas apressado e impetuoso.
     Em relação à parte operativa, é a mesma coisa. De fato, o seu enunciado é o seguinte: Se em algum corpo natural pode produzir-se um movimento de dilatação e expansão e se se puder reprimi-lo e fazê-lo voltar sobre esse movimento, de modo que a dilatação não transcorra uniformemente, mas por partes e que seja em parte repeli­da, nesse caso, sem dúvida, se engendrará calor. É indiferente se se trata de corpo elementar (como se diz) ou se recebe as suas qualida­des dos corpos celestes; se é luminoso ou opaco; se é tênue ou denso; se aumentado em seu volume ou contido nos limites da primeira dimensão; se tendente a dissolver-se ou a permanecer no seu estado; se animal, vegetal ou mineral; se água, óleo ou ar; ou de qualquer outra substância suscetível do movimento mencionado. O calor sensí­vel é, pois, a mesma coisa que o calor em si, mas em relação aos nos­sos sentidos.[128] Mas agora é necessário passar aos outros auxílios do intelecto.
XXI
     Depois das tábuas de primeira citação, depois da rejeição ou exclusão e depois da primeira vindima, feita segundo aquelas tábuas, é necessário passar aos outros auxílios do intelecto na interpretação da natureza, bem como à indução verdadeira e perfeita. Nessa exposi­ção, se se fizer necessário o uso das tábuas, retomaremos as do calor e do frio. Mas quando houver necessidade de apenas alguns poucos exemplos, esses serão recolhidos aqui ou ali, para que não se torne confusa a investigação e a exposição muito restrita.
     Em primeiro lugar, trataremos das instâncias prerrogativas;[129] em segundo lugar, dos adminículos da indução;[130] em terceiro lugar, da retificação da indução;[131] em quarto lugar, da variação da investi­gação segundo a natureza do assunto;[132] em quinto lugar, das prerrogativas da natureza [133] em relação à investigação, ou seja, daquilo que se deve investigar antes e depois; em sexto lugar, dos limites da [134] investigação ou sinopse de todas as naturezas do universo; em sé­timo lugar, da dedução à prática,[135] ou seja, daquilo que está relacio­nado como o homem; em oitavo lugar, dos preparativos para a [136] investigação; em último lugar, da escala ascendente e descendente dos axiomas.[137]
XXII
     Entre as instâncias prerrogativas, em primeiro lugar, propore­mos as instâncias solitárias. Solitárias são aquelas instâncias que apresentam a natureza que se investiga, em coisas que nada têm em comum com outras, a não ser aquela natureza; ou que não apresentam a natureza que se investiga em coisas que são semelhantes a ou­tras em tudo, exceto em relação a essa natureza. É claro que estas instâncias eliminam palavras inúteis e aceleram e reforçam a exclu­são; bem por isso algumas poucas valem por muitas.
     Assim, por exemplo, na investigação da natureza da cor, as instâncias solitárias são os prismas e os cristais que fazem aparecer a cor, não somente em si mesma, mas também a refletem sobre paredes externas, sobre o orvalho, etc. Tais instâncias nada têm em comum com as cores fixas nas flores, com as cores das gemas, dos metais, das madeiras, etc.; exceção feita da própria cor. Daí facilmente se estabe­lece que a cor nada mais é que uma modificação da imagem luminosa introduzida no corpo e recebida, no primeiro caso, com diversos graus de incidência, no segundo como efeito de estrutura e esquema­tismos diversos. Estas instâncias são solitárias por semelhança.
     Ainda, na mesma investigação, os veios do branco e do negro e as variações de cor, em flores da mesma espécie, constituem instân­cias solitárias. Efetivamente, o branco e o negro do mármore e as manchas de branco e de vermelho de certas espécies de cravo pare­cem-se em quase tudo, exceto na cor. Daí facilmente se conclui que a cor não tem muito em comum com as naturezas intrínsecas dos cor­pos, mas que consiste tão-somente na disposição tosca e quase mecâ­nica das partes. A estas instâncias que são solitárias, por diferença a um e outro gênero, chamamos de instância solitária, ou Ferinos,[138] usando o termo astronômico.
XXIII
     Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em segundo lugar as instâncias migrantes.[139] São aquelas em que a natureza investigada migra ou passa a um processo de existência [140] se antes não existia, ou, ao contrário, migra no sentido da corrupção, se antes existia. Em ambos os casos, simétricos da alternância, as instâncias são duplas, ou uma única instância em movimento ou trânsito, que se estende ao ciclo contrário. As instâncias desse tipo não apenas acele­ram e reforçam o processo de exclusão como também delimitam o afirmativo, isto é, a própria forma investigada. É necessário, com efei­to, que a forma da coisa seja algo que, por meio das migrações, de um lado manifeste-se, de outro, destrua-se e seja eliminada. E ainda que toda exclusão promova a afirmação, isso se cumpre mais diretamente considerando-se um mesmo objeto, em vez de muitos. A forma (como deve ter ficado claro por tudo o que foi dito), depois de observada em um único, estende-se a todos os objetos. Quanto mais simples é a migração tanto mais significativa é a instância. Além disso, as instân­cias migrantes são de grande utilidade na parte operativa (ou prática) do saber; isso porque, mostrando a forma juntamente com a causa que a faz ser ou não ser,[141] indicam de forma mais evidente a prática a ser seguida em certos casos, dos quais é fácil passar a outros, mas há ai um perigo a ser evitado que exige cautela, ou seja, tais instâncias conectam muito estreitamente a forma à causa eficiente,[142] confun­dindo assim o intelecto, ou pelo menos iludindo-o com uma falsa opi­nião da forma, ao divisar a causa eficiente. E esta, para nós, nada mais é que o veículo ou o condutor da forma. Mas se o procedimento de exclusão é feito de maneira legítima, o remédio será facilmente encontrado.
     Exporemos agora um exemplo de instância migrante. Seja a natureza a ser investigada o candor ou a brancura: a instância migrante para a produção é o vidro inteiro e o vidro pulverizado. Também a água comum e a água agitada, até transformar-se em espu­ma. De fato, o vidro inteiro e a água comum são transparentes, mas não são brancos; o vidro pulverizado e a água transformada em espu­ma são brancos, mas não são transparentes. Por isso torna-se neces­sário descobrir o que aconteceu ao vidro e à água por força dessa migração. É claro que a forma do branco é comunicada e introduzida pela pulverização, no caso do vidro, e pela agitação, no caso da água. Constatamos, então, que o que ocorreu foi a comunicação das partí­culas do vidro e da água e a penetração do ar. E não foi pouco o já alcançado, com isso, para o descobrimento da forma do branco, ao isolar o fato de que dois corpos em si transparentes, sendo um mais e outro menos (ou seja, o ar e a água, o ar e o vidro), colocados juntos em minúsculas partículas, produzem a brancura, devido à refração desigual dos raios de luz.
     Mas, a esse respeito, devemos ainda expor um exemplo do perigo antes mencionado, bem como a forma de evitá-lo. Ao intelecto cor­rompido pelas causas eficientes, facilmente pode ocorrer o pensa­mento de que a forma do branco é sempre necessária ao ar, e que a brancura é engendrada unicamente por corpos transparentes. O que é inteiramente falso e demonstrado por muitas exclusões. Ver-se-á, por outro lado (deixando de lado o ar e coisas análogas), que corpos intei­ramente iguais, nas partículas visíveis, produzem a transparência; que corpos desiguais, com estrutura simples, engendram o branco; que os corpos desiguais, com estrutura complexa, mas ordenada, engendram outras cores, com exceção do negro; que os corpos desiguais, com uma estrutura complexa, mas desordenada e confusa, engendram o negro. Assim apresentamos o exemplo de instância migrante, na geração da natureza do branco. A instância migrante, para a corrupção da própria natureza do branco, obtém-se com a espuma ou com a neve em dissolução. De fato, a água perde o branco e retoma a transparência quando retorna ao seu estado íntegro, sem ar.
     De modo algum pode deixar de ficar bem explícito que, sob o nome de instância migrante, compreendem-se não apenas as que mi­gram passando à geração ou à privação, mas ainda as que migram passando ao aumento ou à diminuição, uma vez que também tais instâncias levam à descoberta da forma, como se observa manifestamente pela, antes enunciada, definição da forma e pela tábua de graus. Por isso o papel, quando seco, é branco; mas quando é molha­do (ou seja, quando se elimina o ar e se introduz a água), é menos branco e mais próximo da transparência. O seu comportamento é semelhante aos indicados nas instâncias anteriores.
XXIV
     Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em terceiro lugar as instâncias ostensivas, de que já fizemos menção na primeira vindi­ma do calor e a que também chamamos de luminosas ou instâncias libertadas e predominantes.[143] São as que mostram a natureza inves­tigada nua e por si subsistente,[144] e ostentam-na no mais alto grau de sua potência, ou seja, emancipada e liberta de impedimentos, ou pelo menos a eles se impondo pela força de sua virtude, suprimindo-os e contendo-os. Pelo fato de todo corpo conter muitas formas de nature­zas combinadas e unidas no concreto, ocorre que cada uma entorpe­ce, deprime, quebranta e submete a outra, e com isso as formas singu­lares se obscurecem. Mas objetos há em que a natureza investigada é predominante em relação a outras naturezas, seja pela falta de impedimento, seja pela predominância de sua própria virtude. Estas são as instâncias mais ostensivas da forma.[145] Mas, mesmo neste caso, é necessário o uso de cautela e da moderação do ímpeto do intelecto. Com efeito, tudo o que apresenta uma forma, e ostenta-a diretamente ao intelecto, deve ser tido por suspeito e deve ser subme­tido a um rigoroso e diligente procedimento de exclusão.
     Por exemplo, seja o calor a natureza a ser investigada. A instân­cia ostensiva do movimento de expansão, que (como se disse antes) é propriedade específica do calor, é a do termômetro de ar. De fato, a chama, ainda que manifestamente apresente expansão, contudo, pela sua grande facilidade de extinção, não apresenta bem o processo dessa expansão. E a água fervente, pela sua facilidade de se trans­formar em vapor e ar, não revela a expansão da água na sua própria massa. Mesmo o ferro candente, assim como outros corpos semelhan­tes, está muito longe de mostrar a expansão, porque o espírito é sub­metido pelas partes compactas e densas, a ponto de refrear, conter o movimento expansivo, e assim o processo não é perceptível pelos sen­tidos. Contudo, o termômetro mostra claramente a expansão do ar de modo visível, progressivo, durável e ininterrupto.
     Por exemplo, seja o peso a natureza da instância investigada. A instância ostensiva do peso é o mercúrio. Este supera de longe em peso todas as outras substâncias, com exceção do ouro; e mesmo o ouro não é muito mais pesado que ele. Mas a instância que melhor in­dica a forma do peso é o mercúrio e não o ouro. Pois o ouro é sólido e consistente, e tais qualidades se relacionam com a densidade; enquanto o mercúrio é líquido e prenhe de espírito, e mesmo assim tem peso muitos graus acima do diamante, e de todos os sólidos que se conhecem. Daí se depreende claramente que a forma do peso predomina simplesmente na quantidade da matéria e não em uma dimensão restrita.
XXV
     Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em quarto lugar as instâncias clandestinas,[146] a que também costumamos chamar de instâncias do crepúsculo.[147] São, por assim dizer, as instâncias opos­tas às ostensivas; exibem, de fato, a natureza investigada na sua ínfima força e, por assim dizer, em estado de incubação e nos seus rudi­mentos; mostram-na nas suas primeiras tentativas e ensaios, mas obscurecida e submetida por uma natureza contrária. Tais instâncias são de grande importância para a descoberta da forma, pois, se as ostensivas orientam facilmente a identificação das diferenças específicas, de sua parte as instâncias clandestinas conduzem e facilitam a identificação dos gêneros, ou seja, das naturezas comuns de que as naturezas investigadas são simples limitações.
     Por exemplo, seja a consistência a natureza a ser investigada: ou seja, aquilo que fixa os limites do corpo e cujo contrário é a liquidez ou a fluidez. As instâncias clandestinas são aquelas que mostram um grau ínfimo de consistência em um fluido; é o caso da bolha de água que é uma espécie de película consistente e delimitada, feita de água. O mesmo ocorre com as goteiras que, quando há água suficiente para correr, formam um fio muito tênue e de tal modo que a água não se interrompe; mas quando não há água suficiente para cair numa suces­são continua a água cai em gotas redondas, a figura que melhor se presta para evitar qualquer descontinuidade da água. Contudo, no exato instante em que cessa o fio de água e tem inicio a queda das gotas, a água se retrai em relação a si mesma para evitar a descontinuidade. Mesmo nos metais que, em fusão, são líquidos mais espes­sos, muitas vezes as próprias gotas se retraem em si mesmas e assim ficam. E semelhante à instância representada pelos pequenos espelhos que as crianças costumam fazer com dois juncos, unidos pela saliva, no meio dos quais se pode notar uma película consistente feita de água. O mesmo fato pode melhor ser observado em outro brinquedo infantil em que se usa a água (tornada mais consistente pelo sabão) e, com um canudo, sopra-se, fazendo com essa água um verdadeiro cas­telo de bolhas; e estas, pela intromissão do ar, conservam um grau de consistência capaz de manter certa continuidade, mesmo que muitas bolhas se rompam. Isso é ainda bem visível na espuma e na neve, que adquirem tal consistência que chegam quase a ser passíveis de cortes, mesmo sendo corpos formados de ar e de água, ambos líquidos. Todos esses exemplos indicam de maneira nada obscura que o líquido [148] e a consistência são noções vulgares e relativas aos sentidos;[149] mas também que em todos os corpos está presente a fuga ou a tendên­cia no sentido de evitar a própria descontinuidade e que tal tendência nos corpos homogêneos, como nos líquidos, é débil e frouxa; enquanto que nos corpos compostos de partes heterogêneas é muito mais forte e viva. E isso porque a presença de um corpo heterogêneo une os corpos, enquanto a introdução de um corpo homogêneo os dis­solve e relaxa.
     Da mesma maneira, procure-se investigar, por exemplo, a natu­reza da atração ou coesão dos corpos.[150] A mais notável instância ostensiva dessa forma é o magneto. A natureza contrária à atração é a não-atração, como a que existe em substâncias semelhantes. O ferro não atrai o ferro, o chumbo não atrai o chumbo, a madeira não atrai a madeira, a água não atrai a água, etc. Mas a instância clandestina é o magneto armado de ferro, ou melhor, o ferro armado em um mag­neto. A natureza é tal que o magneto, armado a uma certa distância, não exerce mais atração sobre o ferro que o magneto desarmado. Mas se o ferro é aproximado do magneto, armado até tocá-lo, então o magneto armado sustentará um peso de ferro muito maior que um magneto simples e sem armação, em vista da semelhança da subs­tância do ferro com o ferro. Essa propriedade de operar era completa­mente clandestina ou latente no ferro, antes que o magneto dele fosse aproximado. Daí fica claro que a forma de coesão dos corpos é algo de vivo e intenso no magneto, fraco e latente no ferro. Deve, ainda, ser notado que pequenas flechas de madeira, sem ponta de ferro, dispara­das por bestas grandes, penetram mais a madeira (como os flancos do navio ou coisas semelhantes) que essas mesmas flechas armadas com a ponta de ferro; isso devido à semelhança da substância da madeira com a madeira, embora essa propriedade já antes estivesse latente na madeira. Da mesma maneira, apesar de o ar manifestamente não atrair o ar e a água, água, uma bolha aproximada de outra bolha dissolve-se mais facilmente que se tal não tivesse ocorrido, isso devi­do ao apetite de coesão que tem a água para com a água e o ar para com o ar. Tais instâncias clandestinas (que são de notável utilidade, como já foi dito) tornam-se visíveis sobretudo em porções pequenas e sutis dos corpos. As massas maiores seguem formas mais gerais e universais, como se dirá no devido lugar.
XXVI
     Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em quinto lugar as instâncias constitutivas,[151] a que também costumamos chamar de manipulares.[152] São as que se constituem numa espécie da natureza investigada, à maneira de forma menor. Com efeito, como as formas legítimas (que são sempre conversíveis nas naturezas investigadas) são muito latentes e não são facilmente descobertas, a vacilação e a fragilidade do intelecto humano requerem que as formas particulares, que reúnem alguns punhados de instâncias, mas não todas em uma noção comum, não sejam negligenciadas, antes notadas com toda diligência. Pois tudo o que serve para conferir unidade à natureza, ainda que de modo imperfeito, abre caminho à descoberta das formas. Portanto, as instâncias que são úteis a esse propósito não podem ser desprezadas quanto à sua força e têm até certas prerrogativas.
     Mas o seu emprego deve ser feito com diligente cautela, para se evitar que o intelecto humano, depois de ter descoberto muitas dessas formas particulares e de ter estabelecido as partições ou divisões da natureza investigada, acabe se contentando apenas com isso e não prossiga na investigação legítima da forma grande;[153] mas acabe supondo que a natureza, na sua própria raiz, é múltipla e dividida, e descure e suponha a ulterior unidade da natureza como uma sutileza vã, que conduz a meras abstrações.
     Estabeleça-se, por exemplo, que a natureza a ser investigada seja a memória ou aquilo que excita e ajuda a memória. As instâncias constitutivas são a ordem ou a distribuição que manifestamente aju­dam a memória, como também é o caso dos tópicos [154] da memória artificial,[155] que podem ser lugares, no seu significado verdadeiro e próprio, como a porta, o ângulo, a janela e coisas parecidas, e podem ser pessoas, familiares e conhecidas; podem ser, ainda, outras coisas (desde que dispostas em uma determinada ordem), como animais ou ervas; podem ser, ainda, palavras, letras, caracteres, personagens históricas, etc. Para cada caso devem ser verificados os que são mais ou menos aptos e cômodos. Tais tópicos ajudam significativamente a mente e predispõem-na em relação a forças naturais. Por essa razão os versos permanecem e prendem mais facilmente a memória que a prosa. O conjunto ou manípulo dessas três instâncias, ou seja, a ordem, os tópicos da memória artificial e os versos, constitui uma só espécie de ajuda à memória de tal espécie que pode chamar-se justa­mente de corte do infinito.[156] Com efeito, quando se procura recor­dar alguma coisa ou buscá-la na memória, se não se conta com nenhuma prenoção ou percepção do que se busca, a procura se cum­pre de maneira errante, indo-se aqui e ali, e assim quase ao infinito. Mas, se se dispõe de alguma prenoção segura, subitamente é inter­rompido o vagar ao infinito e o discurso da memória se torna mais próximo. Pois bem, na três instâncias supracitadas a prenoção é evidente e certa: na primeira, trata-se de algo que retoma certa ordem; na segunda, trata-se de uma imagem que tem alguma relação ou conveniência com os tópicos estabelecidos; na terceira, trata-se de palavras que formam um verso. E assim é que se interrompe o vagar ao infinito. Outras instâncias nos oferecerão a seguinte segunda espé­cie: tudo o que conduz o que é do intelecto à impressão dos sentidos [157] ajuda a memória (conforme uma regra muito seguida pela memória artificial). Outras instâncias oferecerão esta terceira espécie: tudo o que provoca uma impressão, sob um intenso afeto,[158] ou seja, o que infunde medo, admiração, vergonha, deleite, ajuda a memória. Outras instâncias oferecerão esta quarta espécie: tudo o que se impri­me na mente pura ou antes de estar ocupada ou despreocupada de algo, como o que se aprende na infância ou o que se pensa antes do sono e ainda o que acontece pela primeira vez, melhor se fixa na memória. Outras instâncias oferecerão esta quinta espécie: o grande número de circunstâncias e de ocasiões ajuda a memória como o há­bito de escrever-se por partes descontínuas e a leitura e recitação em voz alta. Outras instâncias, finalmente, oferecerão esta sexta espécie: tudo o que se espera e que excita a atenção grava-se na mente muito mais que o que transcorre sem preocupação. Por isso, se se ler um escrito vinte vezes, não será aprendido de memória com a facilidade resultante de dez leituras, nas quais se procure dizer o texto de memória, apenas retomando o escrito quando aquela falhar.
     Assim, seis são as formas menores de ajuda à memória: a inter­rupção ou corte do vagar ao infinito, a redução do intelectual ao sen­sível, a impressão recebida sob intensa vibração de ânimo, a impres­são feita em uma mente pura, a multidão de ocasiões, a expectativa prévia.
     Da mesma maneira, tome-se, por exemplo, para a investigação, a natureza do gosto ou da degustação. As instâncias que se seguem são constitutivas: os indivíduos que por natureza são destituídos do olfato são também providos do gosto, assim não distinguem o alimento ran­çoso ou podre, como também não distinguem o cheiro do alho ou da rosa e coisas semelhantes. Mesmo os indivíduos que ficam com o nariz obstruído por catarro não distinguem nem percebem o podre, o rançoso ou o odor da água de rosas aspergida sobre algo. Porém, se se provocar a desobstrução do nariz com violento sopro, no mesmo instante terão a percepção do mau cheiro ou do odor de qualquer coisa que tenham na boca. Estas instâncias darão e constituirão esta espécie ou parte do gosto, tornando claro que o sentido do gosto nada mais e, em parte, que um olfato interno que passa e desce, dos canais superiores do nariz à boca, e ao paladar, e, em contrapartida, o salga­do, o doce, o acre, o ácido, o seco, o amargo e semelhantes, tais sabo­res, todos eles são totalmente percebidos pelos que são desprovidos do olfato ou o tenham obstruído. Assim, torna-se evidente que o senti­do do gosto é algo composto do olfato interno e de uma espécie de tato delicado, do qual não cabe tratar aqui.
     Ainda, do mesmo modo, tome-se, por exemplo, a investigação da natureza da comunicação sem mescla de substância. A instância das luzes oferecerá ou constituirá uma espécie de comunicação; o calor e o magneto uma outra. Com efeito, a comunicação das luzes é momen­tânea e, subitamente, se desvanece quando se tolda sua fonte de irra­diação. Por seu turno, o calor e a força magnética depois de transmiti­dos, ou melhor, excitados em corpo, aderem a ele e nele permanecem por algum tempo, mesmo na falta do objeto que originou o movimento.
     Em suma, é sobremaneira grande a prerrogativa das instâncias constitutivas, por serem de grandíssima valia no estabelecimento das definições (especialmente particulares) e nas divisões ou partições da natureza, e a cujo respeito disse com acerto Platão “que se deve considerar como um Deus o que bem souber definir e dividir”.[159]
XXVII
     Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em sexto lugar as instâncias conformes ou proporcionadas,[160] a que costumamos tam­bém chamar de paralelas ou semelhanças físicas.[161] E são as instân­cias que ostentam as semelhanças e as conjunções das coisas, não nas formas menores, como as instâncias constitutivas, mas simplesmente no concreto. Constituem por isso como que os primeiros e mais bai­xos graus de unificação da natureza. Não constituem imediatamente, logo de início, um axioma, mas tão-somente indicam e observam certa conformidade entre os corpos. Mesmo não sendo de grande valia para o descobrimento das formas, revelam, contudo, de maneira útil, as estruturas das partes do universo, perfazendo quase a anato­mia de seus membros; por isso, dirigem-se quase pelas mãos aos axio­mas nobres e sublimes e especialmente àqueles que se relacionam com a configuração do mundo, e muito pouco servem para se chegar às naturezas ou formas simples.
     Por exemplo, são instâncias conformes as seguintes: o espelho e o olho; a estrutura do ouvido e dos lugares que produzem eco. A par­tir dessa conformidade, deixando-se de lado a mera observação da semelhança, bastante útil para muitas coisas, é fácil recolher e estabelecer o axioma de que os órgãos dos sentidos e os corpos que compor­tam os reflexos sobre os sentidos são semelhantes por natureza. Com isso em conta, o intelecto se eleva sem dificuldade a um axioma mais alto e nobre, que é o seguinte: não há, entre os consensos ou simpatias dos corpos dotados de sensação e os inanimados e privados de sensa­ção, outra diferença que a que os primeiros possuem um corpo dis­posto de tal forma a poder receber o espírito animal, os segundos não. Assim, quantos sejam os consensos nos corpos inanimados outros tantos poderão ser os sentidos nos corpos dos animais, desde que para isso haja espaço no corpo animado, suficiente para o espírito animal em um membro adequadamente ordenado como um órgão idôneo. E, ainda, tantos sejam os sentidos dos animais quantos serão, sem dúvi­da, os movimentos em um corpo inanimado, desprovido do espírito animal. Mas é necessário que os movimentos nos corpos inanimados sejam em muito maior número que os dos sentidos nos corpos anima­dos, em vista da pequenez dos órgãos dos sentidos. E disso há um exemplo bastante manifesto nas dores. Pois, existindo muitos gêneros de dores nos animais e, por assim dizer, distintos caracteres delas (uma é a dor da queimadura, outra a do frio intenso, outra a de uma pontada, outra a de uma distensão e outras do mesmo tipo), é absolu­tamente certo que todas ocorram em corpos inanimados, em relação ao movimento. E o caso, por exemplo, da madeira e da pedra, quando queimadas, ou quando contraídas pelo gelo, ou quando furadas, ou quando partidas, ou quando dobradas, ou quando golpeadas, e assim por diante; embora não haja sensação, devido à ausência do espírito animal.
     Do mesmo modo (embora estranho para ser dito), as instâncias conformes são as raízes e os ramos da planta. De fato, todo vegetal, crescendo, aumenta de volume e tende a estender suas partes em cír­culo, tanto para cima quanto para baixo. Não há outra diferença entre as raízes e os ramos que o fato de as raízes estarem sob a terra, enquanto os ramos se estenderem pelo ar e ao sol. Tome-se um ramo tenro e verde e coloque-se em uma pequena porção de terra; mesmo antes de se fixar ao terreno, o que logo aparece não é um ramo mas uma raiz. E vice-versa, se se coloca terra na parte superior e por meio de uma pedra ou de uma substância dura se arruma a planta de tal forma que ela fique comprimida e não possa brotar para cima, ela sol­tará ramos no ar existente na parte de baixo.
     Do mesmo modo, são instâncias conformes a resina das árvores e muitas gemas de rubi. Umas e outras, de fato, são exsudações e filtrações de sucos, no primeiro caso de árvores, no segundo, de sei­xos. Daí a existência em ambos do esplendor e brilho causados, sem dúvida, pela filtração delicada e perfeita. Daí procede também o fato de os pêlos dos animais não serem tão belos e de cores tão vivas como as penas das aves — pois os sucos não se filtram pela pele com a mesma delicadeza que pelos pequenos tubos das penas.
     Do mesmo modo, são instâncias conformes o escroto nos ani­mais masculinos e a matriz nas fêmeas. Pois a notável estrutura que permite ao sexo se diferenciar (pelo menos os animais terrestres) não parece ser outra coisa que a diferença entre o interno e o externo; ou seja, o calor, que tem maior força no sexo masculino, impele para fora as partes genitais; ao passo que nas fêmeas tal não ocorre, por­que o calor é mais fraco e as partes genitais ficam contidas no interior.­[162] Do mesmo modo, são instâncias conformes as barbatanas dos peixes, os pés dos quadrúpedes, os pés e as asas das aves, ao que Aristóteles acrescenta as quatros flexões que fazem as serpentes.[163] Assim, na estrutura do universo o movimento dos seres vivos parece poder ser explicado com dois pares de artelhos ou membros flexíveis.
     E do mesmo modo são instâncias conformes os dentes dos ani­mais terrestres e o bico das aves: em vista do que se torna claro que todos os animais perfeitos têm algo de duro na boca.
     Do mesmo modo, não é absurda a semelhança e conformidade graças às quais o homem parece uma planta invertida. De fato, a raiz dos nervos e das faculdades dos animais é a cabeça; as partes semi­nais são as mais baixas, sem se levar em conta as extremidades das pernas e dos braços. Na planta, ao contrário, é a raiz que está no lugar da cabeça, que está situada na parte mais baixa, e as sementes na parte mais alta.
     Finalmente deve ser sempre lembrado que todas as investigações diligentes e toda coleta de fatos empreendidas pela história natural devem mudar de direção e voltarem-se para um fim contrário àqueles para os quais ora são dirigidas. Até agora os homens tiveram grande curiosidade por conhecer a verdade das coisas e por explicar de modo apurado as diferenças existentes entre os animais, entre as ervas e entre os fósseis. Tais diferenças, na sua maior parte, são como que caprichos da natureza e não coisas de alguma utilidade para a ciência. Prestam-se, certamente, ao divertimento, às vezes servem à práti­ca, mas muito pouco ou nada para a prospecção da natureza. Por isso toda obra deve voltar-se inteiramente para a investigação e a observa­ção das semelhanças e das analogias, seja no todo ou nas partes. Estas são, com efeito, as que conferem unidade à natureza e dão iní­cio à constituição da ciência.
     Mas em tudo é absolutamente necessário observar-se uma grave e severa cautela, pois se aceitam como instâncias conformes e propor­cionadas apenas as que denotam, como antes foi dito, semelhanças fí­sicas, isto é, reais e substanciais e fundadas na natureza, e não as meramente casuais e especiosas, como as que exibem os escritores de magia natural (homens levianos que não mereciam ser mencionados nos assuntos graves de que tratamos), os quais, com grande vaidade e ignorância, descrevem imaginárias semelhanças e fictícia simpatia entre as coisas, que eles mesmos inventam.
     Mas, deixando isso de lado, acrescentamos que nem mesmo na configuração do mundo, nos seus mais amplos espaços, devem-se negligenciar as instâncias conformes. A África e a região do Peru, com seu continente que se estende até o estreito de Magalhães, apre­sentam istmos e promontórios semelhantes, o que não pode ocorrer por acaso.
     Também o Novo e o Velho Mundo se correspondem no fato de que ambos se alargam no sentido setentrional e, ao contrário, nos meridianos são estreitos e terminam em ponta.
     Do mesmo modo, notáveis instâncias conformes são os frios intensos que reinam na chamada região média do ar, bem como os fogos fortíssimos que muitas vezes irrompem das regiões subterrâ­neas; duas coisas que são limites e extremas, ou seja, a natureza do frio que tende para a região do céu, e a natureza do calor, que tende para as entranhas da terra. Isso ocorre por antiperístase ou repulsão da natureza contrária.
     Finalmente, é digna de nota, nos axiomas das ciências, a confor­midade das instâncias. Assim o tropo da retórica chamado Praeter Expectatum [164] está de acordo com o tropo musical chamado Decli­natio Cadentiae.[165] Da mesma maneira, o postulado matemático de que “os ângulos iguais a um terceiro são iguais entre si” é conforme à estrutura lógica do silogismo, que une as coisas que concordam ou convêm a um termo médio. É de muita utilidade, em numerosas inves­tigações, a sagacidade no descobrir e no indagar as conformidades e as semelhanças físicas.
XXVIII
     Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em sétimo lugar as instâncias monádicas,[166] a que também costumamos chamar de irre­gulares ou heteróclitas,[167] tomando o vocábulo dos gramáticos. São aquelas que mostram ao concreto os corpos que parecem extra­vagâncias ou quase inesperados na natureza e que não estão de acor­do com as outras coisas do mesmo gênero. Enquanto as instâncias conformes são semelhantes umas às outras, as instâncias monádicas só são semelhantes a si mesmas. O seu uso é idêntico ao das instâncias clandestinas, ou seja, servem para ressaltar e unir a natureza, na identificação dos gêneros ou naturezas comuns, que depois devem ser delimitados pelas diferenças verdadeiras. Não se deve desistir da investigação enquanto as propriedades e as qualidades que se encontram nas coisas, e podem ser consideradas espantosas na natureza, não fiquem reduzidas ou compreendidas segundo alguma forma ou lei certa, de maneira a ficar indicado que todo fenômeno irregular e singular depende de alguma forma comum; e que o milagre, enfim, seja colocado na dependência de apenas algumas diferenças específicas bem determinadas, e num grau e numa proporção raríssimos, e não na dependência da própria espécie. Mas atualmente as preocupações dos homens não vão mais longe que a determinação de tais coisas, como se fossem segredos e significativas manifestações da nature­za,[168] como se se tratasse de fatos sem causa, e assim acabam sendo consideradas como exceções das regras gerais.
     São exemplos de instâncias monádicas, entre os astros, o sol e a lua; o magneto, entre as pedras; o mercúrio, entre os metais; o elefante, entre os quadrúpedes; a sensibilidade erótica, entre as espécies de tato; o faro da caça nos cães, entre os gêneros de olfato. Também a letra S entre os gramáticos é tomada como uma letra monádica pela facilidade que tem de se combinar, seja com duas outras, com outras três consoantes, o que não ocorre com nenhuma outra letra. As instâncias deste tipo devem ser levadas em grande conta, porque agu­çam e estimulam a investigação e corrigem o intelecto depravado pelo hábito e pelas ocorrências rotineiras.
XXIX
     Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em oitavo lugar as instâncias desviantes,[169] ou seja, os erros da natureza, as coisas vagas e monstruosas, nos quais a natureza rompe e se desvia do seu curso natural. Os erros da natureza e as instâncias monádicas diferem no fato de que os primeiros são milagres dos indivíduos enquanto que as segundas são milagres da espécie. Mas o seu uso é quase o mesmo, pois retificam o intelecto da experiência habitual e revelam as formas comuns. Também aqui não se deve abandonar a investiga­ção até que se descubra a causa do desvio. Na verdade, essas causas não alcançam propriamente qualquer forma, mas chegam até ao pro­cesso latente que conduz à forma; e quem conhece com familiaridade os caminhos da natureza facilmente observará os seus desvios. Por outro lado, aquele que está familiarizado com os desvios mais acura­damente descreverá aqueles caminhos. As instâncias monádicas tam­bém se diferenciam pelo fato de serem muito mais instrutivas para a prática e para a parte operativa. De fato, seria algo muito difícil o surgimento de novas espécies; mas a variação das espécies já conhe­cidas e, com isso, a produção de uma infinidade de coisas raras inusi­tadas, seria tarefa menos árdua. Com efeito, fácil é o passo dos mila­gres da natureza aos milagres da arte.[170] Uma vez que se surpreenda a natureza em uma variação, e se indique claramente a sua razão, será depois fácil, pela arte, repará-la em seu descaminho acidental. E não apenas em relação a este erro, mas ainda em relação a outros; pois os erros em um determinado passo abrem caminho a erros e desvios por toda parte. E aqui não é o caso de se indicar exemplos, dada a sua grande abundância: deve-se proceder a uma coleta ou a uma história natural de todos os monstros e partos prodigiosos da natureza; de tudo o que na natureza é novo, raro e excepcional. Mas a escolha deve ser muito severa para que mereça fé. Sobretudo devem considerar-se como suspeitos os milagres que se originam de alguma maneira das superstições, como os prodígios relatados por Tito Lívio, como também os que se encontram nos escritores de magia natural e de alquimia, e pessoas do gênero, que são próceres e amantes das fábulas. Os referidos fatos devem ser buscados em histórias sérias e em tradições seguras.

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